7. INEXISTÊNCIA DE BENEFÍCIO DE ORDEM
O § 2º do art. 6º da atual Lei prevê que “a responsabilidade prevista nos incisos I, II, III, VII, VIII, IX, X, XI e XII é solidária e não comporta benefício de ordem”. Em sua parte final, a disposição é idêntica à do parágrafo único do art. 124. do CTN.
É ocioso dizer que responsabilidade solidária não comporta benefício de ordem. Se há benefício de ordem, a responsabilidade é subsidiária. Nesse caso, somente se o contribuinte não tiver haveres suficientes para quitar o débito tributário, é que este ou parte deste será exigida do responsável.
O inc. I do art. 124. do CTN dispõe serem solidariamente obrigadas “as pessoas que tenham interesse comum na situação que constitua o fato gerador da obrigação principal”. De acordo com Carvalho (2008, p. 345-346), a expressão “interesse comum”, além de vaga, “não é um roteiro seguro para a identificação do nexo que se estabelece entre os devedores da prestação tributária”. Isso porque:
i) comprador e vendedor têm interesse comum na transmissão de imóvel, mas, na lei do Estado de São Paulo, só o primeiro é sujeito passivo do ITBI;
ii) comerciante e adquirente têm interesse comum em operação relativa à circulação de mercadorias, mas só o primeiro é sujeito passivo do ICMS;
iii) prestador e tomador têm interesse comum na prestação de serviços, mas só o primeiro é sujeito passivo do ISS.
A solidariedade a que o legislador quis se referir é a que aproxima os participantes do fato, aplicável a situações em que não há bilateralidade no seio do fato tributado, como, por exemplo, na incidência: do IPTU sobre imóvel com dois ou mais proprietários; do IPVA sobre veículo com dois ou mais proprietários. A solidariedade, portanto, é entre sujeitos que estão: no mesmo polo da relação jurídica tributária; no “lado escolhido pela lei para receber o impacto jurídico da exação”.
Ao tratar da Solidariedade Passiva, o caput do art. 275. do CC dispõe que
“o credor tem direito a exigir e receber de um ou de alguns dos devedores, parcial ou totalmente, a dívida comum; se o pagamento tiver sido parcial, todos os demais devedores continuam obrigados solidariamente pelo resto” (grifamos).
Embora obrigações tributárias tenham por objeto uma prestação pecuniária, essencialmente divisível, elas “não seguem a sorte das relações obrigacionais disciplinadas pelo direito civil” (CARVALHO, 2008, p. 346-347). Prossegue o Autor, afirmando que “para efeitos jurídico-tributários tais obrigações são indivisíveis, de modo que, havendo solidariedade passiva, cada um dos devedores solidários, em princípio, é obrigado pelo total da dívida e o pagamento feito por qualquer deles aproveita aos demais” (art. 125, I, do CTN). Além disso: “a isenção ou remissão de crédito exonera todos os obrigados, salvo se outorgada pessoalmente a um deles, subsistindo, nesse caso, a solidariedade quanto aos demais pelo saldo” (art. 125, II); “a interrupção da prescrição, em favor ou contra um dos obrigados, favorece ou prejudica aos demais” (art. 125, III). Aplicam-se as três regras anteriores, salvo se houver disposição em contrário da lei que instituiu o tributo (caput do art. 125).
Para a Fazenda Pública pouco importa qual dos obrigados quitou o débito. No entanto, quem quitou pode exercer seu direito de regresso em face de um ou mais dos outros obrigados.
Adverte Carvalho (2008, p. 347-349), que a solidariedade prevista no inc. II do art. 124. do CTN não é a mesma de que cuida o inc. I do artigo. Solidariedade, mesmo, encontrada na última regra, “haverá tão-somente na circunstância de existir uma relação jurídica obrigacional, em que dois ou mais sujeitos de direito se encontram compelidos a satisfazer a integridade da prestação”. Nas demais situações (inc. II do art. 124), “onde encontrarmos duas relações, entretecidas por preceitos de lei, para a segurança do adimplemento prestacional de uma delas, não teremos, a bem do rigor jurídico, o laço de solidariedade que prende os sujeitos passivos”.
Se responsável quitou débito que não foi pago pelo contribuinte, o exercício de direito de regresso justifica-se para reparar o enriquecimento sem causa que teve o segundo, à custa do primeiro. Por exemplo, em sucessivas aquisições de veículo usado com débito do IPVA que já existia na primeira delas, se a quitação do débito foi feita pelo último adquirente (responsável), poderá este ajuizar ação de indenização (responsabilidade civil) em face de quem lhe alienou o veículo (a relação jurídica de direito material entre ambos é a compra e venda). Por sua vez, o alienante e réu na ação poderá denunciar a lide àquele que lhe alienou o veículo (denunciado) e assim por diante, até se chegar ao contribuinte do imposto (aquele que era o proprietário na data do fato jurídico tributário). No mesmo processo judicial, haverá várias ações: a principal, entre autor e réu; e as correspondentes às denunciações havidas, cada uma entre denunciante e respectivo denunciado. O Juiz deverá prolatar uma sentença para cada ação.
8. DO LANÇAMENTO POR NOTIFICAÇÃO
Com base no Cadastro de Veículos do DETRAN, a Secretaria Fazenda organiza o Cadastro de Contribuintes do IPVA e faz regularmente lançamentos automáticos do IPVA por notificação para todo veículo automotor com o IPVA do exercício vencido, sem pagamento desse imposto e sem registro, no exercício, de: reconhecimento de imunidade, concessão de isenção ou dispensa de pagamento do imposto.
De acordo com o disposto no caput do art. 142. do CTN, no lançamento tributário, a autoridade administrativa deve identificar o sujeito passivo, mas não está obrigada a qualificá-lo como contribuinte ou responsável. A notificação de lançamento do IPVA por publicação no Diário Oficial do Estado, efetuada por processamento de dados, não qualifica o sujeito passivo, pois não é possível saber de antemão se ele ainda é o contribuinte ou se ele transformou-se em responsável. Com efeito, na comunicação da notificação de lançamento do IPVA, enviada ao sujeito passivo por carta simples ao endereço constante do Cadastro de Contribuintes do IPVA ou ao seu domicílio, é dito que o “contribuinte ou responsável” nela identificado fica cientificado da notificação de lançamento do IPVA, referente ao veículo ...
A motivação do ato-norma de lançamento refere-se ao contribuinte ou ao responsável, sem que isso prejudique a sua validade. Não é indicado o dispositivo em que está o fundamento legal ou motivo legal a que se subsome o motivo do ato. De acordo com o magistério de Santi (2001, p. 110), porém, nos atos administrativos vinculados, “por tratar-se de tipo normativo estrito, a breve descrição do motivo do ato é suficiente para identificação do motivo legal”, de modo que é dispensável a indicação do dispositivo em que está o motivo legal.
Assim, aquele que constava, no Cadastro do DETRAN, como proprietário do veículo no exercício a que se refere o lançamento automático do IPVA por notificação no Diário Oficial do Estado é:
i) contribuinte, se ainda era o proprietário do veículo em primeiro de janeiro daquele exercício (art. 5º da Lei), data do fato jurídico tributário;
ii) responsável solidário pelo pagamento do imposto:
b.1) se havia alienado o veículo antes de referida data, mas antes dela e, também, no prazo de 30 (trinta) dias contados da alienação não tinha comunicado o fato ao DETRAN (inc. II do art. 6º, combinado com o art. 3º das Disposições Transitórias, ambos da Lei 13.296/2008);
b.2) se era o titular do domínio ou o possuidor a qualquer título do veículo na data do fato jurídico tributário (inc. XI do art. 6º da Lei).
Em casos previstos nos demais incisos do art. 6º, o responsável deverá ser identificado pelo fisco, de modo que o lançamento do IPVA, por notificação, terá de ser feito manualmente.
CONCLUSÃO
Vimos que sujeito passivo de imposto é a pessoa natural ou jurídica que:
i) realiza a conduta descrita na hipótese da regra-matriz de incidência ou que se encontra no “estado de fato” descrito naquela hipótese nos impostos sobre a propriedade, quando é chamada de contribuinte;
ii) mesmo sem realizar o fato jurídico tributário ou se encontrar em referido “estado de fato”, está àquele ou a este vinculada (sai da compostura interna do fato jurídico tributário), quando é chamada de responsável.
Quando pessoa natural ou jurídica é posta na condição de responsável por expressa disposição de lei, mas sem estar vinculada ao fato gerador da obrigação tributária, ela será, no mais das vezes, sujeito passivo de outra relação jurídica, de natureza sancionatória.
O exame das hipóteses das normas gerais e abstratas de responsabilidade previstas nos incisos do art. 6º da atual Lei do IPVA mostra que elas são dos seguintes tipos:
i) por descumprimento de dever administrativo, de interesse da Fazenda Pública, atribuído por lei a pessoa natural ou jurídica (abrange a maioria das hipóteses);
ii) por sucessão causa mortis de pessoa natural;
iii) de representação legal (processual) do espólio, pelo inventariante;
iv) de representação legal de tutelado ou curatelado, pelo respectivo tutor ou curador;
v) de pessoa natural ou jurídica que está próxima, juridicamente, de se encontrar no “estado de fato” descrito na hipótese de incidência do IPVA (o “titular de domínio” ou o “possuidor a qualquer título”).
Analisamos a estrutura da norma geral e abstrata de responsabilidade por descumprimento de dever administrativo. Em sua hipótese, é descrito fato ilícito: descumprimento de dever administrativo por determinada pessoa; em seu consequente, há uma relação jurídica de natureza administrativa (não tributária) em que a pessoa que descumpriu o dever (o responsável) deve pagar ao Estado sanção pecuniária de valor igual ao tributo que não foi pago pelo contribuinte. O dever administrativo atribuído àquela pessoa (conduta oposta à do fato ilícito), expresso no texto legal ou deste inferido, estará prescrito no consequente de outra norma geral e abstrata, de possível construção pelo intérprete. A hipótese dessa norma, enunciada no texto legal ou deste inferida, descreverá fato lícito.
Pela análise da estrutura da norma de responsabilidade, podemos saber quando surge a responsabilidade, quem é o responsável, que eventos tributados ela alcança e quando ela cessa.
Demonstramos que a regra de responsabilidade do inc. II do art. 6º da Lei do IPVA não retira seu fundamento de validade da norma do art. 128. do CTN, como parece à primeira vista, mas sim da norma do inc. II do art. 124.
Vimos que, nos lançamentos automáticos do IPVA por notificação que a Fazenda Pública do Estado de São Paulo realiza anualmente, o sujeito passivo pode não mais ser o proprietário do veículo na data do fato jurídico tributário. Mesmo assim o lançamento será válido, pois, se anterior proprietário alienou o veículo antes do fato jurídico tributário mas não comunicou a alienação ao DETRAN no prazo previsto, ele é o responsável. O uso do instituto da responsabilidade é, portanto, uma necessidade e não uma comodidade da Administração Tributária.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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SOUSA, Rubens Gomes de. Compêndio de Legislação Tributária. Rio de Janeiro: Edições Financeiras S.A., 1960.
Notas
1 O CTN distingue tributo devido de crédito tributário. Neste estaria incluída a multa punitiva e os juros moratórios; naquele, somente os juros. Na relação jurídica prescrita no consequente da norma de responsabilidade, porém, tributo devido pelo responsável é também crédito tributário para o sujeito ativo.
2 Disponível em: <https://www.pfe.fazenda.sp.gov.br/> / Legislação / Tributária / Atalhos IPVA / Lei 13.296/08 Acesso em 28/02/2013.
3 Entendida “norma primária” como a de direito material, em oposição à “norma secundária”, de direito processual.
4 Conforme se pode perceber, ao falar em norma complementar ou secundária, Derzi está a se referir:
a) tanto à norma primária principal de natureza não-tributária (na denominação de Queiroz), que descreve fato lícito em seu antecedente e em que há uma sub-rogação subjetiva de todos os direitos e deveres do contribuinte para o responsável;
b) quanto à norma primária de natureza punitiva (na denominação de Queiroz), que descreve fato ilícito em seu antecedente e prescreve uma sanção pecuniária ao autor daquele fato (o responsável).
5 O Autor adota os termos endonorma e perinorma, propostos por Carlos Cossio, que prescrevem respectivamente o dever jurídico atribuído ao sujeito passivo e a sanção a este imposta pelo descumprimento daquele dever, e que correspondem aos conceitos de norma dependente e de norma autônoma, de Hans Kelsen.
6 Renato Lopes Becho e Paulo de Barros Carvalho concordam em um ponto: a relação jurídica entre Estado e responsável não tem natureza tributária. No entanto, para Becho, ela é de direito processual, enquanto, para Carvalho, é de direito administrativo. Sobre possível influência que o legislador do CTN tenha sofrido da teoria dualista da obrigação civil, Carvalho (2008, p. 325) afirma que “não se pode cogitar de obrigação sem crédito ou de crédito sem obrigação”.
7 “Art. 568. São sujeitos passivos na execução:
( . . . )
II - o espólio, os herdeiros ou os sucessores do devedor;
. . . ”.
8 “Art. 123. Será obrigatória a expedição de novo Certificado de Registro de Veículo quando:
I - for transferida a propriedade;
( . . . )
§ 1º No caso de transferência de propriedade, o prazo para o proprietário adotar as providências necessárias à efetivação da expedição do novo Certificado de Registro de Veículo é de trinta dias, sendo que nos demais casos as providências deverão ser imediatas.
. . . ”.
9 O § 3º do art. 123. do CTB prevê que a expedição do novo certificado (CRV) seja comunicada ao órgão executivo de trânsito que expediu o anterior e ao RENAVAM.
10 Com a integração dos sistemas de informação dos DETRANs dos Estados, na transferência de veículo de um Estado para outro em razão de alienação ou de mudança de domicílio ou residência do proprietário, o DETRAN do Estado de destino não registrará o veículo em seu Cadastro se houver débito do IPVA ou da taxa de licenciamento no Estado de origem. Antes da citada integração, era possível registrar no DETRAN de outro Estado veículo com débito de IPVA no Estado de São Paulo. Se a transferência fosse para o Estado de São Paulo, não comprovado o pagamento, ao Estado de origem, do IPVA do exercício em curso, o Estado de São Paulo exigia IPVA proporcional ao número de meses restantes do exercício (§ 2º do art. 15. da Lei 6.606/1989 – disponível em: <https://www.pfe.fazenda.sp.gov.br/> / Legislação / Tributária / Atos anteriores a 2002 / Ato: “Leis”, Ano: “1989” / 6.606, de 20-12 Acesso em 28/02/2013). Se a transferência fosse por mudança de domicílio ou residência do proprietário poderia ocorrer bitributação, pois, enquanto não transcorresse o prazo decadencial, o Estado de origem tinha o dever de exigir do proprietário todo o IPVA do exercício em que houve a transferência.
11 “Art. 686. Não requerida a adjudicação e não realizada a alienação particular do bem penhorado, será expedido o edital de hasta pública, que conterá:
( . . . )
V – menção da existência de ônus, recurso ou causa pendente sobre os bens a serem arrematados”.
12 “Art. 123. Salvo disposições de lei em contrário, as convenções particulares, relativas à responsabilidade pelo pagamento de tributos, não podem ser opostas à Fazenda Pública, para modificar a definição legal do sujeito passivo das obrigações tributárias correspondentes”.