6. Reflexões sobre os argumentos contrários e favoráveis à aplicação do CDC nas relações jurídicas envolvendo as EFPC
Feito isso, após a análise realizada dos argumentos contrários e favoráveis à aplicação do CDC nas relações jurídicas entre fundos de pensão e participantes, verifica-se que o posicionamento contrário não se mostra sustentável juridicamente. Nesse sentido, as características de tais entidades – regramento por lei específica, acesso restrito, sem fins lucrativos e enquadramento na Ordem Social da Constituição Federal – conforme em seguida abordará, não são condições suficientes para afastar a incidência do CDC, além do mais este codex tem caráter principiológico e funciona como um subsistema.
O Código de Defesa do Consumidor apresenta um caráter diferenciado comparativamente às demais leis infraconstitucionais, uma vez que traz em si regras e dispositivos principiológicos com amplitude que transcende este próprio Codex, na medida em que ocorra eventual conflito com outra norma no contexto de consumo.
Assim, em que pese a especificidade da norma que trata da previdência privada, qual seja a Lei Complementar 109/2001, há de se considerar o caráter abrangente do próprio CDC, o qual se estrutura com base nos princípios da vulnerabilidade (técnica, jurídica e econômica) do consumidor e na sua hipossuficiência diante do fornecedor, a fim de assegurar um mínimo de equilíbrio nesse tipo de relação. Nesse sentido, o CDC é considerado por Luiz Antônio Rizzato Nunes um subsistema dentro do ordenamento jurídico, podendo, muitas vezes, sobrepor-se a outra norma:
Não será possível interpretar adequadamente a legislação consumerista se não se tiver em mente esse fato de que ela compõe um subsistema no ordenamento jurídico, que prevalece sobre os demais – exceto, claro, o próprio sistema da Constituição, como de resto qualquer norma jurídica de hierarquia inferior – sendo aplicável às outras normas apenas de forma supletiva e complementar.
[...] O importante mesmo aqui é destacar que o CDC, como lei ordinária, funciona como um subsistema próprio, dentro do modelo jurídico constitucional existente, e que ele não está submetido a nenhum comando hierárquico superior, com exceção, claro, do próprio texto constitucional, que lhe é superior, como está também acima de toda e qualquer outra norma jurídica não-constitucional. [79]
Mais adiante Rizzato enfatiza ainda mais o revestimento principiológico do CDC, ao ponto deste Codex impedir que outra norma infraconstitucional contrária às suas disposições e regras gere eficácia jurídica. Segundo o autor, estando configurada uma relação jurídica de consumo o CDC se impõe mesmo em que pese a especificidade de outra lei, claro estando conflitantes sobre a mesma matéria de relação consumerista, in verbis:
Ademais, o CDC é uma lei pricipiológica, modelo até então inexistente no Sistema Jurídico Nacional.
Como lei principiológica entende-se aquela que ingressa no sistema jurídico, fazendo, digamos assim, um corte horizontal, indo, no caso do CDC, atingir toda e qualquer relação jurídica que possa ser caracterizada como de consumo e que esteja também regrada por outra norma jurídica infraconstitucional. Assim, por exemplo, um contrato de seguro de automóveis continua regulado pelo Código Civil e pelas demais normas editadas pelos órgãos governamentais que regulamentem o setor (Susep, Instituto de Resseguros etc.), porém estão tangenciados por todos os princípios e regras da lei n. 8.078/90, de tal modo que, naquilo que com eles colidirem, perdem eficácia por tornarem-se nulos de pleno direito. [80]
Também Nelson Nery Júnior tem o entendimento de que o CDC se reveste de caráter principiológico, de tal maneira que a aplicação, e.g., de leis civis e comerciais às relações de consumo só deve ser feita se não afrontar o subsistema de proteção de consumidor, na forma emanada daquele codex, in verbis:
Evidentemente, as leis civis e comerciais são aplicáveis às relações jurídicas de consumo, para integração de lacuna por situação não prevista pelo Código, naquilo que não contrariar o sistema de defesa do consumidor regulado pelo CDC.
[...]
Pensar-se o contrário é desconhecer o que significa o microssistema do Código de Defesa do Consumidor, como lei especial sobre relações de consumo e lei geral, principiológica, à qual todas as demais leis especiais setorizadas das relações de consumo, presentes e futuras, estão subordinadas. [81]
Mais adiante Nelson Nery Júnior mostra-se ainda mais categórico a respeito da natureza principiológica do CDC, que é, por essa razão, de abordagem sintética. Nesse sentido, reforça o autor a necessidade das demais normas se submeterem às regras genéricas do CDC, conforme se depreende abaixo:
O Código de Defesa do Consumidor, por outro lado, é lei principiológica. Não é analítica, mas sintética. Nem seria de boa técnica legislativa aprovar-se lei de relações de consumo que regulamentasse cada divisão do setor produtivo (automóveis, cosméticos, eletroeletrônicos, vestuário etc.). Optou-se por aprovar lei que contivesse preceitos gerais, que fixasse os princípios fundamentais das relações de consumo. É isso que significa ser uma lei principiológica. Todas as demais leis que se destinarem, de forma específica, a regular determinado setor das relações de consumo deverão submeter-se aos preceitos gerais da lei principiológica, que é o Código de Defesa do Consumidor. [82]
De forma semelhante, Cláudia Lima Marques ao tratar dos conflitos entre leis, que é o caso em análise, qual seja Lei Complementar 109/01 e a Lei 8.078/90 – CDC – pondera que os critérios de temporalidade e especialidade não são suficientes para equacionar tais confrontos, cabendo recorrer ao critério de hierarquia, em que se impõe como parâmetro a Constituição Federal. Nesse sentido, é oportuno transcrever comentários feitos por Norberto Bobbio, citado pela autora:
[...] o aplicador da lei deve priorizar o critério hierárquico, que é o mais forte e mais importante em relação ao critério cronológico ou ao critério da especialização [...] Certo é que, em caso de conflito entre as soluções propostas pelo critério hierárquico e qualquer dos outros dois, o da anterioridade e o da especialização, prevalece o critério hierárquico, mas também certas relativizações são necessárias. O guia maior é a Constituição e os valores que impõem, como vimos nos capítulos anteriores.[83]
A própria doutrinadora Lima Marques apresenta ilustrações de conflitos de normas, e.g., leis especiais de planos de saúde, lei sobre incorporação imobiliária, em que há situações envolvendo o consumidor. Nessas hipóteses, caberia interpretação e aplicação sistemática, sob a perspectiva de valores e princípios constitucionais, possibilitando complementaridade das normas, o que a autora denomina de diálogo das fontes. In verbis:
[...] Neste caso (conflito de leis especiais, e.g., CDC e lei planos de saúde), diante do disposto no § 2º do art. 2º da LICC e a visão de sistema, pressupõe-se que o legislador não esqueceu que a CF/88 mandou proteger os consumidores, a chamar a aplicação sistemática das normas do CDC – logo, há diálogo de coerência e de complementaridade, aplicando-se as duas leis especiais complementarmente e em uma convivência conforme aos valores da CF/88. [84]
No julgamento da Adin dos bancos (nº 2.591), conforme Lima Marques, o Ministro Joaquim Barbosa buscou o balanceamento das questões evocadas no caso sub judice com base no “diálogo das fontes”. Nesse sentido, o Ministro defendeu na fundamentação da referida Adin relação de complementaridade entre as normas, estando subjacente nesse tipo de abordagem a preponderância dos valores e princípios constitucionais, conforme se depreende do trecho abaixo, remetido pela autora:
A Emenda Constitucional 40, na medida em que conferiu maior vagueza à disciplina constitucional do sistema financeiro (dando nova redação ao art. 192), tornou ainda maior esse campo que a professora Cláudia Lima Marques denominou ‘diálogo das fontes’ – no caso, entre a lei ordinária (que disciplina as relações consumeristas) e as leis complementares (que disciplinam o sistema financeiro nacional). Não há, a priori, por que falar em exclusão formal entre essas espécies normativas, mas, sim, em ‘influências recíprocas’, ‘em aplicação conjunta das duas normas ao mesmo tempo e ao mesmo caso, seja complementarmente, seja subsidiariamente, seja permitindo a opção voluntária das partes sobre a fonte prevalente’. [85]
Entende-se que esse tipo de enfoque está intrinsecamente ligado ao movimento chamado pela doutrina de constitucionalização do direito ou neoconstitucionalismo, que consiste na força normativa da Constituição Federal, aí considerando seu papel supremo e aglutinador na interpretação e aplicação das normas infraconstitucionais. É oportuno, então, recorrer às ponderações sobre o tema feitas por Luís Roberto Barroso:
Nesse ambiente, a Constituição passa a ser não apenas um sistema em si – com sua ordem, unidade e harmonia – mas também um modo de olhar e interpretar todos os demais ramos do Direito. Este fenômeno, identificado por alguns autores como filtragem constitucional, consiste em que toda a ordem jurídica deve ser lida e apreendida sob a lente da Constituição, de modo a realizar os valores nela consagrados [...]
Em suma, a Constituição figura hoje no centro do sistema jurídico, de onde irradia sua força normativa, dotada de supremacia formal e material. Funciona, assim, não apenas como parâmetro de validade para a ordem infraconstitucional, mas também como vetor de interpretação de todas as normas do sistema. [86]
Dessa forma, aplicando-se hermenêutica sistemática, tendo a Constituição Federal como cânon máximo, e com enfoque principiológico, pode-se adotar, no caso concreto, a prevalência do contido no inciso XXXII do art. 5º da Constituição Federal combinado com o reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor, que é um dos princípios direcionadores da relação jurídica de consumo, na forma do inciso I do art. 4º do CDC diante dos serviços prestados por Entidade fechada de previdência complementar.
Então, o conflito entre a norma específica que rege o funcionamento dos fundos de pensão, isto é, a Lei Complementar 109/2001 e CDC é só aparente, dado o caráter principiológico deste último e suas raízes assentadas na Constituição Federal. Esta é a perspectiva de abordagem adotada por Leonardo Roscoe Bessa, consoante a sua afirmação abaixo:
Portanto, para solução dos casos difíceis, os conceitos precisam ser analisados sob perspectiva constitucional e funcional, vale dizer, verificando, em concreto, a presença da vulnerabilidade, sob os seus diversos aspectos (técnica, jurídica, fática, informacional, psíquica). Este critério hermenêutico deve ser utilizado para todas as definições de consumidor constantes na lei (art. 2º, 17 e 29) e, de modo mais genérico, para exame do âmbito de incidência do CDC. (grifos do autor) [87]
Prima facie, o comentário de Bessa indicado acima parece mitigar a incidência do CDC nos contratos envolvendo entidades fechadas de previdência complementar (EFPC), mas conjugando com outras intervenções do autor pontuadas alhures, não deixa dúvidas quanto ao seu posicionamento favorável à aplicação do CDC nessa espécie de relação. O que o doutrinador destacou acima foi a importância a ser dada à Constituição e ao reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor no caso concreto, a fim de se chegar às soluções de conflitos.
De forma semelhante, é preciso rechaçar a tese de que a entidade fechada de previdência complementar atua num ambiente restrito, não acessível a todas as pessoas indistintamente e não visar lucros, como se isso fosse suficiente para excluí-la do mercado. O fato de abranger um segmento específico não implica necessariamente estar fora do mercado. Os fundos de pensão estabelecem uma relação muito clara de “troca mercadológica”, que se processa mediante desembolso de determinado valor pelo consumidor com o propósito de se proteger de riscos existenciais – e.g., acidente, invalidez – ou resguardar sua renda quando encerrar suas atividades laborais, ficando tais contraprestações a cargo das entidades.
Consoante mencionado alhures, o conceito de mercado utilizado nesta pesquisa é o propugnado por Newton de Lucca, que remete, essencialmente, à ideia de troca. De forma semelhante, Philip Kotler – numa análise mais abrangente e com enfoque na ciência da Administração, cujo pano de fundo traz ideia de necessidade – define marketing como um sistema de troca, o qual consiste em receber algo dando determinado valor como forma de retribuição, in verbis:
Marketing ocorre quando as pessoas decidem satisfazer necessidades e desejos através da troca. A troca é o ato de obter-se um objeto desejado dando alguma coisa em retribuição [...]
Como meio de satisfazer necessidades, a troca apresenta muitas vantagens. A pessoa não precisa apropriar-se de objetos alheios ou viver de caridade [...] Pode dedicar-se a fazer o que sabe e trocar isso pelos artigos de que necessita, feitos por outrem. Assim, a troca permite que uma sociedade produza muito mais do que em qualquer outro sistema alternativo. (grifos nossos) [88]
Mais adiante, Kotler esclarece que o conceito de troca – marketing – conduz à definição de mercado, que “é o grupo de compradores reais e potenciais de um produto. Esses compradores têm uma necessidade ou desejo específico, que pode ser satisfeito através da troca”. Segundo o autor, a economia hodierna estriba-se no princípio da divisão de trabalho, de modo que cada indivíduo se especializa em produzir alguma coisa, recebe um pagamento, possibilitando adquirir os bens de que precisa. A idéia de troca perpassa essa cadeia produtiva que dispõe de vários atores, tais como, produtor, trabalhador, intermediário e consumidor, senão vejamos:
A economia moderna opera com base no princípio de divisão de trabalho, onde cada pessoa se especializa em produzir alguma coisa, recebe pagamento pela sua produção e com esse dinheiro compra as coisas de que necessita. Portanto, a economia moderna existe em abundância no mercado. Os produtores vão ao mercado de recursos (mercados de matéria-prima, mercados de trabalho, mercados financeiros), compram recursos, transforma-nos em bens e em serviços e vendem-nos aos intermediários, que os vendem aos consumidores. Os consumidores vendem seu trabalho, pelo qual recebem uma renda para pagar pelos bens e serviços que compram [...] [89]
Nesse sentido, passa a ficar claro o mercado de consumo em que atua a previdência privada fechada a partir das próprias informações disponibilizadas pela ABRAPP - Associação Brasileira das Entidades Fechadas de Previdência Complementar – Consolidado Estatístico de Dezembro/2012, em que 261 fundos de pensão prestam serviços previdenciários a mais de 6,6 milhões de pessoas, aí computando 2.329.741 participantes, 3.664.294 dependentes e 675.275 assistidos. [90]
No mesmo relatório de Consolidado Estatístico da ABRAPP é evidenciada a evolução de ativos – o ativo representa o disponível + realizável + permanente – dos fundos de pensão, cuja composição conta com contribuições de patrocinadores ou instituidores, bem como com mensalidades desembolsadas por participantes de planos de benefícios, que são os consumidores de serviços previdenciários. Dessa forma, partem de R$ 320 bilhões, em 2005, para R$ 668 bilhões em 2012. [91]
Ainda no relatório de Consolidado Estatístico da ABRAPP são demonstrados os benefícios pagos a participantes e assistidos, traduzindo como serviços previdenciários prestados pelos fundos de pensão – no sentido de atividade econômica. Na categoria de Aposentadoria programada, são pagos R$ 10.165.411 mil, para um público de 456.467, ficando o valor médio mensal em R$ 3.712,00. Na categoria Aposentadoria por invalidez, são desembolsados R$ 503.763 mil, a um segmento de 52.170, ficando o valor médio mensal em R$ 1.609,00. Por último, no tipo Pensões, são pagos R$ 1.513.007 mil a 140.681 pessoas, cujo valor médio mensal está situado em R$ 1.792,00. Consigne-se que os valores desembolsados no total de R$ 12.182.181 mil são acumulados até junho/12 e a quantidade de 649.318 de beneficiários estão baseados no IN MPS/SPC nº 24, de 05.06.08.
É interessante registrar que, de acordo com o referido Consolidado Estatístico da ABRAPP, os fundos de pensão têm apresentado, historicamente, superávit das contribuições administradas, o que não deixa de ser também um indicativo de que as EFPC estão inseridas no mercado, atuando como fornecedoras de serviços previdenciários – atividade econômica –, ainda que seja para um grupo específico. Nesse sentido, em 2007 houve superávit histórico de R$ 74,8 bilhões e no período de 2009 a 2012 a média do superávit ficou em R$ 55,2 bilhões. [92]
Dessa forma, em troca da prestação de serviços previdenciários, as entidades fechadas de previdência complementar recebem contribuições ou parcelas mensais de acordo com o plano de benefício do participante, configurando um mercado de consumo tanto nos termos do § 2º, do art. 3º, do CDC, quanto sob a perspectiva conceitual da economia e administração, conforme indicado logo acima.
Neste caso, não importa que seja sociedade ou fundação sem fins lucrativos, a despeito de regramento específico do § 1º do art. 31, da LC nº 109, de 2001. Assim, é suficiente o desenvolvimento de atividade econômica no mercado de consumo, mediante recebimento de remuneração e sem finalidade lucrativa – o que restou demonstrado – ainda que essa atuação ocorra numa espécie de nicho de mercado ou segmento restrito, cuja acessibilidade seja limitada. Tal raciocínio pode ser depreendido a partir da afirmação categórica de Leonardo Roscoe Bessa quando trata do tema:
Registre-se, desde já, que atividade remunerada não significa necessariamente auferição de lucros. A distinção doutrinária que se faz entre associação e sociedade é justamente a finalidade de lucro desta última, vale dizer, a repartição ou distribuição de parte da receita com os sócios. Nas associações como as fundações, embora não visem ao lucro, podem exercer atividade econômica e remunerada. Se o fazem profissionalmente, é, para fins de aplicação do CDC, consideradas ‘fornecedor’. (grifos nossos) [93]
Outro argumento que não se sustenta, mas que é defendido por aqueles que são contrários à aplicação do CDC nas relações jurídicas entre participantes e fundos de pensão, consiste no enquadramento diferenciado na Constituição Federal dispensados aos temas relação de consumo e previdência privada, sendo que este último se encontra inserto na “Ordem Social” (Título VIII, art. 202), enquanto o outro está localizado na parte “Da Ordem Econômica e Financeira” (Título VII, art. 170, inciso V).
Este entendimento carece de fundamentação jurídica, porquanto acaba por adotar hermenêutica isolada, cujos temas têm realmente pesos constitucionais distintos, tendo o CDC certa prevalência. Assim, não custa recordar que o tema de direito do consumidor está insculpido nos direitos fundamentais, art. 5º, inciso XXXII, da Constituição Federal, num reconhecimento claro do legislador constituinte a respeito de sua importância. Tanto é assim que o legislador buscou blindar os direitos fundamentais de ingerência ou agressões tanto por parte do Estado quanto por parte de terceiros, conforme afirma Gilmar Ferreira Mendes, in verbis:
[...] Já a colocação do catálogo dos direitos fundamentais no início do texto constitucional denota a intenção do constituinte de emprestar-lhes significado especial [...]
Analisando as posições jurídicas fundamentais que integram os direitos de defesa, importa consignar que estes não se limitam às liberdades e igualdades (direito geral de liberdade e igualdade, bem como suas concretizações), abrangendo, ainda, as mais diversas posições jurídicas que os direitos fundamentais intentam proteger contra ingerências dos poderes públicos e também contra abusos de entidades particulares, de forma que se cuida de garantir a livre manifestação da personalidade, assegurando uma esfera de autodeterminação do indivíduo. [94]
Além disso, a interpretação de dispositivo constitucional per se – típico do solipsismo cartesiano – ou com base na sua localização constitucional pode conduzir a conclusões reducionistas, precipitadas e distorcidas em relação à concretude, ou seja, ao problema que incitou o diálogo com a norma, cuja relação exige uma espécie de dialética processada entre o concreto e o abstrato e vice-versa. É oportuna a afirmação de Eros Roberto Grau, citado por Gilmar F. Mendes, de que “[...] A norma é produzida, pelo intérprete, não apenas a partir de elementos colhidos no texto normativo (mundo do dever ser), mas também a partir de elementos do caso ao qual ela será aplicada, isto é, a partir de dados da realidade (mundo do ser)”. [95]
Assim, no problema em análise, não custa reafirmar que se identifica claramente a figura do participante de plano de benefício (consumidor) que demanda serviço previdenciário a fundos de pensão (fornecedor), a fim de obter aposentadoria ou proteção em situações adversas que possam ocorrem em sua vida (serviços). Tal relação jurídica ocorre de forma autônoma e facultativa em relação à Previdência Oficial, de modo que ambos entabulam contrato típico de relação de consumo, conforme art. 2º e 3º do CDC. Neste caso, é oportuna a firmação de Gilmar F. Mendes “A norma constitucional, assim para que possa atuar na solução de problemas concretos, para que possa ser aplicada, deve ter o seu conteúdo semântico averiguado, em coordenação com o exame das singularidades da situação real que a norma pretende reger[...]”. [96]
Por último, verifica-se que a jurisprudência, com base na amostragem, sinaliza como favorável à aplicação do CDC nos conflitos entre participantes e fundos de pensão, mesmo naqueles tribunais em que se identificou julgado com entendimento divergente da orientação da Súmula 321 do STJ. Nestes últimos tribunais, via de regra, há o reconhecimento da incidência daquele codex nessa espécie de lide, fazendo-se ressalva para não aplicá-lo indiscriminadamente em todas as situações, de forma apriorística.
Em outros termos, tais tribunais que discrepam do entendimento já pacificado no STJ a respeito da temática tentam minimizar o caráter irradiador e de imposição do CDC – “é um subsistema que prevalece sobre os demais”, conforme defende Rizzato [97] – criando exceções para aplicação deste codex, e.g., quando o conflito envolve o desequilíbrio da situação financeira e atuarial da entidade fechada de previdência complementar, consoante se teve oportunidade de abordar.
Um possível argumento para isso seria que, muito embora as EFPC tenham uma perspectiva privada, facultativa, liberal, a partir do momento em que a pessoa se ingressa no grupo, é fundamental não perder de vista a finalidade do todo, da coletividade, a fim de garantir a saúde financeira do fundo de pensão e, por conseguinte, assegurar os benefícios e coberturas particulares.
No entanto, a problemática acima certamente é controvertida e merece pesquisa específica para maior aprofundamento, inclusive para confrontar com princípios como o da vulnerabilidade (técnica, jurídica, econômica, informacional), do equilíbrio contratual e da hipossuficiência, os quais passaram a ser reconhecidos sempre em favor do consumidor aprioristicamente após longo processo de embate jurídico. No caso particular dos fundos de pensão, não custa lembrar que são pessoas jurídicas que, embora constituídas sob a forma de sociedades ou fundações sem fins lucrativos, detém poderio econômico, jurídico, informacional, sistema de governança e estrutura organizacional, os quais colocam o consumidor em situação de desvantagem e de vulnerabilidade na relação contratual.