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Controle de convencionalidade: os direitos humanos como parâmetro de validade das leis

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Agenda 14/06/2013 às 09:03

Capítulo IV. A POSIÇÃO DOS TRATADOS DE DIREITOS HUMANOS NA CR 88 – A TEORIA É COMPATÍVEL COM NOSSO ORDENAMENTO?

Vimos que a teoria do controle de convencionalidade é uma realidade no âmbito da jurisprudência da Corte Interamericana de direitos, para quem a aferição da compatibilidade entre o ordenamento jurídico nacional e os tratados internacionais sobre direitos humanos é uma obrigação não só do governo, mas de todo o Estado, inclusive do próprio Poder Judiciário.

Contudo, deve-se ter em mente que a própria Corte faz referência, no julgamento do caso “Trabajadores Cesados del Congreso (Aguado Alfaro y otros) contra Perú”[12] ao fato de que o exercício dessa atividade pelo Judiciário nacional observa os limites de competência estabelecidos na legislação nacional (sem afastar, repise-se, eventual responsabilidade internacional pelo descumprimento da convenção).

Nesse contexto, faz-se necessária uma análise do da posição hierárquica dos tratados de direitos humanos em nosso ordenamento jurídico, pois tal esclarecimento é requisito imprescindível para o prosseguimento na análise dos contornos nacionais de nosso estudo sobre o controle de convencionalidade das leis.

Trata-se de tema polêmico, sendo digna de nota a oscilação do posicionamento do Supremo Tribunal Federal, onde ainda não há consenso sobre o assunto. Em decisão histórica, proferida em 3 de dezembro de 2008 (HC 87.585/TO e RE 466.343/SP) por 5 votos a 4, o STF mudou seu posicionamento, passando a admitir que os tratados internacionais sobre direitos humanos têm valor hierárquico prevalente sobre a legislação nacional.

Na ocasião, onde se questionava a impossibilidade da prisão civil pela aplicação do Pacto de San José da Costa Rica, duas correntes lideraram os debates: de um lado, vencedora na ocasião do julgamento e capitaneada pelo Ministro Gilmar Mendes, a tese da supralegalidade dos tratados, situados em posição intermediária entre a Constituição e a produção normativa nacional; enquanto a tese minoritária foi proposta pelo Ministro Celso de Mello, no sentido de que os tratados internacionais sobre direitos humanos teriam valor de norma materialmente constitucional.

Cumpre destacar que a questão está longe de ser pacificada, mesmo porque dois ministros não participaram da votação, mas a importância histórica da decisão reside em que, ainda que não haja consenso sobre a natureza constitucional ou infraconstitucional desse tipo de tratado, houve significativo avanço em relação à jurisprudência anterior do STF, que colocava em nível de equivalência a legislação ordinária e todos os tratados internacionais (mesmo que sobre direitos humanos)[13].

Assim, temos que a predominância dos tratados de direitos humanos sobre a legislação infraconstitucional já é a posição dominante no STF, embora ainda haja dúvidas, na corte constitucional, acerca da natureza desses tratados, se constitucional ou supralegal. Não há dúvidas, entretanto, de que a matéria ainda será tema de grande discussão na jurisprudência nacional, de modo que se faz necessária a análise dos dispositivos constitucionais pertinentes.

A discussão sobre a natureza dos tratados de direitos humanos na doutrina pátria apresenta divisão desde a promulgação da Constituição de 1988. O cerne da controvérsia reside na redação do parágrafo 2º do art. 5º da CR, constante do capítulo I (dos direitos e deveres individuais e coletivos) do título II (dos direitos e garantias fundamentais):

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

(...)

§ 2º - Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte. (grifos nossos)

Posteriormente, com a finalidade de trazer luz à controvérsia inaugurada acerca da natureza desses tratados, o legislador constituinte derivado acrescentou, por meio da EC 45/2004, um parágrafo 3º ao art. 5º da CR, com a seguinte redação:

§ 3º Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais. (grifei)

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Ocorre que, ao invés da esperada pacificação da matéria, o que se verificou foi a persistência da controvérsia na doutrina, pois não esclareceu com precisão a situação das três situações no que diz respeito aos tratados internacionais sobre direitos humanos: 1) tratados anteriores à vigência da EC 45/04; 2) tratados posteriores à EC 45/04, ratificados pelo quorum qualificado do parágrafo 3º e, portanto, equivalentes às emendas constitucionais; 3) tratados posteriores à EC 45, mas ratificados pelo procedimento comum, sem utilização do parágrafo 3º.

Pela análise do texto constitucional, data vênia alguns entendimentos que buscam diferenciar a situação do primeiro e do terceiro caso (tratados ratificados pelo quorum simples, antes ou depois da vigência da EC 45/04), adotamos aqui a posição de Mazzuoli quanto à equivalência entre as duas situações. Isso porque o §3º do art. 5º não cria uma obrigação de que os tratados de direitos humanos sejam aprovados pelo quorum qualificado. Ao revez, o dispositivo constitucional autoriza essa ratificação qualificada, mas sem determinar que o Congresso o faça, de modo que está criando uma categoria nova de tratados[14].

Por sua vez, não restam dúvidas de que os tratados de direitos humanos, quando aprovados em cada casa do Congresso nacional, em dois turnos, pela maioria qualificada de 3/5 dos votos de seus membros, serão equivalentes a emendas constitucionais, o que implica dizer que terão natureza de norma material e formalmente constitucional, uma vez que, assim com as próprias emendas constitucionais, têm o condão de até mesmo reformar a constituição.

Adotada essa premissa, verifica-se que, quanto aos tratados aprovados sem a maioria qualificada do parágrafo 3º do art. 5º, a alteração do texto constitucional teve o mérito de reforçar o caráter prevalente dos tratados internacionais de direitos humanos sobre a legislação infraconstitucional (e sobre os demais tratados internacionais), implicando em reflexos na jurisprudência do próprio STF, como visto acima, pela superação da tese anterior de equivalência entre as convenções de direitos humanos e a legislação ordinária.

Nesse sentido, importa transcrever o seguinte trecho do voto do Min. Gilmar Mendes no julgamento do HC87.585:

Não se pode negar, por outro lado, que a reforma também acabou por ressaltar o caráter especial dos tratados de direitos humanos em relação aos demais tratados de reciprocidade entre os Estados pactuantes, conferindo-lhes lugar privilegiado no ordenamento jurídico.(...) a mudança constitucional ao menos acena para a insuficiência da tese da legalidade ordinária dos tratados e convenções internacionais já ratificados pelo Brasil, a qual tem sido preconizada pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal desde o remoto julgamento do RE nO SO.004/SE, de relatoria do Ministro Xavier de Albuquerque (julgado em 1.6.1977; DJ 29.12.1977) e encontra respaldo em um largo repertório de casos julgados após o advento da Constituição de 1988. (...) Por conseguinte, parece mais consistente a interpretação que atribui a característica de supralegalidade aos tratados e convenções de direitos humanos.

Contudo, também merece destaque a posição adotada pelo Ministro Celso de Mello, amparado por doutrina de escol, para quem os tratados de direito internacional sobre direitos humanos, ainda que ratificados por quorum simples, possuem natureza de norma materialmente constitucional, integrando o bloco de constitucionalidade, uma vez que o §2º da CR representa cláusula de abertura de direitos, com a finalidade de proteger os direitos fundamentais da pessoa humana. Nesse sentido, transcrevo o seguinte trecho do voto do ilustre Ministro Celso de Mello, também no julgamento do HC87.585:

“Reconheço, no entanto, Senhora Presidente, que há expressivas lições doutrinárias – como aquelas ministradas por ANTÔNIO AUGUSTO CANÇADO TRINDADE (“Tratado de Direito Internacional dos Direitos Humanos”, vol. I/513, item n. 13, 2ª ed., 2003, Fabris), FLÁVIA PIOVESAN (“Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional”, p. 51/77, 7ª ed., 2006, Saraiva), CELSO LAFER (“A Internacionalização dos Direitos Humanos: Constituição, Racismo e Relações Internacionais”, p. 16/18, 2005, Manole) e VALERIO DE OLIVEIRA MAZZUOLI (“Curso de Direito Internacional Público”, p. 682/702, item n. 8, 2ª ed., 2007, RT), dentre outros eminentes autores – que sustentam, com sólida fundamentação teórica, que os tratados internacionais de direitos humanos assumem, na ordem positiva interna brasileira, qualificação constitucional, acentuando, ainda, que as convenções internacionais em matéria de direitos humanos, celebradas pelo Brasil antes do advento da EC nº 45/2004, como ocorre com o Pacto de São José da Costa Rica, revestem-se de caráter materialmente constitucional, compondo, sob tal perspectiva, a noção conceitual de bloco de constitucionalidade.

De toda sorte, o que se verifica do contexto acima traçado é que, especialmente em virtude da promulgação da EC 45, não há mais dúvidas quanto à prevalência dos tratados internacionais de direitos humanos sobre toda a produção normativa infraconstitucional, seja pelo caráter de equivalência de emenda constitucional dos tratados aprovados pela sistemática do §3º da CR, seja pelo caráter supralegal (ou materialmente constitucional, conforme a posição do Ministro Celso de Mello) dos demais tratados de direitos humanos em vigor, por decorrência do §2º da Constituição da República.

Como se vê, a teoria do controle de convencionalidade possui fundamentação fortemente ancorada no texto constitucional, não restando dúvidas quanto à sua compatibilidade com o ordenamento jurídico brasileiro. Trata-se, de fato, de teoria que complementa a ideia de supremacia da constituição, como reforço das garantias fundamentais e da dignidade humana.


Capítulo V. MODALIDADES DE CONTROLE DE CONVENCIONALIDADE

O controle de convencionalidade, consoante visto nos capítulos anteriores, pode ter âmbito nacional (quando realizado por órgãos do próprio Estado) ou supranacional (caso levado a efeito por uma corte internacional).

Isso porque, conforme restou assentado anteriormente, já não se pode negar que, no contexto atual, a validade da legislação já não depende apenas de sua compatibilidade com a Constituição da República, pois é imperiosa a sua adequação, também, às convenções internacionais de proteção aos direitos humanos.

No âmbito do controle nacional de convencionalidade, deve-se ter em mente a existência das duas categorias de tratados internacionais sobre direitos humanos em nosso ordenamento, conforme debatido no capítulo anterior, em razão do procedimento especial de recepção inaugurado por meio do §3º do art. 5º da CR, acrescentado pela EC45/04.

Quando um tratado é aprovado por essa sistemática, com quorum qualificado e, portanto, natureza equivalente à de emenda constitucional, admitem-se no controle de convencionalidade todos os instrumentos pertinentes ao controle de constitucionalidade, inclusive as ações constitucionais, pois a convenção, nesse caso, tem natureza de norma formal e materialmente constitucional. Desse modo, o controle de convencionalidade das referidas normas poderá ser tanto difuso, quando realizado na via de exceção, quanto concentrado, tomando-se para tanto as ações diretas de defesa da constituição.

Por sua vez, nos tratados apenas materialmente constitucionais (ou supralegais), que são aqueles que, apesar de versarem sobre direitos humanos, não foram submetidos à aprovação por quorum qualificado do §3º do art. 5º da CR, o controle jurisdicional de convencionalidade será sempre difuso, não sendo possível a utilização da via concentrada, em razão da falta de natureza formalmente constitucional.

Nesse sentido, magistral a lição de Mazzuoli[15], que ensina:

Em suma, todos os tratados que formam o corpus juris convencional dos direitos humanos de que um Estado é parte servem como paradigma ao controle de constitucionalidade/convencionalidade, com as especificações que se fez acima: a) tratados de direitos humanos internalizados com quorum qualificado (equivalentes às emendas constitucionais) são paradigma do controle concentrado (para além, obviamente, do controle difuso) de convencionalidade, cabendo, v.g., uma ADI no STF a fim de invalidar norma infraconstitucional com eles incompatível; b) tratados de direitos humanos que têm somente “status de norma constitucional” (não sendo “equivalentes às emendas constitucionais” dada a não aprovação pela maioria qualificada do art. 5º, §3º) são paradigma apenas do controle difuso de convencionalidade, o qual pode ser exercido por qualquer juiz ou tribunal num caso concreto. Nesse último caso, os juízes e tribunais se fundamentam em tais tratados (de status constitucional) para declarar inválida uma lei que os afronte, da mesma maneira que se fundamentam na Constituição (no controle difuso de constitucionalidade) para invalidar norma infraconstitucional que contra o Texto magno vem a se insurgir.

O pioneiro autor nacional a tratar sobre o tema, como se vê no trecho acima, bem identificou a existência de duas modalidades de controle jurisdicional de convencionalidade, qual seja, o controle difuso e o concentrado. Cumpre destacar que, no caso do controle concentrado, sempre haverá um concomitante controle de constitucionalidade, ante a natureza também formalmente constitucional da convenção. Isso se explica porque as cortes judiciais nacionais, dentre elas as cortes constitucionais, estão autorizadas a realizar tanto um controle quanto o outro.

Não há que se falar, nesse caso, em controle apenas de constitucionalidade, pois o que existe é um controle concomitante, realizado pela Corte Constitucional. Ocorre que, nessas situações, o controle de constitucionalidade ocorrerá em instância definitiva, enquanto a convencionalidade ainda poderá ser submetida a outra instância de apreciação, de caráter supranacional, razão pela qual pode-se falar em controle de constitucionalidade/convencionalidade nesse caso específico.

Finalmente, por serem os tratados internacionais sobre direitos humanos considerados pressupostos de validade das normas infraconstitucionais, tanto para a jurisprudência da Corte Interamericana quanto do STF[16], também mostra-se possível a realização do controle preventivo de convencionalidade, nos mesmos moldes do controle preventivo de constitucionalidade, que diz respeito à fase de tramitação dos projetos de lei, por meio das comissões parlamentares ou mesmo mediante veto presidencial.

É possível, dessarte, identificar com clareza as modalidades do controle de convencionalidade em nosso ordenamento, dividindo-se em controle supranacional (quando realizado pela Corte Interamericana) ou nacional, com a subdivisão deste último preventivo (quando político) ou repressivo (quando jurisdicional). Por sua vez, o controle jurisdicional (e nacional) de convencionalidade comporta exercício tanto pela via difusa (quando em matéria de exceção, perante qualquer juiz ou Tribunal competente para a demanda) quanto pela via concentrada (quando houver aprovação do tratado internacional na forma do §3º do art. 5º da CR).

Sobre o autor
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LEITE, Marcos Thadeu Alvarenga. Controle de convencionalidade: os direitos humanos como parâmetro de validade das leis. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3635, 14 jun. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/24711. Acesso em: 23 dez. 2024.

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