Símbolo do Jus.com.br Jus.com.br
Artigo Selo Verificado Destaque dos editores

Fundamentação das decisões judiciais: um repúdio ao juiz esponja

Agenda 03/07/2013 às 10:00

Juiz esponja é aquele que profere decisões que possuem como único fundamento a jurisprudência. Propomos aos membros do Poder Judiciário que julguem nulas tais decisões, total ou parcialmente, por violarem o princípio da fundamentação.

Da mesma tribo do juiz técnico-apriorístico é o juiz fetichista da jurisprudência. Este é o juiz-burocrata, o juiz de fichário e catálogo, o juiz colecionador de arestos segundo a ordem alfabética dos assuntos. É o juiz que se põe genuflexo diante dos repertórios jurisprudenciais, como se fossem livros sagrados de uma religião cabalística. Para ele, a jurisprudência é o direito imutável e eterno: segrega-se dentro dela como o anacoreta na sua gruta, indiferente às aventuras do mundo. Será inútil tentar demovê-lo dos seus ângulos habituais. Contra a própria evidência do erro, ele antepõe, enfileirados cronologicamente, uma dúzia ou mais de acórdão, e tranqüilo, sem fisgadas de consciência, repete o ominoso brocardo: error communis facit jus. À força de se impregnar de doutrina e jurisprudência, o juiz despersonaliza-se. Reduz sua função ao humilde papel de esponja, que só restitui a água que absorve.

Esse é um breve trecho do discurso de posse de Nelson Hungria no cargo de desembargador do Tribunal de Justiça do Distrito Federal, em 1944.[1] Já naquela época, há quase sete décadas, o grande penalista percebia o mal que é a figura do juiz esponja.

Esse tipo de juiz, que hoje está presente desde os juizados especiais até os tribunais superiores, não pensa o direito e não faz justiça. Os fundamentos de suas decisões são resumidos num frenético copiar e colar de acórdãos, de preferência retirados dos repositórios online de jurisprudência. Nas entrelinhas de suas sentenças e votos, os juízes, desembargadores e ministros esponja se fundamentam não no direito, mas no que em um dia já decidiram que era direito. E esse tipo de decisão é frequente em todos os ramos do saber jurídico: civil, trabalhista, penal etc. Na área penal, a “esponjice” se torna mais repugnante ainda, já que se decide sobre a liberdade das pessoas com base unicamente em acórdãos encontrados por sorte.

O juiz esponja não pensa em ler as alegações de cada uma das partes, refletir sobre elas, ainda que brevemente, e depois proferir sua decisão; pensa, antes de tudo, em ver como a jurisprudência está decidindo sobre o tema. O que ele encontrar em sua pesquisa é o que ele decide, seja lá o que for e seja lá qual o fundamento.

Não estamos aqui falando da odiosa figura do juiz esponja apenas por não ter sobre o que falar mal. Nem estamos em favor de réus, nem de autores ou acusadores. Estamos em favor da justiça e, sobretudo, em favor da Constituição brasileira. É que a Constituição Federal, mais precisamente em seu art. 93, IX, estabelece o princípio da fundamentação das decisões judiciais, cominando nulidade à inobservância desse mandamento.  Por fundamentação, considerando que esse princípio é verdadeira garantia do Estado de Direito, deve-se entender fundamentação concreta, plausível, conforme o direito e construída sobre bases racionais. Veja-se que, se o magistrado diz “decido assim porque assim quero decidir”, a rigor fundamentou sua decisão, vale dizer, deu-lhe um porquê. Mas uma fundamentação como essa não pode ser tolerada em um Estado pautado por um mínimo de legalidade, motivo pelo qual se propõe a interpretação extensiva dada do princípio da fundamentação das decisões judiciais.

A conclusão inexorável é que um pronunciamento jurisdicional baseado unicamente em jurisprudência é nulo por ausência de fundamentação. Lançar argumentos de autoridade num papel, assiná-lo e dizer que é uma sentença ou acórdão é não pensar, é não valorar o caso concreto de acordo com a racionalidade. É manifestação de desídia.

A afirmação que ora se faz não é um clamor vazio por intelectualidade no Judiciário. Parafraseando o que disse Hungria no mesmo discurso citado no início, o juiz não precisa citar de Euclides até os geômetras da quarta dimensão para dizer que o menor caminho entre dois pontos é uma reta. Ele precisa, e por força de sua própria função, ter um mínimo de consideração pelas partes no litígio que julga; deve ler as peças e apreciar as alegações feitas, acolhendo-as ou não por razões que explicitar, e não apenas porque a jurisprudência diz que a coisa se resolve desse ou daquele jeito.

Se a esponjice for tida como doutrina oficial do Poder Judiciário, bom será que acabemos com os advogados e com os membros do Ministério Público. Ora, qual o porquê de sentar sobre a mesa, folhear pilhas de arquivos, ler livros e livros, escrever uma bela peça e pedir para juntá-la em autos, se o juiz simplesmente pode por termo à discussão invocando um julgado qualquer?

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

Aliás, será melhor ainda, em nome da boa (e velha) esponjice, fulminar de morte o princípio da inércia judicial, uma das garantias da imparcialidade dos julgadores. Se a jurisprudência é o caminho, a verdade e a vida e se quem crê nela não morrerá, transformemos todos os nossos juízes em inquisidores e mandemos que saiam batendo a esmo nas portas dos cidadãos, procurando litígios e resolvendo-os instantaneamente com uma ementa tirada do bolso.

Se a esta altura o leitor está muito ofendido e pensando que a doutrina da esponja é necessária para acelerar a justiça, tendo inclusive sido acolhida pelo legislador no Código de Processo Civil[2], convido-o a refletir mais a fundo sobre tudo o que foi um tanto jocosamente exposto neste breve escrito. Convido-o a se colocar na posição de parte de um litígio decidido por um esponja, ou, então, na posição de advogado que vê seu trabalho e tempo perdido, superado pela singela citação do acórdão X da Turma Y do Tribunal Z. Será que é esse tipo de Justiça que queremos? Será que queremos estagnar a ciência do direito, que tem dentre seus fins ser aplicada no Judiciário, a mera compiladora de jurisprudência? Será que queremos acabar com a arte de pensar o direito e instaurar uma – verdadeira – ditadura do Judiciário, comandada pelos que assinam acórdãos? A Justiça realmente tem de ser célere a esse custo? É assim que se deve tomar partido sobre vidas e futuros? 

Não, não achamos ruim a citação de jurisprudência, tampouco propomos sua proibição. A insurgência é contra os que citam sem pensar, sem apreciar os argumentos das partes, sem sequer se debruçar dez segundos sozinho acerca da solução mais justa ao caso. Tanto é que, para se diferenciar o juiz esponja do que simplesmente cita jurisprudência, basta encará-lo e começar a perguntar por que ele decidiu como decidiu. O juiz normal, que apenas cita jurisprudência, dirá seus motivos e, se contrariado, buscará sustentar sua posição no debate jurídico. O juiz esponja, por certo, tergiversará, enervar-se-á e terminará por responder que só julga daquele jeito porque o Tribunal X o faz.

Concluindo, propomos, para aqueles membros do Poder Judiciário que, assim como nós, repudiam a figura do juiz esponja, que, para não permitir a proliferação da doutrina da esponjice no cenário jurídico brasileiro, considerem nulas, total ou parcialmente, todas as decisões judiciais que tenham como único fundamento a jurisprudência, por violar o princípio da fundamentação disposto no art. 93, IX, da Constituição Federal. Assim e só assim poderemos combater a total estagnação de nosso Poder Judiciário.


Notas

[1] Revista Forense, Agosto de 1944, Notas e Comentários, págs. 571/573.

[2] V.g. arts. 285-A e 557.

Sobre o autor
Leilson Roberto da Cruz Lima

Graduando em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Estagiário de Direito na área cível.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LIMA, Leilson Roberto Cruz. Fundamentação das decisões judiciais: um repúdio ao juiz esponja. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3654, 3 jul. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/24870. Acesso em: 2 mai. 2024.

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!