4 DOS DIREITOS TRANSINDIVIDUAIS
Os direitos coletivos em sentido lato também são denominados direitos transindividuais e caracterizam-se por pertencer a um grupo, categoria ou classe de pessoas que tenham entre si vínculo de natureza jurídica ou fática. Constitui gênero do qual são espécies os direitos individuais homogêneos, os direitos coletivos stricto sensu, e o mais importante para este estudo os direitos difusos[18].
HUGO NIGRO MAZZILLI[19] faz a distinção acerca dos interesses coletivos em sentido lato, a partir da Lei de Ação Civil Pública com a menção do CDC quanto a sua origem: a) se o que une interessados indetermináveis é a mesma situação de fato, mas o dano é individualmente indivisível (p. ex., os que assistem pela televisão à mesma propaganda enganosa), têm-se interesses difusos; b) se o que une interessados determináveis é a circunstância de compartilharem a mesma relação jurídica indivisível (como os consumidores que se submete à mesma cláusula ilegal em contrato de adesão), têm-se interesses coletivos em sentido estrito; c) se o que une interessados determináveis, com interesses divisíveis, é a origem comum da lesão (p. ex., os consumidores que adquirem produtos fabricados em série com o mesmo defeito), têm-se interesses individuais homogêneos.
No entanto, já existe corrente doutrinária favorável a extinção dessa classificação, uma vez que na prática torna-se difícil a individualização dos institutos, devendo ser observado cada caso concreto, pois há situações em que se pode identificar a presença dos três interesses, o que acaba por confundir juristas e operadores do direito.
Por outro lado, a partir do reconhecimento desses novos direitos pelo ordenamento jurídico brasileiro, criaram-se mecanismos próprios para a sua defesa em juízo, atribuindo a determinados entes (legitimados). A partir de então, começaram a surgir controvérsias relacionadas a questão da legitimidade ativa para a defesa dos direitos transindividuais, pois dependendo do interesse a ser tutelado o legitimado será aquele que possua relação aos seus fins.
4.1 Ação Civil Pública como Instrumento de Tutela dos Interesses Transindividuais
A ação civil pública como instrumento capaz de garantir a tutela jurisdicional dos direitos coletivos ganhou uma nova roupagem principalmente depois das alterações promovidas pelo CDC, pois além de promover a defesa dos direitos difusos e coletivos em sentido estrito, também passou a abarcar os direitos individuais homogêneos. Figurando, portanto, como um importante instrumento viabilizador do acesso amplo à justiça.
A lei da ação civil pública e o Código de Defesa do Consumidor estão inter-relacionados no tocante a tutela dos direitos transindividuais, estabelecendo uma relação de complementaridade entre as suas disposições normativas regulamentares. Veja-se:
CDC. Art. 90. Aplicam-se às ações previstas neste título as normas do Código de Processo Civil e da Lei 7.347, de 24 de julho de 1985, inclusive no que respeita o inquérito civil, naquilo que não contrariar suas disposições.
CDC. Art. 117. Acrescenta-se a Lei 7.347, de 24 de julho de 1985, o seguinte dispositivo, renumerando-se os seguintes: Art. 21. Aplicam-se à defesa dos direitos e interesses difusos, coletivos e individuais, no que for cabível, os dispositivos do Título III da lei que instituiu o Código de Defesa do Consumidor.
Nessa senda, verifica-se que as alterações trazidas pelo CDC ampliaram o espectro de direitos a serem tutelados através da instrumentalização da ação civil pública, principalmente em razão da inclusão da genérica expressão, “ou qualquer outro interesse difuso ou coletivo”, no rol dos direitos anteriormente já previstos.
Contudo, insta ressaltar que, as inovações da lei da ação civil pública trazidas pelo código consumerista não se adstringem apenas a ampliação do seu objeto de tutela, pois também ampliou o rol dos legitimados para proteger os direitos e interesses individuais homogêneos.
O espectro de utilidade da ação civil pública também foi ampliado à luz do âmbito descrito no art. 84 do CDC, a ela aplicável, pois de nada adianta os instrumentos e as instituições necessárias à efetivação de tais direitos, mesmo que devidamente manejados, se conjuntamente não existir um esforço e idoneidade capazes de lhes conferir provimentos judiciais dotados de utilidade prática[20].
Essa nova dinâmica processual coletiva requer do judiciário uma adaptação às novas situações processuais trazidas em razão de violações a direitos coletivos, pois as demandas coletivas, principalmente quando envolvem interesses difusos, possuem um alto grau de litigiosidade, e, para serem solucionadas é necessária uma minuciosa avaliação do caso concreto pelo magistrado, que sopesará os interesses antagônicos postos em discussão, e decidirá, em muitas situações, mediante o prudente exercício de um juízo discricionário tomando como base os princípios gerais do direito.
De certa forma, se fazer de um juízo discricionário requer do magistrado um posicionamento ativista, obviamente, dentro dos limites ético-jurídicos.
Por fim, ARRUDA ALVIM[21] destaca que na medida em que a ação civil pública tutela bens indivisíveis, a sua titularidade é distribuída de forma igual, pois o que interessa é a ampla e efetiva defesa dos interesses da coletividade. Sendo, portanto, inviável estabelecer uma forma diferenciada de gozo e fruição, já que para este tipo de interesse os membros da coletividade são quantitativa e qualitativamente iguais, não sendo assim, suscetíveis de apropriação exclusiva.
4.2 Legitimidade Ativa para Propor Ação Civil Pública
A melhor técnica para a representação dos direitos transindividuais em juízo foi a denominada mista ou pluralista, trazida pela Lei da ação civil pública, consagrada pela Constituição Federal de 1988 e consolidada pelo Código de Defesa do Consumidor, a qual cumula como representantes tanto entes públicos quanto privados.
No entanto, nem sempre foi assim, pois inicialmente a lei da ação civil pública não previa esse extenso rol de legitimados para representarem os interesses da coletividade em juízo, em que pese no espaço reservado para a sua exposição de motivos tenha apontado o Ministério Público como legitimado ativo para defender os interesses difusos em conformidade com a LC nº. 40/81, a qual trata das funções institucionais do parquet e inclui a ação civil pública como uma delas.
Contudo, a partir das alterações sofridas pela Lei nº 11.448/07, a LACP passou a elencar um rol taxativo extenso de legitimados, incluindo a Defensoria Pública.
Segundo CAIO MÁRCIO LOUREIRO[22], a intenção do legislador ao estender o rol dos legitimados para propor ação civil pública foi de proporcionar a melhor, mais ampla, e efetiva proteção dos direitos coletivos, e, consequentemente melhor promover o direito fundamental ao acesso à justiça. Até porque a legitimidade de um ente não exclui a do outro, podendo um colegitimado agir sozinho, sem a anuência, intervenção ou autorização dos demais, pois todos são igualmente legítimos para propor a ação, bastando apenas atender os requisitos legais para ajuizá-la. Portanto, é forçoso concluir que não há exclusividade nem atribuição privativa de legitimidade, e, havendo um eventual litisconsórcio, será sempre facultativo[23].
5 DA LEGITIMIDADE DA DEFENSORIA PÚBLICA PARA TUTELAR OS INTERESSES DIFUSOS
A Lei 7.347/85 a qual institui o instrumento processual da ação civil pública em proteção aos interesses “coletivos” não previu, no momento da sua edição, a Defensoria Pública como ente legitimado para propor ACP, também não pudera, pois muito embora no sistema jurídico nacional houvesse a previsão da prestação da assistência judiciária, apenas com a promulgação da Carta Magna de 1988 é que a Defensoria Pública passou a existir no ordenamento como órgão essencial a função jurisdicional do Estado.
Com a edição do CDC (Lei nº. 8.078/90) houve a criação dos direitos individuais homogêneos como uma nova subespécie dos direitos coletivos, bem como se estendeu o campo de incidência da LACP a todos os direitos difusos e coletivos em sentido estrito, passando a exercer uma relação de complementariedade com a mesma. No entanto, não fez qualquer menção expressa acerca da legitimidade ativa da Defensoria Pública para tutelar os direitos transindividuais.
Por outro lado, a Lei Orgânica Nacional da Defensoria Pública (LC nº. 80/94) dispôs em seu art. 4º sobre as funções institucionais do órgão, e no inciso XI estabelece como função especial o patrocínio dos direitos e interesses do consumidor lesado, porém, não previu em seu título originário a legitimidade do órgão para tutelar os interesses transindividuais.
Não por coincidência, vários são os dispositivos que estimulam a atuação da Defensoria na jurisdição coletiva do consumidor, o primeiro deles é o inciso primeiro do art. 5º do CDC, o qual aponta “a manutenção da assistência jurídica integral e gratuita ao consumidor carente” como o primeiro instrumento da Política Nacional das Relações de Consumo. A seguir tem-se o inciso VII do art. 6º que assegura aos necessitados “proteção jurídica, administrativa e técnica” como um dos direitos básicos do consumidor e, no inciso VIII do mesmo artigo enuncia-se o princípio da facilitação da defesa dos direitos do consumidor.
Além desses, o código consumerista dota o processo do consumidor de altíssimo teor instrumentalista ao prescrever em seu art. 83 que “para a defesa dos direitos e interesses protegidos por este Código são admissíveis todas as espécies de ações capazes de propiciar sua adequada e efetiva tutela”.
Como já dito anteriormente, o CDC ofereceu um grande incentivo à tutela coletiva, e, com isso ampliou a legitimidade ativa para as ações através do seu art. 82, inciso III, o qual outorga a legitimidade para “as entidades e órgãos da Administração Pública, direta ou indireta, ainda que sem personalidade jurídica, especificamente destinados à defesa dos interesses e direitos protegidos por este Código”. Esta era, portanto, a base legal utilizada pela Defensoria para atuar em defesa dos direitos coletivos do consumidor.
FREDIE DIDIER JR. E HERMES ZANETI JR.[24] ainda destacam que a premissa prevista pelo art. 82, inciso III do CDC “se insere no conjunto dos microssistemas da tutela coletiva, podendo ser estendida para todas as demais possibilidades de ajuizamento de ações civis públicas, portanto, para além do Direito do Consumidor”.
No entanto, só após a edição da Lei nº 11.448 de 15 de janeiro de 2007 é que se acrescentou um inciso II no art. 5º da LACP para dar legitimidade a Defensoria Pública para propor ação civil pública, em que pese mesmo antes da edição da referida lei, a Defensoria Pública já atuasse na defesa dos direitos coletivos, notadamente na área consumerista por intermédio de ações coletivas. No entanto, a alteração promovida pela referida lei foi essencial à Defensoria Pública, vez que o nosso ordenamento jurídico está estritamente vinculado ao princípio da legalidade.
Por outro lado, nos tempos atuais, a lei formal é apenas um topo a ser considerado, especialmente quando se trata de legitimação processual, contudo é um topo constantemente revisado e testado. E não por outro motivo, que a própria legitimidade do Ministério Público para propor ação civil pública, a qual está inclusive prevista no texto constitucional, sofre questionamentos.
Nesse inteire, foram previsíveis os acalorados questionamentos que surgiram após a edição da Lei nº. 11.448/07 quanto a legitimação da Defensoria Pública para propor ação civil pública.
Como já visto em sessão anterior, junto com o reconhecimento de novos direitos, dentre eles os direitos transindividuais, surgiu a necessidade de se promover uma tutela especial que abarcasse todas as peculiaridades inerentes a esta nova modalidade de interesses.
Não obstante, a necessidade de se promover uma ação coordenada suficiente a organizar a representatividade de tais direitos em juízo, notadamente os difusos, bem como de se criar ou especializar instituições voltadas a essa tutela especial sob o enfoque do real acesso à justiça foi prioridade abarcada pelas ondas renovatórias do acesso à justiça.
Desta forma, é preciso encarar a legitimação da Defensoria Pública como tão somente medida viabilizadora do acesso à justiça, que sob um enfoque ao real acesso funciona como mecanismo processual capaz de conferir efetividade a tutela coletiva independentemente de objeções formais, estas que foram flexibilizadas por influência das concepções pluralistas do direito.
Nesse cerne é que as ações coletivas também reivindicam o pluralismo, pois com a sua inserção no ordenamento jurídico brasileiro, surgiram demandas extremamente peculiares, merecedoras de uma tutela específica, e, a aceitação dessa especificidade é o primeiro passo para se adequar um processo civil de interesse público às questões surgidas sob os parâmetros dessa nova realidade.
Assim, um dos grandes instrumentos de pluralização da ordem jurídica como um todo, é a diversificação operada no campo da legitimação ativa, especialmente quando se trata de processo coletivo, pois só haverá acesso ao cerne do processo se ultrapassada a barreira da legitimidade de forma flexibilizada[25].
Isso foi o que a Lei nº. 11.448/07, acompanhando as novas tendências constitucionais, fez ao ampliar o rol dos legitimados para propor ação civil pública com a alteração do respectivo art. 5º da LACP, fator relevante para o desenvolvimento da tutela coletiva no ordenamento jurídico brasileiro, bem como para a propagação do acesso plural à justiça.
5.1 Discussão Acerca da Legitimidade da Defensoria Pública para Propor ação civil pública com base na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº. 3943
A Associação Nacional do Ministério Público ajuizou em 2007, no Supremo Tribunal Federal, ADI nº. 3943, ainda pendente de decisão, em que se pleiteia a declaração de inconstitucionalidade do inciso II do art. 5º da Lei nº. 7.347, de 24 de julho de 1985 (redação alterada pela Lei nº. 11.448/07) sob o fundamento de que tal dispositivo ao conferir legitimidade, “sem restrições” à Defensoria Pública para propor ação civil pública, estaria violando o disposto nos artigos 5º, inciso LXXIV e 134 da Constituição Federal de 1988, vez que tal atribuição configura um desvio de função do referido órgão defensório, contrariando, portanto, os requisitos necessários da ação civil pública; e, ao mesmo tempo impede que o parquet exerça de forma plena as suas atividades, pois de acordo com o ordenamento jurídico constitucional a “titularidade para propor ACP pertence ao Ministério Público”.
Em suas razões, o parquet ainda argumenta que a incumbência constitucional conferida à Defensoria Pública no momento de sua criação foi a prestação de assistência jurídica integral e gratuita aos necessitados, considerando erroneamente, como sinônimo do termo necessidade a ideia de hipossuficiência financeira, pois enfatiza o órgão ministerial que os beneficiados pelos serviços prestados pela Defensoria Pública devem comprovar “individualmente” , insuficiência de recursos financeiros. Portanto, não há como a Defensoria Pública atuar na defesa dos direitos transindividuais, já que neste tipo de tutela os interessados não podem ser facilmente individualizados ou identificados.
Por fim, a ADI nº. 3943 pede a declaração da inconstitucionalidade da legitimação da Defensoria Pública para figurar no pólo ativo de qualquer tipo de ação de cunho coletivo, ou subsidiariamente, que ao menos, seja declarada a impossibilidade de atuação da instituição na esfera difusa de interesses.
Exposto o caso controvertido, é necessário justificar que o trabalho focará a legitimidade da Defensoria Pública para tutelar os interesses difusos, isto por acreditar que os fundamentos jurídicos que confirmam a legitimidade ad causam da Defensoria para promover essa modalidade de interesses, estendem-se automaticamente as demais, e, ademais disso, considerando o fato de que antes de ser formalmente atribuída a legitimidade ativa ao órgão defensório para promover a tutela coletiva, já existia uma atuação deste órgão voltada a proteção dos direitos individuais homogêneos e coletivos em sentido estrito, em especial na seara consumerista, mesmo porque, em ambos os casos é possível a determinação dos sujeitos interessados.
Conforme se observará adiante, a doutrina e a jurisprudência majoritária refutam vilmente os argumentos utilizados pelo parquet para instruir o respectivo pleito de inconstitucionalidade.
HUGO NIGRO MAZZILLI[26] reconhece que a Defensoria Pública já poderia propor ação civil pública mesmo antes da edição da Lei nº. 11.448/07. Entretanto, considera relevantes os questionamentos acerca da legitimidade ativa atribuída ao órgão para propor ACP em defesa dos interesses transindividuais, pois comumente, este instrumento processual volta-se a defesa de interesses difusos, ou seja, a grupos indetermináveis de lesados, o que abarcaria pessoas necessitadas e não necessitadas.
Entende que, muito embora o art. 134 da Constituição Federal, a qual define a Defensoria Pública como instituição essencial à função jurisdicional do Estado destinada à prestação da assistência jurídica integral e gratuita aos necessitados abarque a esfera individual e coletiva, o resultado da demanda deve necessariamente beneficiar grupo de hipossuficientes, atrelando o conceito de necessidade ao de hipossuficiência econômica no sentido trazido pelo art. 2º da Lei nº. 1.060/50 como “impossibilidade de pagamento das despesas processuais sem prejuízo do próprio sustento ou da família”.
No entanto, reconhece que fugiria do escopo jurídico do processo coletivo exigir que a Defensoria Pública defenda por meio de ação individual o interesse de cada hipossuficiente integrante de um grupo com direitos em comum violados (estejam eles ligados por um vínculo jurídico ou mediante uma situação fática), portanto, a Defensoria Pública pode propor ação civil pública em favor de pessoas que se encontrem na condição de necessitados (hipossuficiência econômica nos termos do art. 2º da Lei nº. 1.060/50), mesmo que, no caso dos interesses difusos, indiretamente sejam beneficiados sujeitos não necessitados, mas que necessariamente quando se tratar de interesses individuais homogêneos e coletivos stricto sensu, todos os beneficiários devem ser necessitados.
Dos ensinamentos do ilustre jurista e doutrinador podem ser extraídas várias lições, porém existem alguns pontos que necessariamente precisam ser destacados por serem essenciais à consolidação do posicionamento ora defendido.
O primeiro ponto a ser destacado está relacionado ao conceito de necessidade. Como já visto, o atual conceito de necessidade não pode ser entendido apenas como sinônimo de hipossuficiência de recursos financeiros, vez que diante da realidade contemporânea, a tendência é que surjam embates jurídicos que envolvam cada vez mais situações de alta complexidade, e, não por outro motivo que surgiu o instituto da tutela coletiva no ordenamento jurídico do Brasil.
Desta maneira, a necessidade pode não estar apenas atrelada a questão econômica, mas também a jurídica (como a defesa dativa no processo penal e a curadoria especial no processo civil), ou ainda a qualquer outra que exponha o cidadão a uma situação de vulnerabilidade, situações estas que necessitam da análise do caso concreto pelo defensor público que irá atuar. Casos estes, em que a condição econômica do beneficiário da assistência jurídica prestada pela Defensoria Pública é dispensável, isto em razão do seu vocacionado direcionamento para o bem estar social, e, daí decorre as funções atípicas do órgão já estudadas anteriormente.
Acredita-se, inclusive, que a Constituição Federal de 1988 ao dispor sobre a Defensoria Pública, usa de forma genérica as terminologias “necessitados” e “insuficiência de recursos”, justamente com o intuito de flexibilizar e ampliar a possibilidade, tanto do legislador infra constitucional, quanto do intérprete, de construir o perfil mais adequado à instituição de acordo com os anseios e necessidades do seu tempo, de forma a abarcar situações que não poderiam ser previstas de maneira precisa pelo texto constitucional no momento de sua edição.
É certo que, a Constituição Federal ao garantir a integralidade da assistência jurídica pela redação do seu art. 134, não se restringe a ampliação da ideia de atuação da instituição a esfera extrajudicial, nem tão pouco a possibilidade de confronto inclusive contra pessoas jurídicas de direito privado, mas ainda, a valorização de uma atividade jurídico-preventiva iniciada desde a prestação de esclarecimentos e orientações jurídicas, ao trabalho nas esferas administrativas e judiciais dos litígios.
Assim, ao se oferecer uma interpretação ampliativa a expressão “necessitado” não se tem o intuito de afastar a Defensoria Pública do seu real papel, tão pouco de conferir-lhe uma supra legitimidade, ao contrário, deseja-se aproximá-la da sua real função, qual seja, a defesa em todas as esferas de todos aqueles considerados necessitados, sejam, eles vulneráveis econômicos, jurídicos, psíquicos, políticos, sociais, culturais ou mesmo organizacionais.
Outro ponto que merece destaque, está relacionado a condição de todos os beneficiados pelos serviços da Defensoria serem hipossuficientes financeiros quando a ação coletiva versar sobre interesses coletivos em sentido estrito e individuais homogêneos.
Inicialmente vale salientar que, o motivo em que se conferiu legitimidade ativa à Defensoria Pública para propor ação civil pública, mesmo em situações que versam acerca de interesses difusos, encontra respaldo no próprio escopo jurídico do processo coletivo, vez que seria inócuo exigir que a Defensoria Pública promovesse a tutela individualizada de cada interessado. Sendo assim, admite-se que por uma sequela jurídica pessoas não necessitadas (em sentido lato) sejam beneficiadas, já que não se pode admitir que a Defensoria não atue quando um hipossuficiente (lato sensu) seja atingido.
O mesmo raciocínio vale para os interesses individuais homogêneos e coletivos em sentido estrito, pois em situações em que um único hipossuficiente seja lesado, ou sofra, qualquer tipo de ameaça de lesão, a Defensoria Pública automaticamente já está legitimada para atuar por meio de ação coletiva, quando cabível.
Tal raciocínio está intrínseco nos objetivos e finalidades do processo coletivo, do pluralismo jurídico, bem como no sentido em que o legislador quis dar com a edição da Lei Federal nº. 11.448/2007, vez que a ampliação do rol de legitimados para propor ação civil pública foi tão somente visando a promoção e efetivação do acesso à justiça no sistema jurídico brasileiro.
As lições de FREDIE DIDIER JR. E HERMES ZANETI JR.[27] revelam o mesmo entendimento:
Para que a Defensoria Pública seja considerada como “legitimada adequada” para conduzir o processo coletivo, é preciso que seja demonstrado o nexo entre a demanda coletiva e o interesse de uma coletividade composta por pessoas “necessitadas”, conforme locução tradicional. Assim, por exemplo, não poderia a Defensoria Pública promover ação coletiva para a tutela dos direitos de um grupo de consumidores de PlaySatation III ou de Mercedes Benz. Não é necessário, porém, que a coletividade seja composta exclusivamente por pessoas necessitadas. Se fosse assim, praticamente estaria excluída a legitimação da Defensoria para a tutela de direitos difusos, que pertencem a uma coletividade de pessoas indeterminadas. Ainda neste sentido, não seria possível a promoção de ação coletiva pela Defensoria quando o interesse protegido fosse comum a todas as pessoas, carentes ou não.
No mesmo sentido entendeu o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Norte ao julgar o agravo de instrumento nº. 107611, interposto pelo Ministério Público, suscitando a ilegitimidade ativa da Defensoria Pública para propor a ACP, vez que nem todos os interessados são pessoas necessitadas:
AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA AJUIZADA PELA DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO. ALEGAÇÃO PELO MINISTÉRIO PÚBLICO DE ILEGITIMIDADE ATIVA DA DEFENSORIA. REJEIÇÃO. DESNECESSIDADE DE QUE A COLETIVIDADE CUJOS INTERESSES SÃO DEFENDIDOS SEJA COMPOSTA EXCLUSIVAMENTE POR PESSOAS NECESSITADAS. DOCUMENTOS JUNTADOS AOS AUTOS QUE COMPROVAM A HIPOSSUFICIÊNCIA DE UM DOS CANDIDATOS, BEM COMO QUE VÁRIOS DELES SE ENCONTRAM DESEMPREGADOS. ALEGAÇÃO PELO PARQUET DE OCORRÊNCIA DE LITISPENDÊNCIA COM OUTRA DEMANDA COLETIVA AJUIZADA ANTERIORMENTE PELO MINISTÉRIO PÚBLICO. PEDIDOS DIVERSOS. NÃO CONFIGURAÇÃO DA LITISPENDÊNCIA. CONHECIMENTO E IMPROVIMENTO DO AGRAVO. MANUTENÇÃO DA DECISÃO RECORRIDA. (grifou-se).
Por outro lado, a discussão acerca da constitucionalidade do art. 5º, inciso II da LACP, perde o sentido no momento da edição da LC nº. 132/09, a qual inclui no rol das funções institucionais do órgão a legitimidade para defender os direitos transindividuais por intermédio da ação civil pública.
E, não se diga ainda, como tendeu em dado momento o parquet, que a Defensoria Pública não tem estrutura para abarcar este tipo de competência, pois o próprio Ministério Público tão estruturado como é não promove de forma eficaz a tutela coletiva diante das inúmeras outras atribuições a que está especificamente incumbido.
Sendo assim, deve-se lutar pela estruturação da Defensoria Pública e não brigar para retirar-lhe uma atribuição tão importante para o acesso à justiça. Pois, como já visto na segunda sessão deste estudo, Mauro Cappelletti e Bryant Garth já destacavam o problema da legitimidade para a defesa dos direitos difusos como uma forte barreira ao acesso, apontando na segunda onda renovatória a necessidade de se criar um órgão público destinado a representar os interesses coletivos.
Nessa senda, sendo o artigo 5º, inciso II da LACP declarado inconstitucional, haverá uma violação ao princípio da inafastabilidade da jurisdição, ao direito de ação e, ao mesmo tempo, uma restrição ao direito fundamental ao acesso à justiça, configurando um atentado ao sistema democrático do país.
5.2 Conflito de competência entre o Ministério Público e a Defensoria Pública
O argumento do Ministério Público de que a legitimidade da Defensoria Pública para propor ação civil pública afetaria diretamente a sua atuação, pois o impediria de exercer tal atribuição de forma plena, já que de acordo com o texto constitucional a titularidade da ACP pertence ao parquet, não se sustenta diante do já exposto. Pois, muito embora a Carta Magna não tenha mencionado expressamente a legitimação da Defensoria, é certo que a função institucional a que lhe foi atribuída não se adstringe apenas a esfera individual dos direitos. Nesse sentido posicionou-se o Ministro Sepúlveda Pertence[28] através do julgamento da ADI nº. 558 ao dispor que:
A Constituição Federal impõem, sim, que os Estados prestem assistência judiciária aos necessitados. Daí decorre a atribuição mínima compulsória da Defensoria Pública. Não, porém, o impedimento a que os serviços se estendam ao patrocínio de outras iniciativas processuais em que vislumbre interesse social que justifique esse subsídio estatal.
Por outro lado, vale destacar que a ação civil pública não é instrumento de uso privativo de ninguém, pois a própria Constituição, no § 1º do seu artigo 129, veda expressamente que o Ministério Público tenha legitimação privativa ou exclusiva para propor qualquer ação civil:
Art. 129. ...
§ 1º A legitimação do Ministério Público para as ações civis previstas neste artigo não impede a de terceiros, nas mesmas hipóteses, segundo o disposto nesta Constituição e na lei.
A ação civil pública pode, inclusive, ser proposta, até mesmo, em litisconsórcio ativo facultativo, com outros legitimados, por exemplo, Ministério Público e Defensoria Pública.
Sendo assim, é desarrazoado afirmar que a Defensoria Pública estaria invadindo as atribuições do Ministério Público, pois como bem afirma MAZZILLI[29] são instituições que possuem atribuições inconfundíveis, em que pese seja normal em dado momento existirem áreas de superposição entre ambas, assim como acontece entre o Ministério Público e a Procuradoria do Estado, por exemplo, sem que com isso cada qual perca a sua identidade.
Na verdade, o conflito suscitado pelo Ministério Público é aparente, pois mexe com a vaidade da instituição, que movida por interesses corporativistas esquece-se que a legitimação da Defensoria só beneficia as pessoas carentes em recursos econômicos, jurídicos, sociais ou culturais. Nesse diapasão posicionou-se ADA PELLEGRINI[30]:
Fica claro, assim, que o verdadeiro intuito da requerente, ao propor a presente ADIN, é simplesmente o de evitar a concorrência da Defensoria Pública, como se no manejo de tão importante instrumento de acesso à justiça e de exercício da cidadania pudesse haver reserva de mercado.
Ressalte-se que, o que interessa é a garantia do acesso efetivo à justiça, que no meio desta aparente disputa, vem perdendo o seu foco, prejudicando tão somente a coletividade.
Consigne-se que as demandas coletivas deveriam ser estimuladas ao máximo, e não recebidas com obstáculos formais. Pois, como bem afirmou o Ministro Sepúlveda Pertence através do julgamento da ADI nº. 558[31], se uma extinção sem resolução de mérito é algo a se lastimar até nos países mais desenvolvidos, nos quais não se vislumbra a carência de serviços básicos, mais absurdo ainda, aparenta ser, o encerramento prematuro de uma ação coletiva proposta no Brasil.
São no mínimo vergonhosos, os termos que fundamentam a ADI nº. 3.943, especialmente a alegação de que a legitimação da Defensoria Pública afeta diretamente as atribuições do Ministério Público, pois a provocação da Corte Suprema só deveria ocorrer em situações realmente relevantes, servindo apenas para ocupar o STF, que poderia estar voltado a outras questões de importante valor para a sociedade.
Não por outro motivo que o Congresso Nacional ao prestar suas informações, suscitou preliminarmente a ausência de pertinência temática, defendendo a legitimação irrestrita da Defensoria Pública, sendo seguido pela Presidência da República, Senado Federal e Advocacia Geral da União.
Como bem ressaltam DIDIER JR. e ZANETI JR.[32] curioso é o fato da CONAMP não ter alegado em suas razões a não recepção pela Constituição dos velhos dispositivos da LACP, que conferem legitimidade a órgãos despersonalizados e associações privadas; não estariam eles “afetando diretamente” as atribuições do Ministério Público?
É certo que todos os argumentos acima expendidos corroboram para a conclusão de que tal ação direta de inconstitucionalidade foi ajuizada por uma questão muito mais política do que jurídica. Isto porque a Defensoria Pública ao possuir legitimidade ativa para propor ACP ganha força como instituição de maneira que passa a ocupar concretamente o espaço que constitucionalmente lhe foi incumbido, figurando, portanto, como um incômodo a outras instituições que possuem a sua atuação na esfera dos interesses coletivos já estabelecidos.
Por fim, consigne-se que a ampliação flexibilizada da legitimação da tutela coletiva é uma tendência do direito brasileiro iniciada no ano de 1985 por influência dos ideais pluralistas, a qual visa tão somente promover a defesa dos interesses da coletividade e fortalecer a efetividade dos “novos direitos” pela jurisprudência, e não dar mais prestígio a determinada instituição.
Ademais, o próprio anteprojeto do código processual brasileiro de direitos coletivos tende a uma abertura e flexibilização destas legitimidades, conferindo mesmo ao indivíduo particularmente postular ações civis de cunho coletivo.
Assim, não assiste razão a construção hermenêutica elaborada pelo Ministério Público, pois não interessa quem promoverá a ação civil pública, importante é se garantir a efetividade da tutela coletiva, focalizando a máxima promoção do acesso à justiça. Não havendo, portanto, qualquer pretexto em se negar a legitimidade à Defensoria Pública.