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A (in)aplicabilidade do art. 1.216 do Código Civil (responsabilidade do possuidor de má-fé pelos frutos colhidos e percebidos) ao devedor trabalhista.

Análise crítica da Súmula nº 445 do TST

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Agenda 28/07/2013 às 09:56

É consolidado o entendimento de que é inaplicável ao Direito do Trabalho a regra do art. 1.216 do Código Civil, que imputa responsabilidade ao possuidor de má-fé pelos frutos auferidos.

“Os desafios, quaisquer que eles sejam, nascem sempre de perplexidades produtivas. Tal como Descartes exercitou a dúvida sem a sofrer, julgo ser hoje necessário exercitar a perplexidade sem a sofrer.”

Boaventura de Sousa Santos[1]


Sumário: 1. Introdução. 2. Fontes do Direito do Trabalho. 3. Súmula nº 445 do TST. Análise crítica. 4. Conclusões. 5. Referências.


1. Introdução.

O Direito, como instância reguladora da vida em sociedade, objetiva não apenas disciplinar os fatos, de modo a garantir a paz e a segurança jurídica nas relações, mas também condicionar condutas futuras, rumo a um ideal de comportamento e de Justiça, entrelaçando os planos do ser e do dever ser, a ponto de Eros Grau considerá-lo um organismo vivo que não envelhece, sendo sempre contemporâneo à realidade, em verdadeiro “dinamismo”.[2]

Neste “equacionamento social”, múltiplas são as possibilidades de decisão e de fundamentação ao alcance do Poder Judiciário, dada a riqueza de fontes normativas e de suas significações, devendo ser eleita, na solução de casos concretos, a que melhor se moldar aos objetivos almejados pela Constituição.

Partindo de tais premissas, propõe-se no presente estudo analisar de modo crítico o conteúdo da Súmula nº 445 do Tribunal Superior do Trabalho, aqui tratado como TST, pela qual foi consolidado o entendimento de ser inaplicável ao Direito do Trabalho a regra do art. 1.216 do Código Civil, lançando-se mão, para tanto, de textos doutrinários e normativos, além de precedentes jurisprudenciais.

Em um primeiro tópico, serão examinadas as fontes do Direito do Trabalho, em especial, a jurisprudência e, em um segundo, a Súmula nº 445 do TST, especificamente, fornecendo-se, então, subsídios à instauração do debate a respeito do tema.


2. Fontes do Direito do Trabalho.

O vocábulo fonte tem origem no latim “fons”, correspondendo, segundo Carmen Camino, à “origem, causa, princípio ou gênese” de algo,[3] ou ainda, para Tarso Genro, a “história mesma, as relações objetivas e subjetivas que os homens travam entre si e com a sociedade no curso do processo histórico”.[4]

Distinguem-se as fontes materiais (reais ou primárias) das formais (secundárias). Aquelas resultam dos conflitos sociais entre capital e trabalho, exteriorizados pela “pressão reivindicatória exercida pelos trabalhadores”, de acordo com Carmen Camino,[5] em espécie de “húmus social”, na definição de Evaristo de Moraes Filho,[6] enquanto que estas representam a ação legislativa de organismos internacionais, do Estado ou dos próprios envolvidos no conflito.

Além do critério atinente à natureza da fonte (formal x material), vários outros são destacados pela doutrina, considerando enfoques diversos, tais como quanto ao poder do qual emanam (supranacionais x nacionais), à abrangência (comuns x específicas), à hierarquia (normas originárias x derivadas) e à função (principais x subsidiárias ou integradoras).

A Constituição da República, em seu art. 7º, caput, embora não empregue o termo fonte, ao reconhecer alguns direitos aos “trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social”, consagra o Princípio do Não-Retrocesso Social[7] e evidencia a opção por uma aceitação ampla quanto à origem de tais direitos.

Ratificando tal entendimento, dispõem os §§2o e 3º do art. 5º, também da Lei Maior, que “os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”, alcançando, inclusive, em matéria de Direitos Humanos, status de Emenda Constitucional, bastando a aprovação “em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros”.

Aliás, remonta às origens do Direito do Trabalho a vocação criadora dos Julgadores, sendo parte das normas hoje positivadas fruto da atuação pretoriana em época na qual as Juntas de Conciliação e Julgamento integravam o Poder Executivo, conforme pesquisas feitas por Magda Barros Biavaschi:

“Graças às entrevistas realizadas com o ministro Arnaldo Süssekind, então único integrante vivo da comissão que elaborou a CLT, conheci as teses aprovadas no 1º Congresso de Direito Social, organizado em 1941, em São Paulo, pelo professor Cesarino Júnior, responsável pela cadeira de Direito Social na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco. Muitas delas foram utilizadas pela comissão redatora da CLT como fonte material imprescindível.

(...)

Nos processos estudados, que compõem o acervo do Memorial/RS (Memorial da Justiça do Trabalho do Rio Grande do Sul, cuja comissão coordenadora ela integra desde 2004), os casos concretos, os conflitos do trabalho, os pareceres, as regras positivadas, as decisões, a doutrina, formavam um complexo que interagia, produzindo soluções e impulsionando a criação de novas regras, em um tempo carente de um Código do Trabalho. Tudo aos olhares atentos do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio.”[8]

Já o art. 8º da CLT, ao traçar diretrizes sobre o tema, de forma clara, embora não prime pela melhor técnica,[9] dispõe:

“Art. 8º. As autoridades administrativas e a Justiça do Trabalho, na falta de disposições legais ou contratuais, decidirão, conforme o caso, pela jurisprudência, por analogia, por eqüidade e outros princípios e normas gerais de direito, principalmente do direito do trabalho, e, ainda, de acordo com os usos e costumes, o direito comparado, mas sempre de maneira que nenhum interesse de classe ou particular prevaleça sobre o interesse público.

Parágrafo único - O direito comum será fonte subsidiária do direito do trabalho, naquilo em que não for incompatível com os princípios fundamentais deste.” (grifei)

Da regra transcrita, constata-se ter o Legislador indicado a direção a ser seguida pelo Julgador na solução de lides quando não houver leis ou cláusulas contratuais diretamente aplicáveis, lançando mão de instrumental complementar, inclusive a jurisprudência.

Relevante esclarecer, dada a confusão por vezes estabelecida no meio forense, não se tratar de jurisprudência uma ou algumas decisões proferidas por Juízes de primeiro grau ou por colegiados de tribunais em uma mesma direção, o que corresponde ao conceito de precedente judicial, mas sim “a estabilização judiciária do pensamento jurídico acerca de determinada matéria, aferida a partir da repetição iterativa e constante das decisões dos tribunais judiciais em um determinado sentido”, em definição de Guilherme Guimarães Feliciano.[10]

Confirmando as ideias de incompletude e de abertura do sistema juslaboral, no parágrafo único do art. 8º da CLT é apontado o Direito Comum como fonte supletiva do Direito do Trabalho, não exigindo a omissão do texto positivo, mas somente sua compatibilidade com os Princípios Fundamentais.

Se de um lado pode o Juiz ao decidir, em caso de lacuna legal ou convencional, adotar o entendimento da jurisprudência, de outro, deve aplicar o Direito Comum quando não houver incompatibilidade com os Princípios Fundamentais do Direito do Trabalho, “o que não pode obter leitura restritiva”, para Marcos Neves Fava,[11]criando, por assim dizer, “direito novo”.

De extrema importância a compreensão do alcance do comando dirigido ao intérprete, no sentido de não bastar a mera incompatibilidade com um ou outro Princípio do Direito do Trabalho, sendo indispensável para inviabilizar a incidência do Direito Comum a colisão com algum Princípio Fundamental.

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Não caberá a observância de regras estranhas ao Direito do Trabalho em qualquer caso, sob pena de seu desvirtuamento e perda de identidade, simplicidade e até mesmo finalidade. Isso ocorrerá apenas quando verificada verdadeira lacuna, a qual “não consiste, pois, em ausência de regulação, mas em incompletude por insatisfação, por insuficiência do modelo positivado”, conforme Marcos Neves Fava, pois “em que pese a norma posta e vigente, sua falta de conexão com os fatos ou com os valores sociais, ou, ainda, seu envelhecimento em face de novas alternativas também normatizadas implica a noção de lacuna, mesmo diante de lei escrita e não revogada.”[12]

Não importa a natureza do “vazio”, se decorrente de intenção do Legislador ou da erosão da regra causada pelo tempo, devendo o Jurista ao decidir, compreender, interpretar e aplicar os textos que mais adequadamente resolvam o caso concreto.[13] Para tanto, indispensável ter em mente os Princípios do Direito do Trabalho, em especial o mais fundamental de todos, o da Proteção por sua projeção da Aplicação da Regra Mais Favorável, pelo qual foi consagrada a ideia de hierarquia dinâmica das fontes, marca característica deste ramo jurídico.

Múltiplos são os exemplos atualmente aceitos pela jurisprudência do TST quanto à aplicação de regras do Direito Comum, assim entendido não só o Direito Civil, no julgamento de lides originadas nas relações trabalhistas, mas também o Direito Processual Civil e o Direito do Consumidor, como se infere dos seguintes julgados:

“Ementa: RECURSO DE REVISTA. 1. TERCEIRIZAÇÃO ILÍCITA. VÍNCULO EMPREGATÍCIO DIRETAMENTE COM A TOMADORA DE SERVIÇOS. (...) HIPOTECAJUDICIÁRIA. APLICABILIDADE NO PROCESSO DO TRABALHO. É cabível a declaração de ofício da  hipoteca judiciária prevista no art. 466 do CPC, de aplicação subsidiária ao processo do trabalho, pela sistemática do art. 769 da CLT, para garantia da execução. A norma em discussão prestigia os princípios da máxima efetividade do processo e da garantia de acesso à ordem jurídica justa. Assim, o TRT, ao lançar mão do instituto da  hipoteca judiciária , visou à garantia dos créditos devidos ao Autor, sem com isso ofender de forma direta o direito da Reclamada ao devido processo legal, em especial considerando o necessário resguardo às verbas trabalhistas. Precedentes. Recurso de revista não conhecido, no aspecto. 3. LEVANTAMENTO DE DEPÓSITO RECURSAL. ART. 475-O DO CPC. COMPATIBILIDADE COM O PROCESSO DO TRABALHO. SITUAÇÃO DE NECESSIDADE DO EMPREGADO. A regra e o princípio constitucionais da razoável duração do processo e da efetividade da jurisdição (art. 5º, LXXVIII, CF) tornam compatíveis com o processo do trabalho os novos dispositivos processuais civis favorecedores da célere, eficiente e efetiva prestação jurisdicional, tal como o recente art. 475-O do CPC reformado. Em par com essa fonte constitucional, inovadora e heurística (por si só bastante), o artigo 475-O do CPC é de aplicabilidade no processo do trabalho em face do permissivo contido no art. 769 da CLT e também porque a natureza do crédito trabalhista se compatibiliza com normas de índole protetiva que busquem o aperfeiçoamento dos procedimentos executivos, com o objetivo de se alcançar de forma efetiva a satisfação dos créditos reconhecidos judicialmente. A finalidade social da norma é inquestionável, possibilitando a diminuição do impacto sofrido pelo trabalhador que é dispensado sem a percepção de todos os direitos adquiridos ao longo do pacto laboral e é impedido de obter recursos financeiros para suprir necessidades básicas em virtude das várias medidas processuais disponibilizadas às partes, que permitem seja protelado o pagamento das verbas deferidas em juízo. Inconteste a situação de necessidade, o deferimento do levantamento de depósitos recursais está em perfeita sintonia com o objetivo das normas trabalhistas. Ressalte-se que a absorção, pelo processo do trabalho, das regras processuais civis, naquilo que tornam a execução mais rápida e eficaz, tem respaldo ainda em outro texto constitucional que, no art. 100, § 1º-A, reconhece expressamente a natureza alimentar dos créditos trabalhistas. Nesse sentido, é nítida a harmonia entre a norma contida no art. 475-O do CPC e o sistema processual trabalhista especializado. (...)”

(TST, Processo RR - 104300-05.2007.5.03.0084, 3ª Turma, Relator Ministro Mauricio Godinho Delgado, publicado em 10.5.2013)

“Ementa: RECURSO DE REVISTA. NULIDADE DO V. ACÓRDÃO POR NEGATIVA DE PRESTAÇÃO JURISDICIONAL. Entregue a completa prestação jurisdicional pela Eg. Corte a quo quando houve fundamentação acerca de todos os pontos apontados como omissos pela reclamada. Recurso de revista não conhecido.  ILEGITIMIDADE ATIVA DO SINDICATO. SUBSTITUIÇÃO PROCESSUAL. DIREITOS INDIVIDUAIS HETEROGÊNEOS. A delimitação do v. acórdão regional é no sentido de que o Sindicato é parte legítima para atuar, por se tratar de pedido de pagamento do adicional de periculosidade e reflexos a todos os integrantes da categoria que trabalham, ou trabalharam, ou que venham a trabalhar na demandada, homogêneo, portanto, já que possui origem comum e abrange os empregados da ré individualizados na inicial, pertencentes à categoria profissional representada pelo sindicato-autor.O conceito que se extrai do art. 81, inciso III, da Lei nº 8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor), segundo o qual constituem interesses individuais homogêneos "os decorrentes de origem comum". Por conseguinte, a legitimação extraordinária, da qual a substituição processual pelo sindicato é espécie, é válida para a defesa dos interesses e direitos individuais da categoria, hipótese de defesa coletiva de direitos individuais homogêneos. Recurso de revista não conhecido. (...)” (TST, Processo RR - 371300-05.2003.5.12.0027, 6ª Turma, Relator Ministro Aloysio Corrêa da Veiga, publicado em 14.5.2010)

“Ementa: HORAS EXTRAS. GERENTE BANCÁRIO. (...) Código Civil, que não trata especificamente da presente questão, apenas limita o valor da cominação imposta na cláusula penal ao valor da obrigação principal. Recurso de revista não conhecido.” (TST, Processo RR - 61600-58.2001.5.15.0094, 6ª Turma, Relator Ministro Augusto César Leite de Carvalho, publicado em 07.5.2010)

“Ementa: EXECUÇÃO. RESPONSABILIDADE DA ACIONISTA DA EMPRESA EXECUTADA. TEORIA DA DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA DO DEVEDOR. Justifica-se a incidência da teoria da  desconsideração da personalidade jurídica do devedor quando caracterizado o descumprimento das obrigações decorrentes do contrato de trabalho e a falta de bens suficientes da empresa executada para satisfação das obrigações trabalhistas. Correta a constrição dos bens do ora agravante, considerando sua condição de sócio da executada durante a relação de emprego do autor, bem como a inexistência de patrimônio da empresa executada capaz de garantir a execução, conforme bem salientado na decisão proferida pelo Tribunal Regional. Agravo de instrumento não provido.” (TST, Processo AIRR - 20140-34.2006.5.02.0432 1ª Turma, Relator Ministro Lelio Bentes Corrêa, publicado em 20.6.2008)

Diante da clareza da Constituição e da CLT quanto ao caráter aberto do sistema normativo trabalhista, de modo a permitir, inclusive, sua constante adequação à realidade social sem comprometimento do viés protetivo, se mostra incompreensível a resistência apresentada por alguns Tribunais em reconhecer a legitimidade de interpretações inovadoras apresentadas pelos Juízes a dadas regras.

Mauro Cappeletti, ao analisar a questão, formula interessante análise, nos seguintes termos:

“O verdadeiro problema, portanto, não é o da clara oposição, na realidade inexistente, entre os conceitos de interpretação e criação do direito. O verdadeiro problema é outro, ou seja, o do grau de criatividade e dos modos, limites e aceitabilidade da criação do direito por obra dos tribunais judiciários, e não, como poderia parecer, se há ou não possibilidade de inovação do Ordenamento pelos Juízes.”[14]

Não restando maiores dúvidas quanto à natureza de fonte da jurisprudência no Direito do Trabalho, o mesmo se dando com o Direito Comum, passa-se, então, ao exame específico do conteúdo da Súmula nº 445 do TST.


3. Súmula nº 445 do TST. Análise crítica.

Em março de 2013, foi publicada pelo TST a Súmula nº 445, sedimentando o entendimento sobre a inaplicabilidade ao Direito do Trabalho do art. 1.216 do Código Civil, com a seguinte redação:

“INADIMPLEMENTO DE VERBAS TRABALHISTAS. FRUTOS. posse DE MÁ-FÉ. ART. 1.216 DO CÓDIGO CIVIL. INAPLICABILIDADE AO DIREITO DO TRABALHO - Res. 189/2013, DEJT divulgado em 13, 14 e 15.03.2013. A indenização por frutos percebidos pela posse de má-fé, prevista no art. 1.216 do Código Civil, por tratar-se de regra afeta a direitos reais, mostra-se incompatível com o Direito do Trabalho, não sendo devida no caso de inadimplemento de verbas trabalhistas.”

Por meio de seu Pleno, sumulou a mais alta Corte Trabalhista do país os precedentes de julgamentos reiterados acerca da matéria, em um mesmo sentido, dado o número de recursos a envolvendo, inovando o sistema normativo como fonte subsidiária.

Ocorre que tanto o conteúdo, quanto os objetivos da súmula não se mostram claros, apresentando sua redação, inclusive, algumas inconsistências.

Na primeira parte, consta que “a indenização por frutos percebidos pela posse de má-fé, prevista no art. 1.216 do Código Civil” não se faz “devida no caso de inadimplemento de verbas trabalhistas”.

Pela forma com que redigido o verbete, impossível definir seu alcance, pois o que abrangeria a expressão “verbas trabalhistas”? Apenas as quantias geradas pelo inadimplemento de obrigações contratuais a cargo do empregador, em sentido estrito, ou também valores devidos por força de danos causados por atos ilícitos de cunho civil ou criminal?

Tal dúvida decorre do fato de o termo “inadimplemento” derivar do verbo adimplir, que significa para o Direito Contratual o cumprimento de um dever assumido voluntariamente pela celebração de um negócio jurídico,[15] dando margem à ideia de que obrigações não oriundas do contrato de trabalho e a cargo do empregador (satisfazer salários, depositar FGTS em conta vinculada e recolher as contribuições sociais junto ao INSS, por exemplo), ou mesmo alheias a sua vontade, não estariam abarcadas pelo precedente por se originarem de atos contrários à lei e/ou provocados por terceiros (pagar indenização ou pensão por danos decorrentes de assalto à empresa, de acidente automobilístico sofrido no desempenho da função sem culpa da vítima e de adoecimento causado por contágio de doenças transmitidas por pacientes-clientes).

De outro lado, a justificativa da inaplicabilidade do art. 1.216 do Código Civil por “tratar-se de regra afeta a direitos reais”, portanto, “incompatível com o Direito do Trabalho”, também não se sustenta.

Inexiste qualquer limitação a inviabilizar o emprego de disposições de Direito Real ao ramo trabalhista, intrinsecamente vinculado ao campo das obrigações, o que se verifica no dia a dia forense pela interposição de interditos proibitórios em situações envolvendo exercício do direito de greve (direito de posse x direito de liberdade de manifestação), por conta da propositura de demandas reintegratórias de posse por ex-patrões contra trabalhadores em casos de não-restituição de imóveis destinados à habitação no curso do contrato (direito de posse x direito à moradia), ou, ainda, por meio da apresentação de reconvenções por ex-empregadores juntamente com a contestação de ações trabalhistas, postulando a devolução de equipamentos em poder dos ex-empregados (direito de posse). A tais exemplos podem, ainda, se agregar outros, versando sobre bens objeto de constrição judicial, por meio de demandas incidentais, como Embargos à Execução, à Penhora ou de Terceiros.

Ainda que assim não fosse, inegável o fato de se tratar a paga de salários, compostos de modo predominante por moeda corrente, de obrigação de dar coisa incerta, móvel e fungível, conforme teor dos arts. 82, 85 e 243 do Código Civil e art. 458, §1º, da CLT,[16] [17]sendo tipificada pelo art. 7º, inciso X, da Constituição a prática de sua retenção dolosa pelo empregador, em modalidade de apropriação indébita, nos termos previstos no art. 168 do Código Penal.[18]

Ademais, quais seriam os Princípios Fundamentais do Direito do Trabalho violados pela aplicação do art. 1.216 do Código Civil?

Analisando os julgados a partir dos quais a súmula foi idealizada,[19] não se apresentam compreensíveis os motivos que levaram a sua edição, pois vários deles externam argumentos contraditórios entre si.

Na grande maioria dos arestos, o principal fundamento adotado foi o da impossibilidade de aplicar-se regra de Direito Real à relação regida pelo Direito Obrigacional, por incompatibilidade. Em outros, foi também mencionada a necessidade da prova da má-fé do possuidor (chancelando a possibilidade de incidência da regra em caso de demonstração), a existência de institutos no próprio Direito do Trabalho (juros, atualização monetária e multas) com a finalidade de recompor as perdas do trabalhador, e cuja sobreposição geraria bis in idem, ou, ainda, aventada a hipótese de ajuizamento de demanda própria, buscando a condenação do devedor ao pagamento de indenização por perdas e danos, acaso não reparados todos os prejuízos do credor, os quais igualmente deveriam ser comprovados.

Respeitosamente, em sentido diverso, entende-se não somente possível, mas devida a aplicação da regra inscrita no art. 1.216 do Código Civil, assim como as dispostas nos arts. 389, 402, 404 e 944 do mesmo diploma legal[20] às demandas trabalhistas, por compatíveis com os Princípios Fundamentais do Direito do Trabalho e por notória a lacuna legal existente pela defasagem da CLT em relação às disposições do Direito Comum. Com isso, alcança-se uma maior efetividade na reparação dos danos experimentados pelo trabalhador, em reconhecimento ao caráter fundamental atribuído pela Constituição em seu art. 1º, incisos III e IV[21] à dignidade da pessoa humana e ao valor social do trabalho para o Estado Democrático de Direito Brasileiro.

A este respeito, alerta Rodrigo Goldschmidt:

“Isso tudo demonstra que a proteção e a promoção da dignidade da pessoa humana não só autorizam como legitimam toda uma nova concepção de jurisdição, mais ativa e mais efetiva, voltada à promoção da justiça social, emitindo decisões que reduzam as desigualdades sociais, protegendo e promovendo os direitos sociais, nomeadamente em face dos efeitos precarizantes do fenômeno da flexibilização dos direitos trabalhistas

E para cumprir tal missão constitucional, não basta apenas alterar as normas processuais para criar um instrumento mais claro, rápido e efetivo; é necessário também exercer o que aqui se denomina ‘hermenêutica responsável’. Trata-se da interpretação do Direito adequada aos reais anseios e desejos sociais. Constitui-se numa interpretação transformadora do Direito, que o liberta dos seus rigorismos conceituais.

Em última análise, a hermenêutica responsável é aquela que pretende aproximar a Constituição Formal da Constituição Real, ou seja, que instrumentalize a Constituição formal para atingir as reais necessidades do povo.”[22]

Ademais, é fato de conhecimento público e notório no país a discrepância existente entre as taxas de juros praticadas por instituições financeiras e demais prestadoras de serviços ao consumidor, via de regra credores do trabalhador que não obteve o pagamento a bom tempo de seus haveres, e os índices oficiais adotados pelo Judiciário Trabalhista na “recomposição” dos créditos alimentares, o que simplesmente serve de estímulo aos empregadores para relegarem seu pagamento a um plano secundário, por menores os efeitos da mora.

Acerca da matéria, de grande valia o entendimento de José Lúcio Munhoz:

“Não para por aí. Desde janeiro de 2009, segundo o próprio Banco Central do Brasil, a inflação oficial, pelo INPC, medida até janeiro de 2013 já passa dos 26% (vinte e seis por cento). Todavia, a Justiça do Trabalho corrige os créditos dos trabalhadores nos processos em tramitação e ainda não pagos pelas empresas, por meio da TR, que exatamente no mesmo período, ou seja, por quatro anos, rendeu apenas 2,9% (dois vírgula nove por cento!). Se utilizarmos o índice desde janeiro de 2005, a inflação oficial foi de 52,4% enquanto a tabela da Justiça do Trabalho foi de apenas 11,34%, uma perda de mais de 40%.

Todos que visitam um supermercado ou param na bomba do posto de gasolina bem sabem o peso que a inflação vem causando aos orçamentos domésticos nos últimos quatro anos e que, obviamente, ficam muito além dos quase três por cento reconhecidos pela Justiça.

Desse modo, um trabalhador que tinha R$ 10 mil para receber em janeiro de 2009, além de toda a demora (idas às audiências, exposição pessoal, juntada de papelada, convencimento de testemunhas, etc.), se vencedor da ação, receberá apenas o equivalente a R$ 6,1 mil, eis que 23% foi devorado pela inflação não reconhecida pela Justiça do trabalho e outros 20% serão destinados ao pagamento de seu advogado. Não raro, mesmo em fase de execução, os trabalhadores ainda dão um “desconto” no total devido, para viabilizar o recebimento mais rápido de sua parcela, através de um acordo.

(...)

Quando uma empresa, depois de sete anos, deixa de repassar mais de 40% da inflação no débito para com o trabalhador, é óbvio que nos deparamos com a expropriação de valores por parte do devedor, caracterizando um típico enriquecimento ilícito e um estímulo para que não se cumpram as leis trabalhistas e se procrastinem os processos judiciais.

(...)

Cumpre registrar que as posições adotadas tanto pela Justiça do Trabalho quanto pelo STJ são baseadas em texto legal, não se tratando de mero capricho ou posição intencional para prejudicar os trabalhadores. O artigo 39 da Lei 8.177/91 estabelecia que os débitos trabalhistas deveriam ser corrigidos pela TRD, que depois foi substituída pela TR, por meio da Lei 8.660/93. No âmbito da correção das ações contra a Fazenda Pública, o artigo 5º da Lei 11.960/09 também manda aplicar a TR.

No entanto, temos princípios e normativos outros que nos autorizam a ter posicionamento diferente.

(...)

A aplicação cega de um dispositivo legal, sem a devida interpretação quanto aos demais princípios constitucionais e gerais do Direito, que cause lesão e prejuízo indevido aos credores judiciais, não parece ser compatível com a noção que todos têm do que é ser “justo” ou “razoável”. E a Justiça não pode — e não deve — ao menos ordinariamente, ratificar um procedimento calcado no injusto e irrazoável, em especial quando há alternativa de interpretação legal aplicável ao caso e que, no nosso humilde entender, se mostra a mais adequada, técnica e justa.”[23]

Acentuando ainda mais a defasagem do crédito trabalhista pelo decurso do tempo, de modo a amparar a aplicação do art. 1.216 do Código Civil[24] ao Direito do Trabalho, destaque-se a fixação da data do ajuizamento das demandas, pelo art. 883 da CLT como termo inicial da contagem de juros moratórios. A adoção deste critério consagra uma ficção jurídica em manifesto prejuízo dos trabalhadores, por desconsiderar o estado de sujeição característico da execução contratual, inviabilizando a tutela judicial de seu patrimônio, pelo eminente temor da perda do sustento como represália, diante da carência de regulamentação da garantia contra a dispensa arbitrária “anunciada” no art. 7º, inciso I, da Constituição.

No particular, a regra civil se “encaixa” com perfeição às situações envolvendo frustração de créditos trabalhistas em sentido lato (o que abrange as indenizações e os pensionamentos decorrentes de ilícitos), sendo mais eficiente do que a prevista na CLT, na medida em que determina a restituição dos frutos (neste caso, juros gerados pelo numerário), a partir do momento em que constituída a posse de má-fé, produzindo a sentença condenatória efeitos pecuniários retroativos, o que viabiliza uma reparação mais abrangente e até mesmo integral do prejuízo causado.

Encontra-se ao alcance dos Operadores do Direito instrumental eficiente a por fim à injustiça provocada pela falta de atualização legislativa no estabelecimento dos índices de atualização dos créditos trabalhistas, alimentares e privilegiados,[25] fomentada, inclusive, pelo próprio ordenamento jurídico, a despeito da resistência apresentada pelo TST pela edição da Súmula nº 445.

Assim, não gerando tal precedente efeito vinculante, ao contrário das súmulas editadas pelo Supremo Tribunal Federal nas hipóteses estabelecidas no art. 103-A da Constituição, caberá aos Juízes de primeira e de segunda instâncias fundamentarem seus julgamentos nos valores constitucionais mais caros a justificar a possibilidade ou a impossibilidade da aplicação do art. 1.216 do Código Civil, aguardando um posicionamento do próprio TST sobre a manutenção ou o cancelamento de sua súmula, bem como a opinião dos demais membros da comunidade jurídica.

Sobre o autor
Oscar Krost

Juiz do Trabalho do Tribunal Regional do Trabalho da 12ª Região (SC). Membro do Instituto de Pesquisas e Estudos Avançados da Magistratura e do Ministério Público do Trabalho - IPEATRA.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

KROST, Oscar. A (in)aplicabilidade do art. 1.216 do Código Civil (responsabilidade do possuidor de má-fé pelos frutos colhidos e percebidos) ao devedor trabalhista.: Análise crítica da Súmula nº 445 do TST. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3679, 28 jul. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/25016. Acesso em: 23 dez. 2024.

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