3. Princípio do In Dubio Pro Reo
Antes de adentrar, efetivamente, ao princípio do in dubio pro reo, cumpre analisar quem é o detentor do ônus probatório, nos termos do CPP.
Paulo Rangel (2009, p.27) afirma que, em virtude do artigo 5º, LVII, da CRFB/88 (que preconiza que ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória), do princípio da ampla defesa e do sistema acusatório, o ônus da prova é do Ministério Público. Deste modo, não é o réu que tem que provar sua defesa, mas sim o Ministério Público a sua acusação.
Aury Lopes Jr. (2006, p.190), por sua vez, estatui que:
Gravíssimo erro é cometido por numerosa doutrina (e rançosa jurisprudência), ao afirmar que à defesa incumbe a prova de uma alegada excludente. Nada mais equivocado. A carga do acusador é de provar o alegado; logo, demonstrar que alguém (autoria) praticou um crime (fato típico, ilícito e culpável). Isso significa que incumbe ao acusador provar a presença de todos os elementos que integram a tipicidade, a ilicitude e culpabilidade e, logicamente, a inexistência das causas da jurisdição.
Pois bem, quanto ao princípio do in dubio pro reo Américo Bedê Júnior e Gustavo Senna (2009, p.96) afirmam que:
[...] a lógica do in dubio pro reo é que se o magistrado, ao analisar o conjunto probatório, permanecer em dúvida sobre a condenação ou absolvição do réu, deve optar pela absolvição, até porque entre duas hipóteses não ideais é menos traumático para o direito absolver um réu culpado do que admitir a condenação de um inocente.
Ora, se o Magistrado ficou em dúvida quanto à autoria e materialidade do fato é por que o Ministério Público não logrou êxito em sua tese acusatória, de modo que o réu não pode ser prejudicado por não conseguir provar sua inocência. Ademais, provar algo que não se praticou é muito mais complexo do que provar algo que se praticou.
Nesse norte, nos crimes de competência do Juiz singular, com fulcro no artigo 386, II, V, VII, do CPP, o juiz deve absolver o acusado (medida que se impõe), mencionando a causa na parte dispositiva da sentença: se não houver prova da existência do fato; se não existir prova de ter o réu concorrido para a infração penal ou se não existir prova suficiente para a condenação.
Destarte, o princípio do in dubio pro réu preconiza que, no caso de dúvida acerca da autoria de crime, o juiz deve decidir a favor do acusado.
4. Princípio do In Dubio Pro Societate
O princípio do in dubio pro societate, em seu sentido literal, é totalmente antagônico ao princípio do in dubio pro reo, pois, diversamente deste, estatui que, no caso de dúvida acerca da autoria de crime, o juiz deve decidir em favor da sociedade.
Conforme ensinamentos de Edilson Mougenot (2010, p.79) e Márcio Ferreira Rodrigues (2000, p.77), este princípio tem sido invocado atualmente em dois momentos específicos: no ato de recebimento da inicial e na fase de pronúncia no procedimento do júri.
Márcio Ferreira Rodrigues (2000, p.77) ensina, ainda, que:
Note-se, de plano, que só se cogita a regra do in dúbio pro societate quando está em jogo a autoria da infração penal. Dito em outros temos, não há que se falar em in dúbio pro societate quando o que se está em questão é a materialidade do fato. È que, neste particular, exige-se que magistrado esteja convencido de que o fato existiu, tanto para receber a inicial penal, quanto para pronunciar o acusado.
Cumpre enfatizar que doutrinadores contemporâneos, como por exemplo Edilson Mougenot (2010, p.79), Eugênio Pacelli de Oliveira (2009, p.588), Aury Lopes Jr. (2006, p.191), dentre outros, criticam, veementemente, a aplicação deste princípio na fase de pronúncia, sustentando, por exemplo, que não há base constitucional para tal.
Destarte, ante a divergência constante na doutrina e na jurisprudência acerca do princípio aplicado na fase de pronúncia, vem o autor discorrer e ponderar sobre o tema.
5. Aplicação do Principio do In Dubio Pro Societate na Fase de Pronúncia
Na fase de pronúncia, ao realizar o juízo de admissibilidade, no qual o magistrado avalia as condições de prosseguimento da acusação, este pode ficar em dúvida quanto à autoria do crime, bem como quanto às causas de isenção de pena[2]. Surge, então, uma incógnita: esta dúvida deve ser decidida em favor do acusado - aplicação do princípio do in dubio pro reo - ou em favor da sociedade - aplicação do princípio do in dubio pro societate?
Os Tribunais Superiores, como restará aduzido a seguir, possuem o entendimento consolidado de que, nesta primeira fase do Tribunal do Júri, deve prevalecer o princípio do in dubio pro societate, ou seja, na dúvida quanto à autoria do crime doloso contra a vida, deve-se pronunciar o acusado em favor da sociedade, remetendo-o ao julgamento do Tribunal do Júri.
Nessa esteira, Eugênio Pacelli de Oliveira (2009, p.588), afirma que:
É costume doutrinário e mesmo jurisprudencial o entendimento segundo o qual, nessa fase de pronúncia, o juiz deveria e deve se orientar pelo princípio do in dubio pro societate, a significar que diante de dúvida quanto à existência do fato e da respectiva autoria a lei estaria a lhe impor a remessa dos autos ao Tribunal do Júri (pela pronúncia)
Prova desta assertiva é o julgamento proferido no Habeas Corpus 81.646-PE, em 04.06.2002, de relatoria do Ministro Sepúlveda Pertence do Excelso STF, na qual dispõe que “para pronunciar o réu, o juiz deve ter convicção, fundada na prova, acerca da existência material do delito, podendo ter dúvida apenas quanto à autoria, pois para esta é suficiente a existência de indícios”
O mesmo entendimento é adotado pelo STJ, conforme observa-se no recente julgado do Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, prolatado no dia 05/05/2011, no HC 152116 (SP n°2009/0212486/8):
É consabido que na primeira fase do processo instaurado para apuração da materialidade e da autoria do crime de homicídio (conhecida como judicium accusationis) vigora o princípio in dubio pro societate, o que impõe a solução de eventual dúvida em favor da coletividade; em outras palavras e trazendo a idéia para o caso presente, deixar-se-ia que a questão da autoria fosse decidida pelos Jurados, cujos votos são soberanos, na dicção do art. 5o., XXXVIII, c da Constituição da República
Neste norte, a Ministra do STJ, Jane Silva, no julgamento do Agravo de Instrumento nº 1.058.516 - SC (2008/0107345-5), realizado em outubro de 2008, aduz que: “para a pronúncia é necessário apenas que o juiz esteja convencido da existência de crime e de indícios de autoria, haja vista tratar-se de mero juízo de admissibilidade da acusação.”
Muitos doutrinadores clássicos, em consonância com o entendimento jurisprudencial consolidado, também afirmam que na fase de pronúncia do Tribunal do Júri vigora o princípio do in dubio pro societate.
Argumento muito utilizado para justificar a aludida assertiva é de que, nesta primeira fase do Júri, realiza-se um juízo de admissibilidade da acusação, não sendo necessárias provas robustas de que o réu foi o autor do crime para ser pronunciado.
Neste contexto, Denilson Feitosa Pacheco (2006, p.429) aduz que:
Nesta fase, vigora a regra do in dubio pro societate, ou seja, na dúvida, ele pronuncia o réu, mandando-o a julgamento perante o tribunal do júri. Isto ocorre porque, neste momento, não se está condenando nem absolvendo, mas apenas admitindo-se que o réu seja julgado pelo tribunal do júri. A regra do in dubio pro reo (princípio do favor rei) aplica-se apenas no momento de condenar ou absolver.
Roberto Parentoni (2008) assegura que:
Para alguns doutrinadores, a pronúncia, como decisão fundada na admissibilidade da acusação constitui juízo de suspeita, pautado em indícios de autoria e da materialidade do delito e não juízo de certeza, que é elemento fulcral exigido para a condenação. Daí a incompatibilidade entre a pronúncia e o provérbio in dubio pro réu, adotando-se, neste caso, o provérbio in dubio pro societate.
Fernando Capez (2009, p.587) afirma que:
Na fase de pronúncia vigora o princípio do in dubio pro societate, uma vez que há mero juízo de suspeita, não de certeza. O juiz verifica apenas se a acusação é viável, deixando o exame mais acurado para os jurados. Somente não serão admitidas acusações manifestamente infundadas, pois há juízo de mera prelibação.
Ainda neste contexto, o Desembargador do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, Delmival de Almeida Campos, no julgamento dos Embargos Infringentes n° 1.0610.05.010258-7/002, realizado em abril de 2009, assim discorreu:
"Por ser a pronúncia mero juízo de admissibilidade da acusação, não é necessária prova incontroversa do crime para que o réu seja pronunciado. As dúvidas quanto à certeza do crime e da autoria deverão ser dirimidas durante o julgamento pelo Tribunal do Júri. Precedentes do STF" (STF - RT 730/463).
Marco Antonio Vilas Boas (2001, p.444), por sua vez, defende a aplicação do princípio do in dubio pro societate na primeira fase do Tribunal do Júri sob a assertiva de que a pronúncia é uma decisão meramente processual, de modo que não há aplicação de pena, mas sim a admissão de uma culpa duvidosa, que poderá ou não ser confirmada pelo Tribunal do Júri.
O principal argumento dos defensores da aplicação do princípio do in dubio pro societate na fase de pronúncia é que a competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida, nos termos do artigo 5º, XXXVIII, “d”, é do Tribunal do Júri, de modo que na dúvida acerca da autoria destes crimes, em hipótese alguma, pode-se impronunciar o acusado subtraindo tal competência.
Este foi o argumento utilizado, mais uma vez, para pronunciar o paciente no recente julgado, prolatado em 03.05.2011, elaborado pelo Desembargador Convocado do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro Adilson Vieira Macabu, no Habeas Corpus nº 189.155 - PE (2010/0200986-8), que dispôs que:
Na decisão de pronúncia, o juízo é de mera admissibilidade da acusação, devendo os fatos e a conduta delitiva ser submetidos a exame pelo mencionado Tribunal, fórum constitucionalmente competente para julgar os referidos crimes. Na aludida decisão, não se deve subtrair da competência do Tribunal Popular, Juiz natural para o processamento e julgamento dos crimes dolosos contra a vida, o exame aprofundado do meritum causae, pois, de acordo com o entendimento jurisprudencial dominante, tal avaliação exaustiva ficou acometida, por destinação constitucional, ao citado Tribunal, fixando a decisão de pronúncia, apenas, o judicium accusationis .
No mesmo sentido, em abril de 2008, o Ministro do Superior Tribunal Federal, Menezes Direito, negou seguimento ao recurso Extraordinário nº 540999 / SP - SÃO PAULO, sob a assertiva de que:
[...] A aplicação do brocardo in dubio pro societate, pautada nesse juízo de probabilidade da autoria, destina-se, em última análise, a preservar a competência constitucionalmente reservada ao Tribunal do Júri. Considerando, portanto, que a sentença de pronúncia submete a causa ao seu Juiz natural e pressupõe, necessariamente, a valoração dos elementos de prova dos autos, não há como sustentar que o aforismo in dubio pro societate consubstancie violação do princípio da presunção de inocência.
Corroborando com este entendimento, Heráclito Antônio Mossin (2009, p.272) afirma que:
[...] levando-se em consideração que apenas em situações excepcionais é que se pode subtrair do júri, juízo natural para julgamento dos crimes dolosos contra vida, consumados ou tentados, sempre que houver dúvida no sentido da materialidade delitiva ou dos indícios da autoria, cumpre ao magistrado pronunciar o imputado, por força do princípio do in dubio pro societate. Também aqui a jurisprudência se mostra uníssima. Não se consegui deparar com qualquer julgado que tenha assumido direcionamento oposto, porquanto isso implicaria a consagração do in dubio pro reo, que é plausível, unicamente, com o procedimento penal condenatório do juízo singular.
Neste contexto, Nestor Távora e Rosmar Antonni (2009, p. 682) estatuem que:
[...] Nota-se que vigora, nesta fase, como senso comum, a regra do in dubio pro societate: existindo possibilidade de se entender pela imputação válida do crime contra a vida em relação ao acusado, o juiz deve admitir a acusação, assegurando o cumprimento da Constituição, que reservou a competência para o julgamento de delitos dessa espécie para o tribunal popular. È o júri o juiz natural para o processamento dos crimes dolosos contra a vida. Não deve o juiz togado substituí-lo, mas garantir que o exercício da função de julgar pelos leigos seja exercida validamente.
No mesmo sentido, Marcellus Polastri Lima (2009, p.748):
Apesar de corrente minoritária que enfatiza poder imperar nesta fase o in dubio pro reo, na verdade, em vista da especial natureza de tal decisão, aqui teremos uma inversão, imperando o in dubio pro societate, pois não se trata de uma condenação e, existindo dúvida, não se pode subtrair a hipótese do seu juízo constitucional, ou seja, o plenário do júri, onde, aí sim, terá inteira aplicação do in dubio pro reo. Também no caso de dúvida sobre o dolo de matar, o juiz deve enviar os autos para a segunda fase do procedimento do júri, pronunciando o acusado, aplicando-se aqui, também, o in dubio pro societate.
Alguns julgados têm admitido a pronúncia do réu simplesmente com embasamento em provas produzidas no inquérito policial (inquisitoriais), as quais não são submetidas ao contraditório. Sustentam que, muito embora o artigo 155 do CPP preconize que não se pode fundamentar a decisão exclusivamente nos elementos informativos colhidos na investigação, na decisão de pronúncia vigora o princípio do in dubio pro societate, afora que a competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida é do Tribunal do Júri, de modo que as provas inquisitoriais são suficientes para remeter o réu a Júri.
Nesse sentido segue o julgado, prolatado em 01/02/2011, do Desembargador Luis Soares de Mello, do Egrégio Tribunal de Justiça de São Paulo, no Recurso em Sentido Estrito nº 0004515-51.1997.8.26.0045, da Comarca de Santa Isabel, que estatui que:
Pronúncia mantida. Requisitos de materialidade e autoria bem caracterizados nos autos. Evidências mais que suficientes a mandar a causa a julgamento popular pelo Tribunal do Júri, foro apropriado para tanto. Manutenção das qualificadoras. Prova inquisitorial que poderá ser renovada em Plenário. Recurso improvido.
No mesmo norte, apenas para arrematar, em 31/05/2006, o Desembargador Mariano Siqueira, do Egrégio Tribunal de Justiça de São Paulo, deu provimento ao Recurso em Sentido Estrito n° 9190818-77.2005.8.26.0000, do Ministério Público.
Julio Fabbrini Mirabete (2005, p.527-528), por seu turno, defende que não é requisito para a pronúncia prova incontroversa da existência do crime, bastando que o magistrado se convença de sua materialidade. Ademais, dispõe em sua obra que:
A sentença de pronúncia, portanto, como decisão sobre a admissibilidade da acusação, constitui juízo fundado de suspeita, não juízo de certeza que se exige na condenação. Daí a incompatibilidade do provérbio in dúbio pro reo com ela. É a favor da sociedade que nela se resolvem as eventuais incertezas propiciadas pela prova. Há inversão da regra in dúbio pro réu para in dúbio pro societate. Por isso, não há necessidade, absolutamente, de convencimento exigido para a condenação, como a de confissão do acusado, depoimentos de testemunha presenciais e etc. (grifo nosso)
Argumentam os doutrinadores que defendem a aplicação do princípio do in dubio pro societate na fase de pronúncia, que indícios suficientes são aqueles que levam a simples suspeita de que o acusado é autor do crime. (MOSSIN, 2009, p.272)
Fernando Capez (2009, p.586) defende que indícios suficientes de autoria são meros indícios, não sendo necessário prova plena para pronunciar o acusado.
No mesmo sentido, Marco Antonio Vilas Boas (2001, p.445) afirma que, para o réu ser pronunciado, basta o indício ou a simples dúvida, não temerária, mas razoável de que foi autor do crime.
Deste modo, sustenta a Jurisprudência Majoritária, bem como os doutrinadores clássicos, que somente quando houver conjecturas (menos que indícios simples) de que o réu não é autor do crime este deve ser impronunciado, pois eventuais dúvidas sobre quaisquer circunstâncias deverão ser julgadas pelo Tribunal do Júri ante a aplicação do princípio do in dubio pro societate, de modo que o réu deve ser pronunciado.