4 A VIABILIDADE JURÍDICA DA INSCRIÇÃO DO DEVEDOR DE ALIMENTOS NOS CADASTROS RESTRITIVOS DE CRÉDITO
Muito se questionaacerca do cabimento e da possibilidade dessa restrição de crédito para o devedor de alimentos, apontando como principais objeçõesa inexistência de previsão legal para a medida postulada e o fato de a relação processual das partes em litígio não ser uma relação de consumo, mas, ao contrário, uma relação jurídica resguardada pelo segredo de justiça, portanto, incompatível com a publicização da dívida.
No que tange à ausência de permissivo legal que autorize a negativização do crédito do alimentante inadimplente, cumpre, inicialmente, fazer menção à norma prevista no artigo 19 da Lei nº 5.478/68 (Lei de Alimentos):
O juiz, para instrução da causa, ou na execução da sentença ou acordo, poderá tomar as providências necessárias para seu esclarecimento ou para o cumprimento do julgado ou do acordo, inclusive, a decretação da prisão civil do devedor até 60 (sessenta) dias.
Da narração do artigo retro transcrito, ao dispor que o juiz poderá, inclusive, decretar a prisão civil do devedor até 60 dias, percebe-se, claramente, e através de uma interpretação puramente literal, a intenção do legislador de conferir aos magistrados a possibilidade de se utilizar de outros mecanismos, ainda que não previstos expressamente em lei, quando estes se mostrarem suficientes e, até mesmo, mais convenientes para o caso concreto.
O artigo 461 do Código de Processo Civil, por sua vez, dispõe que:
Na ação que tenha por objeto o cumprimento de obrigação de fazer ou não fazer, o juiz concederá a tutela específica da obrigação ou, se procedente o pedido, determinará providências que assegurem o resultado prático equivalente ao adimplemento.
Em relação a esse dispositivo legal, Louzada (2009, p. 2), assegura que:
Muito embora esta medida esteja geograficamente localizada no Código de Processo Civil onde se refere a obrigações de fazer e não fazer, este fato, por si só, não faz com que fiquemos engessados quanto a sua aplicação, pois se cuida de norma de caráter geral. Em outras palavras, entendemos que não somente em relação às obrigações de fazer e não fazer, mas o juiz poderá, sempre que entender pertinente, de ofício ou a requerimento das partes, determinar procedimentos necessários para a efetivação da medida específica ou a obtenção do resultado prático equivalente, nos termos do §5º do art. 461 do CPC.Assim, no que pertine às execuções alimentares, quer pelo rito da penhora de bens (art. 475-J do CPC), quer pelo rito da segregação pessoal (art. 733 do CPC), cabível se mostra a determinação de outras medidas com força coercitiva para a efetivação do pagamento, até mesmo porque as medidas contidas no §5º do art. 461 do CPC são de caráter meramente exemplificativo.
Outrossim, Bueno (2010, p. 54-55), ao tratar da mitigação do princípio da tipicidade dos atos executivos, em interessante passagem da sua obra, faz a seguinte afirmação:
É inegável, a luz do modelo constitucional do direito processual civil que o exame de cada caso concreto pode impor ao Estado-juiz a necessidade da implementação de técnicas ou métodos executivos não previstos expressamente na lei e que, não obstante – e diferentemente do que a percepção tradicional daquele princípio revelava –, não destoam dos valores ínsitos à atuação do Estado Democrático de Direito, redutíveis à compreensão do “devido processo legal.
E continua:
Assim, a falta de previsão legislativa sobre determinado mecanismo executivo, a respeito de determinada técnica executiva, não pode e não deve inibir a atuação do Estado-juiz em prol da satisfação do direito suficientemente reconhecido no título executivo, mesmo que ao custo da sua prévia e expressa autorização legal. É legítimo e tanto quanto legítimo necessário, à luz do modelo constitucional do direito processual civil, que o magistrado, consoante as necessidades de cada caso concreto, crie os melhores meios executivos para a satisfação do exequente, para a realização concreta adequada do direito tal qual reconhecido no título executivo. Estas técnicas não previstas expressa e previamente pelo legislador representam o amplo papel que pode e deve ser desempenhado pelos meios atípicos de prestação da tutela jurisdicional executiva.
Demais disso, a negativação do crédito do devedor de alimentos constitui medida de natureza, claramente, cautelar, uma vez que tende a assegurar a eficácia da tutela definitiva a ser alcançada no processo de execução, possuindo todas as peculiaridades da tutela cautelar, que são a instrumentalidade, provisoriedade, revogabilidade e autonomia (Theodoro Júnior, 2011).
E, embora não esteja prevista no Código de Processo Civil, certamente inclui-se nas medidas atípicas, utilizadas no exercício do poder geral de cautela.
Apreciando o tema, Theodoro Júnior (2011, p. 517) observa que:
(...) a função cautelar não fica restrita às providências típicas, porque o intuito da lei é assegurar meio de coibir qualquer situação de perigo que possa comprometer a eficácia e utilidade do processo principal. Daí, existir, também, a previsão de que caberá ao juiz determinar outras medidas provisórias, além das específicas, desde que julgadas adequadas, sempre que houver fundado receio de que uma parte, antes do julgamento da lide, cause ao direito da outra lesão de grave e de difícil reparação (CPC, art. 798).
Além disso, não há como negar a presença dos requisitos da tutela cautelar. Com efeito, o “fumus boni iures” revela-se como o interesse que justifica o direito de ação do exequente. Nesta toada, considerando que o processo principal é de execução do crédito alimentar já fixado, mais do que demonstrada está a plausibilidade do direito substancial invocado.
Do mesmo modo, é evidente o “periculum in mora”, que se traduz no próprio caráter alimentar das prestaçõesdevidas, cuja necessidade para sobrevivência digna do alimentando é presumida.
Por fim, a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, em seu artigo 5º, preceitua que “na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum”.
Deste modo, há de se concluir que, pela moderna interpretação da doutrina, o agir do magistrado na falta de expressa previsão legal é plenamente justificável, e deve ser até mesmo estimulado, quando os meios de efetivação das decisões judiciais existentes se mostrem, no caso concreto, insuficientes para atingir os fins para os quais foram criados.
Por consequência, se o procedimento especial da execução de alimentos autoriza a prisão do devedor, a utilização de meio excepcional, menos gravoso ao devedor, na busca pela satisfação do crédito, é possível e recomendável, em virtude da própria natureza e da urgência da pretensão alimentícia.
E a inserção do devedor nesses cadastros, sem dúvidas, gera uma forte coação, por vezes até maior do que a prisão civil, que, apesar de ser medida mais gravosa, já perdeu muito da sua força de refrear o não cumprimento das prestações alimentícias, tendo em vista que muitos devedores acabam por encarar a prisão como uma escapatória para o não pagamento da pensão alimentícia, seja porque está foragido ou porque o prazo da prisão já tenha sido cumprido.
Essa capacidade coercitiva se revela pelo fato de que, ao ter a dívida alimentar protestada, como ocorre em outras hipóteses de inadimplência, enquadra-se o eventual executado nas previsões da Lei 9.492/97, e, uma vez persistindo no descumprimento da obrigação, passa a sofrer as mesmas restrições previstas na legislação, como impedimento de créditos bancários e financiamentos, dificuldade na utilização de cheque para o pagamento de bens e serviços, dentre outros, para que seja efetivamente cumprida a decisão judicial.
Aponta Magalhães (2011) que as consequências dessa medida, em alguns países latino-americanos, podem implicar a impossibilidade de obter cartões de crédito, abertura de contas, exercer cargos eletivos, judiciais ou hierárquicos, impossibilidade de participação em licitações, além de ter o nome “sujo” na praça, até a regularização da dívida alimentar.
Nesta mesma ordem de ideias, Magalhães (2011, p. 1), ressalta que:
Assim como os alimentos são necessários para aqueles que os requerem, o crédito também é fundamental na vida do cidadão que, no mundo de hoje, depende de credibilidade para realizar diversas operações em sua vida cotidiana. Trata-se, portanto, de um meio eficaz de coerção sobre o executado que, sofrendo restrições severas, entenderá por bem pagar a dívida alimentar.
Ademais, se é possível a restrição de crédito nos casos de dívida “comum”, é lógico que se permita a mesma restrição quando se tratar de dívida de alimentos, que deve ser priorizada pelo devedor, vez que se destina, precipuamente, a atender as necessidades daquele que não pode prover a sua própria subsistência.
Por outro lado, se a prisão civil do devedor só pode ser decretada em face do não pagamento dos alimentos legítimos ou legais, ou seja, dos que decorrem de uma relação familiar, a sua inscrição em cadastros de restrição ao crédito pode ser pleiteada e autorizada mesmo quando os alimentos devidos forem indenizatórios ou ressarcitórios, decorrentes, portanto, de uma sentença condenatória em matéria de responsabilidade civil, afinal, ambos possuem natureza alimentar.
O direito de propriedade do devedor cede passo à fome do credor. Assim, não subsistem motivos válidos para negar à divida alimentar os efeitos pretendidos com o cadastro do devedor nos órgãos de proteção ao crédito.
Impende consignar, ainda, que a jurisprudência pátria já vem admitindo tal inclusão em casos específicos, efetivando importante mecanismo de aprimoramento na tutela dos direitos do alimentado.
Neste contexto, os Tribunais dos Estados de Pernambuco, Goiás e Mato Grosso do Sul já normatizaram a matéria através de provimentos, regulamentando o protesto de títulos judiciais que fixarem a obrigação alimentar.
No mesmo sentido, o Conselho Nacional de Justiça – CNJ, no Pedido de Providência nº. 200910000041784, sobre o “protesto de sentença transitada em julgado” em ação de alimentos, emitiu parecer favorável ao protesto, uma vez que inexiste na legislação pátria qualquer dispositivo legal ou regra proibitiva ou excepcionadora do protesto deste tipo de provimento judicial.
Outra crítica levantada à inscrição do devedor de alimentos nos cadastros restritivos ao crédito funda-se no constrangimento eventualmente sofrido por estes devedores inadimplentes causado pela publicização da dívida, a qual seria incompatível com o sigilo que resguarda essa espécie de relação jurídica.
Entretanto, há que se desconsiderar qualquer violação à intimidade do alimentante. Primeiro, porque os dados que ali constarão devem ser sucintos, informando apenas a existência de uma execução em curso. Segundo, porque a “privacidade” do alimentante não é direito fundamental absoluto, podendo ser mitigada em face do direito do alimentado/credor à sobrevivência com dignidade.
Por oportuno, esclarece Cassol (2007, p.1) que
os alimentos são dotados de carga máxima de direito fundamental, sendo o pronto pagamento medida essencial para garantir a sobrevivência do alimentando. Ocorrendo inadimplência, deve o Judiciário responder com meios céleres e eficazes de prestação jurisdicional, de modo a assegurar a imediata satisfação do direito do credor.
Em vista disso, cumpre pugnar pela eficácia horizontal dos direitos fundamentais nas relações de família, já que estas, como já analisado, também se encontram sob o influxo da dignidade da pessoa humana, levando em conta a ponderação dos interesses em litígio.
A corroborar com esse entendimento, ensinam Gagliano e Pamplona Filho (2012, p. 59) que:
Em nosso sentir, no que tange especificamente às relações familiares, a eficácia dos direitos fundamentais deve ter incidência direta e imediata, especialmente no que toca ao reconhecimento da tutela dos direitos da personalidade de cada um dos seus membros, a exemplo dos direitos à liberdade de orientação afetiva e de igualdade entre cônjuges ou companheiros.E note-se que, nesse contexto, é imperioso que se propicie um ambiente harmônico entre os interesses da própria família, enquanto núcleo social, e os interesses pessoais dos seus membros, com o propósito de garantir a efetividade desses direitos fundamentais.
Emanam decisões dos tribunais de todo o país no sentido de autorizar a inscrição do devedor de alimentos nos cadastros de proteção ao crédito. Estas decisões vêm demonstrando a conscientização dos magistrados no sentido de permitir interpretação adequada aos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, da proporcionalidade e da razoabilidade.
Reafirma-se, portanto, a lição de Cahali (2009, p.33) no sentido de que a doutrina vem reconhecendo que, embora o crédito alimentar seja ligado à pessoa do beneficiário, suas normas disciplinadoras, assim como todas aquelas relativas à integridade da pessoa, sua conservação e sobrevivência, são normas de ordem pública, pois resultam do vínculo familiar, que possui especial proteção do Estado.
Destarte, é oportuno fazer menção ao Direito Comparado, haja vista que a inscrição do devedor de alimentos no Cadastro de Proteção ao Crédito teve sua “origem no Direito Argentino” (MAGALHÃES apud SILVA; LIMA, 2011, p. 2), onde já existe um cadastro próprio para os devedores de pensão inadimplentes, o Registro de Devedores Alimentares Morosos.
Conforme as palavras de Mold (2008, p. 3):
Este Registro foi implementado a partir do ano 2000 na cidade autônoma de Buenos Aires, através da Lei 269 e em outras Províncias, como Chaco (Ley 4.767/00), Córdoba (Ley 8892/00), Mendoza (Ley 6879/01), dentre outras.
A legislação argentina traz, ainda, como fundamento da lei nº. 13074 da província de Buenos Aires, a seguinte explanação:
El altísimoporcentaje de incumplimiento frente alasobligaciones alimentarias, exponenensituación de riesgo a las partes más indefensas de las redes familiares. Estoesasí, porque lascuotas por alimentos según surge del Código Civil, son destinadas ensumayor parte a los menores, a losancianos y a los enfermos. De sunaturaleza eminentemente asistencialrecogesus características distintivas, como la de ser personal, inalienable, irrenunciable, inembargable, etcétera. Esdecir que esta obligación jurídica, si bien es de contenido eminentemente patrimonial, reúne caracteres encierto modo de privilegio ensutratamiento, precisamente por el objetivo que cumple. Desde las últimas décadas delsiglopasado, esta obligación y suincumplimiento, hancrecidocuantitativamente, como consecuencia de loscambios que se hanproducidoenlaorganización de nuestras famílias. A partir del divorcio o separaciones de hecho se estructurannuevos modelos familiares como lasllamadasfamiliasmonoparentales y lasfamilias ensambladas, conelsimultáneodecrecimiento de familias nucleares. Esta nuevaestructurada lugar a laobligación alimentaria por parte del padre o madre no conviviente, a favor de loshijos menores. El incumplimientoenel pago de lascuotas, en este tipo de casos, se calcula enámbitosjurisdiccionales, enun 70 por ciento. Tal cifra, essugerente de lagravedaddel problema padecido por loshijos, por elincumplimiento de losdeberesparentales que no se excluyen por el divorcio de los padres, y que compromete su normal desarrollo. De tal modo, que cuantorefuerzo se otorgue desde el campo legal, para que laJusticia logre elcumplimiento de losobligados que se evadenconliviandad de laresponsabilidad que les compete, debe ser considerado bienvenido.
A exemplo da experiência argentina, tramitam, atualmente, na Câmara dos Deputados, os projetos de lei nº 119/2011 e nº 1585/2007, os quais pretendem, respectivamente, prever a inclusão do nome de devedor de pensão alimentícia em cadastros de inadimplentes, e criar o Cadastro de Proteção ao Credor de Alimentos (CPCA), no Ministério da Justiça, no qual será inscrito o nome do devedor de alimentos em atraso com suas obrigações, a partir de 03 (três) prestações, sucessivas ou não, estabelecidas por concessão liminar, sentença ou homologação de acordo judicial ou extrajudicial.