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A cultura de consumo de massas:

um desafio ao novo modelo de Estado Democrático de Direito

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Agenda 08/09/2013 às 07:07

3. LEGITIMAÇÃO ESTATAL PARA A TUTELA DO CONSUMO DE MASSAS

É cediço que o objetivo maior do Estado é a consecução do Bem Comum. Mas, o que vem a ser o bem comum? Henry Batiffol tece a seguinte consideração:

Se o direito é proposto em nome da sociedade e deve por isso de início, servir à vida social, para que a sociedade exista, não se pode negar, que, na concepção mais difundida, a vida social não constitui um fim em si, e que a pessoa é um valor mais elevado – qualquer que seja a explicação que se dê – deve encontrar o seu florescimento na vida em sociedade. O direito deve levar em conta essa finalidade da sociedade. Muito mais do que o bem próprio e intrínseco dessa última. Se a sociedade concede benefícios a um número mais ou menos significativo de cidadãos, mas ao preço da opressão de outros, já não se pode falar de um bem comum, pois a sociedade não é mais de todos.

Ronald Dworkin possui semelhante opinião, sustentando que os direitos naturais ou morais possuem sua razão de ser na proteção que prestam ao indivíduo, ainda que “against the majority”, uma vez que existem direitos e liberdades que desempenham um papel tão relevante para a Humanidade que não podem estar submetidos a decisões e vontades políticas. Em evidente polêmica com a visão utilitarista, a análise dworkiniana advoga que quando alguém tem um direito básico, o governo não poderá negá-lo ainda que em nome de um “suposto” interesse geral.

Contudo, o próprio Batiffol nos fornece a solução para tal impasse, consignando que “uma solução simples seria a do minimum, ou seja, exigindo apenas o estrito necessário ao estabelecimento das relações sociais, a lei estaria certa de impor somente o que é de interesse de todos”.

Com vistas no Bem Comum é que podemos afirmar que a atividade de consumo não se exaure na clássica cadeia de produção. Gera, outrossim, conseqüências diversas que extravasam o mero ciclo econômico. Alguns exemplos a serem citados, dentre os mais conhecidos, estão no aumento da violência, a poluição e o desperdício de recursos naturais, entre outros. Estes têm sido objeto de inúmeras campanhas de conscientização por parte do Poder Público e da sociedade civil, mas, certamente, esmiuçar estas colocações requer um trabalho específico, não sendo objeto desta monografia. Entretanto, procurar-se-á abordar alguns aspectos gerais sobre o assunto, de forma a ilustrar os instrumentos de que o Estado dispõe para limitar o consumo como liberdade individual, em prol da coletividade.

Nesse aspecto, destaque-se que o constitucionalismo brasileiro agasalhou os direitos sociais, aos quais ofereceu especial proteção. O conceito desses direitos é dado por José Afonso da Silva (1997: p. 277):

Podemos dizer que os direitos sociais, como dimensão dos direitos fundamentais do homem, são prestações positivas proporcionadas pelo Estado direta ou indiretamente, enunciadas em normas constitucionais, que possibilitam melhores condições de vida aos mais fracos, direitos que tendem a realizar a igualização de situações sociais desiguais. São, portanto, direitos que se ligam ao direito de igualdade. Valem como pressupostos do gozo dos direitos individuais na medida em que criam condições materiais mais propícias ao auferimento da igualdade real, o eu, por sua vez, proporciona condição mais compatível com o exercício da liberdade.

Vislumbra-se, dentro desse conceito, como uma das formas hodiernas de prestação indireta proporcionada pelo Estado, dentro do modelo de Estado Democrático de Direito, o estimulo à criação das OSCIP’s (Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público), importante instrumento de cidadania consagrado pela Lei nº 9.790/99. Dentre aquelas cujos objetivos se relacionam de forma direta com a questão do consumo, temos, por exemplo, a criação de OSCIP’s com vistas à defesa do meio-ambiente, da ética, da cidadania, dos planos de saúde, do desenvolvimento de tecnologias alternativas e jurídicas, estas últimas destinadas à defesa do consumidor[30]. O exemplo acima é, senão, uma das manifestações do disposto no art. 4º , II, b, do CDC, in verbis:

Art. 4º A Política Nacional das Relações de Consumo tem por objetivo o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito a sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transferência e harmonia das relações de consumo, atendidos os seguintes princípios:

(omissis)

II – ação governamental no sentido de proteger efetivamente o consumidor;

- por iniciativa direta;

- por incentivos à criação e desenvolvimento de associações representativas.

Sobre o tema, frisou o insigne magistrado do TJRJ, Werson Rêgo[31]:

A atuação do Estado, vem conferir efetividade aos princípios e objetivos traçados pelo legislador consumeiro, no que está juridicamente amparado, nos termos do artigo 4.º, inciso II, da Lei n.º 8.078/90, que prevê entre os princípios da Política Nacional das Relações de Consumo a ação governamental no sentido de proteger efetivamente o consumidor".Ademais disso, nunca é exaustivo lembrar que o Código de Defesa do Consumidor é integrado por normas jurídicas de ordem pública e interesse social.

A grande dificuldade em tutelar todos os aspectos da relação de consumo reside no fato de existirem, aí, fatores legais e morais. De um lado, o diploma consumerista agasalha a proteção do consumidor frente ao fornecedor; de outro há o dever de colaboração cidadã para a consecução de uma sociedade, onde as liberdades individuais hão de ser mitigadas a fim de que se estabeleça um denominador comum de convívio sadio.

Ives Gandra da Silva Martins Filho[32] assevera:

Para fundamentar qualquer teoria social, é peça de fundamental importância o Princípio do Bem Comum. Ao contrário do que se possa pensar, não é um princípio meramente formal ou demasiadamente genérico e teórico, sem conteúdo determinado, mas um princípio objetivo, que decorre da natureza das coisas e possui inúmeras conseqüências práticas para o convívio social.

E arremata, citando a lição de Alceu Amoroso Lima:

A alma do Bem Comum é a solidariedade. E a solidariedade é o próprio princípio constitutivo de uma sociedade realmente humana, e não apenas aristocrática, burguesa ou proletária. É um princípio que deriva dessa natureza naturaliter socialis do ser humano. Há três estados naturais do homem, que representam a sua condição ao mesmo tempo individual e social: a existência, a coexistência e a convivência. Isto vale para cada homem, como para cada povo e cada nacionalidade.

Um dos grandes problemas que a sociedade vivencia, na seara ética, reside, como já explanado anteriormente, na assimilação das informações que nos são passadas. O indivíduo sabe que atitudes devem ser observadas no dia-a-dia para que se logre êxito na construção de uma sociedade mais justa, mas lhe falta a prática ou abstenção desses atos.

Aristóteles, em sua Ética a Nicômacos, balizava:

As coisas que temos de aprender antes de fazer, aprendemo-las fazendo-as – por exemplo, os homens se tornam construtores construindo, e se tornam citaristas tocando cítara, da mesma forma, tornamo-nos justos praticando atos justos, moderados agindo moderadamente, e corajosos agindo corajosamente.

Há que se ponderar, evidentemente, acerca da potencialidade ofensiva que determinadas condutas ofereçam a um bem jurídico. Naturalmente, a vida em sociedade é eivada de alguns riscos, alguns deles permitidos, e outros proibidos. Os primeiros recebem uma tutela mais branda, na esfera extrapenal, na medida em que as respectivas leis asseguram a repressão adequada a determinadas ofensas, e os últimos uma tutela mais severa, objeto do Direito Penal, tendo em vista as ofensas mais graves a bens jurídicos mais relevantes.

A cidadania foi alçada como um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito, explícita no art. 1º, II da Carta Maior. Os constitucionalistas a concebem como qualificadora dos participantes na vida do Estado, com vistas à integração social, por meio da prevalência da vontade popular, em conexão com os direitos políticos (art. 14) e com o conceito de dignidade da pessoa humana (art. 1º, III), com os objetivos da educação (art. 205), como base essencial do regime democrático (José Afonso da Silva, 1997: 108).

Mas, qual é a vontade popular hoje? Onde se situa a dignidade dos demais indivíduos perante a potencialidade danosa das condutas de alguns, ou seja, que instrumentos a coletividade dispõe para reprimir tais condutas? Ou seria a própria coletividade a causadora desses males que atingem a sociedade de consumo?

José Afonso da Silva, sobre os objetivos das constituições ao tratarem de tal tema, proclama:

Ora, uma constituição não tem que fazer declarações de deveres paralela à declaração de direitos. Os deveres decorrem destes na medida em que cada titular de direitos individuais tem o dever de reconhecer e respeitar igual direito do outro, bem como o dever de comportar-se, nas relações inter-humanas, com postura democrática, compreendendo que a dignidade da pessoa humana do próximo deve ser exaltada como a sua própria.

E vislumbra, ainda, o grande problema da tutela das liberdades individuais em relação aos direitos coletivos: “Na verdade, os deveres que decorrem dos incisos do art. 5º, têm como destinatários mais o Poder Público e seus agentes em qualquer nível do que os indivíduos em particular”.

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Diante disso, somente uma afirmação parece-nos mais adequada a solucionar a questão: a educação, nesse momento, seria a única forma de despertar a consciência ética a fim de garantir a sobrevivência da tecnoestrutura.

3.1 O Poder Judiciário

Para que o Estado realize suas funções de forma a garantir a democracia no Estado Democrático de Direito, faz-se necessária a harmonização e independência de seus três poderes, isto é, Executivo, Legislativo[33] e Judiciário. Tal decorre da necessidade de controle do poder pelo próprio poder, derivado do sistema de freios e contrapesos (checks and balances), “importado” do direito norte-americano.

O Poder Judiciário é principal e tradicionalmente caracterizado como instituição competente para composição de conflitos de interesse. No entanto, devido ao atual contexto social, a magistratura brasileira tem tentado se sub-rogar no desempenho de funções estranhas às de sua competência estrita, com o fim de realizar efetivamente a justiça social, cumprindo, assim, às diretrizes traçadas pelo Estado Democrático de Direito, em resposta ao individualismo que dominou o pensamento do séc. XIX. Garcia de Lima (2002) proclama o atual momento como “a era do Judiciário”. Em ensaio ao Instituto dos Advogados de Minas Gerais (IAMG)[34], o eminente magistrado registrou:

Da Ética individualista, vigente no século XIX (Liberalismo Econômico), passamos contemporaneamente a prestigiar a Ética de conteúdo social (Estado Social e Democrático de Direito). Além dos valores atinentes ao indivíduo (vida, liberdade, propriedade etc.), relevamos valores referentes a toda comunidade (por exemplo, saúde, educação, previdência e assistência social, assistência à criança, ao adolescente e ao idoso, proteção ao meio ambiente e aos consumidores, cultura, desporto, lazer etc.).

Dayse Coelho de Almeida assenta:

(...) a globalização, na sua vertente mais atual, tem se mostrado um fator de desequilíbrio e até mesmo um empecilho à concretização da democracia, porque retira a soberania dos Estados e utiliza-se de formas sofisticadas de desmantelo das estruturas que permitem a soberania popular, base do modelo democrático[35].

Assim sendo, mais do que nunca, a função do juiz, como “administrador” das tensões sociais, emerge de forma destacada. Já dissemos, anteriormente, que o fim do Estado é a consecução do bem comum. Vejamos o que diz o art. 5º da Lei de Introdução ao Código Civil:

Art. 5º Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum.

Desse modo, afasta-se, por exemplo, a clássica associação do Direito Administrativo como disciplina a estudar as funções do Poder Executivo, pois observar o bem comum, foi tarefa também incumbida aos magistrados. É o que se tem chamado de Administração Pública Gerencial.

Na seara consumerista, esse poderoso artigo da LICC há de ser observado veementemente, uma vez que o paradigma sócio-econômico contemporâneo reclama uma tutela enérgica por parte dos juízes em relação ao poderio das grandes corporações. Não devem, os juízes, esquecerem-se de que o Código de Proteção e Defesa do Consumidor é um diploma cujas normas são de ordem pública e interesse social (art. 1º), havendo, portanto, um liame entre este artigo e o da LICC.

Uma das atuais feições do Direito no século XXI pode ser observada em sua principialização. A Constituição Federal de 1988 é eminentemente principiológica, assim como o próprio CDC.

Paulo Bonavides (1998: 228) nos fornece a noção de princípio como sendo “onde designa as verdades primeiras”. Todavia, a maioria da doutrina pátria adota o conceito oferecido pelo conspícuo Celso Antônio Bandeira de Mello (1980: 230), para quem princípio é, por definição:

(...) mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência, exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido harmônico.

Reale Júnior, com acerto, assenta que a atual conjuntura social é uma das responsáveis pela crise vivenciada pelo Judiciário, salientando que “o clima espiritual de nosso tempo, de consumismo desenfreado, a constante convicção da impunidade no Brasil, apesar de tantos escândalos denunciados e apurados contribuem mais”[36], consignando, além disso, a má formação dos profissionais de Direito:

É preciso dar mais atenção à teoria geral do Direito, à filosofia do Direito, à sociologia do Direito. O problema maior é nesse campo: os juízes não têm esse conhecimento. O nível caiu muito. O juiz hoje é um especialista de manuais porque os bacharéis são assim, as faculdades têm formado gente assim. O juiz não pode apenas fazer concurso. É fundamental que ele tenha, a meu ver, um tempo anterior de prática na área jurídica, como advogado, promotor, defensor público, para sentir o que é a defesa dos interesses desatendidos pretendidos à Justiça. Até para baixar um pouco a crista do jovem, sabedor dos alfarrábios, que acaba de assumir o posto de juiz. Seria interessante que os juízes aprovados num primeiro concurso fizessem um curso de juiz, como acontece com os diplomatas no Itamaraty. Para quebrar a noção de que o juiz é Deus. Especialmente os jovens têm essa arrogância de ditar a justiça. Ao longo do tempo, o juiz vai vendo que também está sujeito a problemas, e vai quebrando a sensação de onipotência. Isso é fundamental.

A necessidade de um Judiciário mais forte e atento aos clamores sociais é defendida por Silva de Souza[37]:

É lugar comum qualificar, às vezes até com alguma razão, o Judiciário de lento, ineficaz, burocrático e conservador. Apesar disso é cada vez mais intensa a judicialização dos conflitos de interesses individuais e coletivos. Na mesma proporção em que crescem as críticas ao Judiciário, surpreendentemente aumenta a busca de tutela jurisdicional e deposita-se na sua atividade a esperança de solução para problemas sociais de grande complexidade. É uma contradição instigante, mas, lógica e praticamente, quase inexplicável. Relevante, do ponto do vista do Ministério Público, não é o crescimento quantitativo das demandas judiciais tradicionais, isto é, aquelas de cunho individualista, acréscimo que pode ser atribuído diretamente ao aumento da população, mas sim o notável incremento das demandas de cunho coletivo, destinadas à tutela de direitos ou interesses de natureza transindividual.

São as ações movimentadas com a finalidade de assegurar efetividade a direitos ou interesses de feição difusa ou coletiva, aquelas que expõem mais abertamente as deficiências e as inadequações do Poder Judiciário, da mesma forma como estão exigindo do Ministério Público complexas adaptações e transformações ainda não concluídas. Aliás, a circunstância de servirem de instrumento para a participação popular através da Justiça e, portanto, documentarem, por um lado,um novo modo de expressar a cidadania e, por outro, demandarem dos magistrados uma conduta sem paradigma anterior, já é suficiente para provocar interesse e inquietação. Este é o aspecto central que considero relevante para uma reflexão do Ministério Público sobre a administração da Justiça, considerado o termo "administração" em sentido amplo. É certo que, pelo menos em parte, a abordagem escolhida pode desbordar dos limites estritos da temática do congresso, mas a presença de magistrados, advogados e membros do Ministério Público cria o ambiente propício para que seja enfrentada.

Uma das posições mais instigantes em relação à morosidade do Judiciário foi abordada pelo professor Paulo Maximilian em aula para a 1a. turma de pós-graduação da Universidade Estácio de Sá em Juiz de Fora-MG. Explanando acerca da lei que instituiu o tempo máximo de 15 minutos de permanência nas filas das instituições bancárias, indagou se o Poder Judiciário estaria apto a julgar tais instituições no pólo passivo das lides, pelo descumprimento da respectiva lei, ao mesmo tempo em que faz com que seus jurisdicionados esperem horas a fio por audiências, as quais chegam a atrasar por mais de uma hora.

A rigor, entendemos ser impossível nos dissociarmos de tal raciocínio, lembrando, para tanto, em breve parêntesis, do discurso proferido pelo insigne professor e magistrado Werson Rêgo, em lição para a mesma turma, ao se reportar à doutrina de Gandhi. Conta, a história, que o célebre guru foi procurado pela mãe de uma criança aficcionada por doces, e que tinha o sábio pensador como seu ídolo. Desejando que seu filho cessasse com o consumo da guloseima, procurou o grande pensador a fim de que o mesmo o orientasse acerca dos males causados pelos doces, narrando-lhe o fato, sendo que este, após ouvir com atenção, pediu-lhe para que voltasse em quinze dias. Sem entender nada, mas confiante de que o sábio apresentaria a solução para o problema, voltou, então, depois de transcorrido o prazo ora fixado. Perante o mestre, este, então, sugeriu ao garoto que parasse de comer doces. Sem entender nada, a preocupada mãe indagou ao filósofo: Mas, por que o senhor não disse isso ao meu filho na primeira vez que estivemos aqui? Em resposta, o grande conselheiro proferiu: Simplesmente porque há 15 dias eu também comia doces. Então, como eu poderia aconselhar alguém a abandonar um hábito que eu mesmo cultivava?!

Ou seja, onde se situa a ética do Poder Judiciário, quando ele próprio promove atrasos no desempenho de suas atividades? É um caso a ser refletido pelos magistrados na aplicação de leis como esta, que é intolerante em relação aos atrasos na prestação de serviços bancários, pois, como bem lembrou o prof. Paulo Maximilian, nunca nos importamos de esperar incansavelmente na fila do show de nosso artista preferido, do cinema, do embarque em aeroportos etc. Por que, então, nos importamos tanto em esperar mais de 15 minutos na fila do banco?

Mazelas à parte, fato é que o Poder Judiciário tem se mostrado positivamente receptivo à legislação consumerista. Percebe-se, nos tribunais pátrios, um aumento sensível no número de decisões embasadas nos dispositivos do CDC, em resposta àqueles que tentam lhe “amesquinhar o alcance e aplicação” (Werson Rêgo: 2002). Na esfera dos tribunais superiores, o ex-Ministro do STJ, Ruy Rosado de Aguiar, foi um dos grandes responsáveis pela difusão dos ideais traçados pelo legislador consumeiro, o que acabou por influenciar, em maior ou menor grau, os tribunais inferiores.

Recentemente, um dos maiores exemplos que se tem é dado pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, através de seu presidente, Des. Sérgio Cavalieri Filho, o qual vem tratando com mãos-de-ferro as questões levadas à apreciação daquela corte. Esperamos, assim, assistir ao vaticinado pelo notável Kazuo Watanabe:

As normas materiais mais severas e mais apropriadas à regulação das relações de consumo certamente influirão na redução dos conflitos de interesses em níveis mais aceitáveis e, por isso mesmo, apesar da facilitação do acesso à justiça, o número de demandas, com o correr do tempo, será inferior ao que é esperado pelos mais céticos e críticos da nova legislação. Para que isso efetivamente ocorra, porém, é necessário que a própria sociedade, principalmente por meio dos atores da relação de consumo, que são os consumidores e fornecedores, de um lado, e o Estado, direta ou indiretamente, por meio de seus órgãos e entidades autárquicas e paraestatais, de outro, compreendam, aceitem e efetivamente ponham em prática os objetivos estabelecidos no Código.

Por derradeiro, em relação ao Judiciário, frise-se que o Código de Defesa do Consumidor é um sistema elaborado com a utilização de uma técnica legislativa de inserção de cláusulas abertas, inspirado nos modelos alemão e francês. Por isso mesmo, conforme afirmou Nelson Nery Júnior[38], é uma legislação que dificilmente envelhecerá, motivo pelo qual a magistratura deve se orgulhar de ter em mãos um poderoso instrumento de garantia da cidadania e de justiça social, em resposta ao “oitocentismo” que ainda permeia a mentalidade judiciária no Brasil.

3.2 O Ministério Público

O Ministério Público foi alçado como função essencial à Justiça, por força do art. 127 da Carta de 1988, caracterizado como “instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis”. É órgão de suma importância na defesa dos direitos do consumidor, posto que é legitimado à promoção do inquérito civil e da ação civil pública, uma vez que aqueles direitos se revestem das características elencadas no art. 129, III, in fine, da Constituição Federal (direitos difusos e coletivos).

No âmbito das normas programáticas do CDC, o art. 5º, II agasalhou a instituição de Promotorias de Justiça de Defesa do Consumidor, no âmbito do MP, como instrumento à consecução da Política Nacional das Relações de Consumo, a fim de especializar e garantir efetividade na defesa dos direitos supra mencionados.

3.2.1 Direitos Difusos

Para uma melhor compreensão do que são esses direitos, imperiosa, entretanto, se faz uma breve explanação do que estes vêm a ser. O próprio Código de Defesa do Consumidor nos fornece o conceito de interesses ou direitos difusos no art. 81, I, como sendo aqueles como “os transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato”.

A fim de melhor visualizar, recorrer-se-á ao exemplo fornecido por Paulo Valério Dal Pai Moraes no 1º Seminário Internacional de Direito do Consumidor, realizado pela Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (EMERJ) entre 09 e 12 de agosto de 2004. Em palestra proferida no referido evento, o ilustre representante do MP do Rio Grande do Sul mencionou o caso da veiculação publicitária prevista no art.37, § 2º do CDC,[39] a qual se aproveitava da deficiência de julgamento das crianças. Na oportunidade, narrou que uma consumidora, no caso a mãe de uma menina, procurou o auxílio do MP, objetivando a proibição da veiculação publicitária, uma vez que sua filha se dispôs a fazer o que a propaganda sugeria. Dias após o início da apuração do fato, a mesma senhora que havia recorrido ao órgão ministerial voltou, com vistas a desistir da ação, uma vez que a mentora da publicidade havia entrado em contado com a mesma e lhe oferecido uma considerável soma em dinheiro para que desistisse da empreitada. Em resposta, o Dr. Paulo Valério explicou que tal seria impossível, uma vez que se tratava de um direito difuso, ou seja, não se sabia quantos consumidores haviam sido atingidos pela publicidade em questão, ou seja, eram pessoas indeterminadas e ligadas por uma circunstância de fato.

3.2.2 Direitos Coletivos

Por sua vez, os direitos coletivos possuem as mesma características dos anteriormente mencionados, todavia com a ressalva de, desta vez, haver a possibilidade de determinação dos titulares como pertencentes a um grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica base (art. 81, II). Como exemplo, podemos citar o conjunto de alunos de uma determinada escola. Ou seja, é uma coletividade expressa em um certo número de indivíduos. In casu, o vínculo jurídico entre estes indivíduos poderia vir a ser a cobrança abusiva das mensalidades escolares.

3.2.3 Interesses ou direitos individuais homogêneos

A Constituição Federal de 1988, todavia, foi tímida ao tratar dos interesses cuja defesa incumbe ao Ministério Público, deixando de fora os interesses ou direitos individuais homogêneos. O que caracteriza esses direitos ou interesses é a origem comum da situação fática (um contrato, por exemplo).

O diploma consumerista tratou da questão de forma expressa, no art. 82, I, in verbis:

Art. 82 Para os fins do art. 81, parágrafo único, são legitimados concorrentemente:

I – o Ministério Público.

Surge, então, discussão acerca da legitimidade ministerial para a defesa desses direitos, uma vez que a Lei Maior não previu tal possibilidade.

Em consulta à jurisprudência do STJ, é possível verificar que existe divergência quanto à legitimidade do MP para as ações dessa natureza. Alguns de seus julgadores, como a Ministra Denise Arruda, entendem ser o MP parte ilegítima para tal class action, ao argumento de que direitos dessa natureza são divisíveis e identificáveis, portanto passíveis de serem defendidos por seus titulares.

De seu turno, Ministros como Barros Monteiro, Castro Meira e, em especial, a Ministra Nancy Andrighi, que entende tais direitos como relevantes por si só, defendem o MP como legitimado à propositura de ações coletivas que objetivem a defesa dos mesmos.

Filiamo-nos a esta última corrente, até mesmo em virtude da interpretação do art. 127 da Constituição Federal, quando incumbe ao Ministério Público a defesa dos interesses sociais. Ora, o Código de Proteção e Defesa do Consumidor, logo em seu art. 1º se estabelece como diploma de ordem pública e interesse social. Logo, o órgão ministerial é incontroversamente legitimado para a defesa dos direitos individuais homogêneos.

Nelson Nery Júnior[40] baliza:

(...) as normas do CDC são, ex lege, de ordem pública e interesse social (art. 1º, CDC). Ao definir o perfil institucional do Ministério Público, o art. 127 da CF diz ser o parquet instituição que tem por finalidade a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis. Assim, o ajuizamento, pelo Ministério Público, de ação coletiva para a defesa de direitos individuais homogêneos tratados coletivamente está em perfeita consonância com suas finalidades institucionais, sendo legítima a atribuição, ao Ministério Público, dessa legitimidade para agir, pelos arts. 81 e 82 do CDC, de conformidade com os arts. 127 e 129, IX, da CF.

Impende lembrar, ainda, que o mais poderoso dos instrumentos utilizados pelo MP na defesa dos direitos do consumidor reside na Lei nº 7.347/85, Lei da Ação Civil Pública, a qual, alias, também prevê a defesa dos direitos individuais, sendo que o art. 1º, II, faz expressa menção ao consumidor como sujeito amparado pelas disposições da nominada lei, sendo que o art. 5º traz o MP como legitimado à propositura das ações civis públicas, quer seja como parte, quer seja como fiscal da lei (art. 5º, § 1º).

3.3 PROCONs e Associações de Defesa do Consumidor

Assim como o Ministério Público, a assistência jurídica gratuita e integral ao consumidor está prevista no art. 5º, I do respectivo código.

Na seara administrativa, importantíssimo papel tem sido desempenhado pelos PROCONs, na defesa dos interesses dos partícipes das relações de consumo.

A importância que se tem dado à atuação desses organismos é tão grande que, recentemente, em Juiz de Fora-MG, o antigo PROCON municipal, hoje transformado em Agência de Proteção e Defesa do Consumidor, com natureza de Autarquia (Lei nº 10.589/93), é o primeiro ente dessa natureza, no Brasil, com as atribuições voltadas à defesa do consumidor, medida que lhe conferiu maior autonomia no desempenho das respectivas funções.

Os instrumentos de que dispõem os órgãos da Administração Pública para garantir a efetiva proteção e defesa dos consumidores estão elencados no art. 55 usque 60 do CDC. Todavia, é possível notar que ainda existe uma dificuldade muito grande por parte desses organismos no que se refere à implementação das medidas necessárias ao regular desempenho da atividade de fornecimento no mercado de consumo. Freqüentemente dependem do auxílio de órgãos descentralizados da Administração Pública, muito embora estes órgãos desempenhem funções afins, como os entes fiscalizadores, por exemplo. O ideal, entretanto, seria que os PROCONs dispusessem de pessoal próprio, treinado especificamente para tais funções, ou seja, que se familiarizassem com os dispositivos do código.

Para tanto, o CDC, em seu art. 56 e incisos, dispõe de um rol de sanções administrativas postas à disposição do Poder Público com o fito de coibir as práticas contrárias às diretrizes do codex. Conforme o eminente Zelmo Denari, a Lei 8.078/90 classifica as sanções administrativas em três modalidades: a) pecuniárias – representadas pelas multas, em razão do inadimplemento dos deveres de consumo; b)objetivas – que atingem os bens ou serviços disponibilizados no mercado; c) subjetivas – aquelas que atingem o próprio direito de exercício da atividade empresarial.

Outro dado importante diz respeito à solução de demandas consumeristas no âmbito administrativo, o que reduz, via de conseqüência, a provocação jurisdicional, bem como a sobrecarga do MP, uma vez que, são freqüentes as representações encaminhadas ao órgão ministerial.

A divulgação de materiais objetivando a auto-proteção do consumidor também tem garantido presença nos programas desenvolvidos pelos PROCONs, atendendo ao disposto no art. 6º, II do CDC. Diversos são os programas junto a escolas, empresas, e ao público em geral, alertando o consumidor acerca dos benefícios de um consumo sustentável, de produtos e serviços que atentem contra sua saúde e segurança, e garanta sua livre escolha. Como bem lembrado por José Geraldo Brito Filomeno, não só os órgãos públicos possuem tal incumbência, mas também a iniciativa privada e, assim sendo, não raras as parcerias entre aqueles órgãos, empresários e associações afins, em cumprimento ao binômio Estado/sociedade civil.

Em São Paulo, a Fundação Procon vem promovendo, incansavelmente, uma série de eventos, com temáticas envolvendo desde os direitos do consumidor torcedor até as relações de consumo e a discriminação racial, permitindo-nos vislumbrar a dimensão alcançada por relações dessa natureza.

Por sua vez, as Associações de Defesa do Consumidor têm surgido de forma crescente. Como mencionado anteriormente, a Lei 9.790/99, que regula a criação de Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP) veio a instituir outro importante instrumento de atuação para a defesa dos consumidores. Nada menos do que 46 associações, cujas finalidades se identificam em maior ou menor grau com os direitos do consumidor, estão dispostas no rol do Ministério da Justiça, em sua esmagadora maioria com vistas à tutela de direitos transindividuais.

Augusto de Franco[41] (2002), sobre a importância da Lei nº 9.790/99 esclarece:

A Lei das OSCIPs parte da idéia de que o público não é monopólio do Estado. De que existem políticas públicas e ações públicas que não devem ser feitas pelo Estado, não porque o Estado esteja se descompromissando ou renunciando a cumprir o seu papel constitucional e nem porque o Estado esteja terceirizando suas responsabilidades, ou seja, não por razões, diretas ou inversas, de Estado, mas por “razões de Sociedade” mesmo.

Outrossim, mister destacar a legitimidade das associações para a representação dos associados, garantida pelo art. 5º, XXI da Constituição Federal, confirmando, assim, a vocação constitucional presente no art. 82, IV do CDC, ao conferir legitimidade concorrente às associações legalmente constituídas há pelo menos um ano e que incluam entre seus fins institucionais a defesa dos interesses e direitos protegidos pelo código, sendo que o legislador consumeiro, a fim de ampliar o acesso à justiça, facultou ao juiz, no § 1º do mesmo artigo, a dispensa do requisito de pré-constituição associativa quando restar verificado relevante interesse social evidenciado pela dimensão ou característica do dano, ou a relevância do bem jurídico envolvido.

Ainda nos domínios do Poder Executivo, a representação dos consumidores, por meio das respectivas associações, conta ainda com o auxílio do Ministério da Justiça, através do Departamento de Proteção e Defesa do Consumidor da Secretaria de Direito Econômico. Tal decorre do art. 106, II do CDC, que lhe atribui àquele órgão competência para conhecer de consultas, reclamações ou sugestões apresentadas por entidades representativas ou pessoas jurídicas de direito público ou privado. Conforme destacado por Daniel Roberto Fink, o nominado Departamento “é o destinatário natural de dúvidas sobre relações de consumo, quer específicas, como casos concretos, quer gerais, como execução de determinadas diretrizes traçadas. É também responsável pelo encaminhamento da solução de conflitos de consumo noticiados por denúncias de interessados”.

Assim, fica evidente a busca pelo cumprimento dos ideais aspirados por um Estado garantista, mesmo que ainda a passos lentos.

Sobre o autor
Vitor Guglinski

Advogado. Professor de Direito do Consumidor do curso de pós-graduação em Direito da Universidade Cândido Mendes (RJ). Professor do curso de pós-graduação em Direito do Consumidor na Era Digital do Meu Curso (SP). Professor do Curso de pós-graduação em Direito do Consumidor da Escola Superior da Advocacia da OAB. Especialista em Direito do Consumidor. Membro do Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor (Brasilcon). Ex-assessor jurídico do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais. Autor colaborador da obra Código de Defesa do Consumidor - Doutrina e Jurisprudência para Utilização Profissional (Juspodivn). Coautor da obra Temas Actuales de Derecho del Consumidor (Normas Jurídicas - Peru). Coautor da obra Dano Temporal: O Tempo como Valor Jurídico (Empório do Direito). Coautor da obra Direito do Consumidor Contemporâneo (D'Plácido). Coautor de obras voltadas à preparação para concursos públicos (Juspodivn). Colaborador de diversos periódicos jurídicos. Colunista da Rádio Justiça do Supremo Tribunal Federal. Palestrante. Currículo Lattes: http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4246450P6

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GUGLINSKI, Vitor. A cultura de consumo de massas:: um desafio ao novo modelo de Estado Democrático de Direito. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3721, 8 set. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/25185. Acesso em: 22 nov. 2024.

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