Recentemente, uma história de família ocupou manchetes no noticiário nacional. Tratou-se do “caso Sean Goldman”. No imbróglio, a mãe de Sean, que era brasileira e, em 2006, vivia casada nos EUA com o pai de Sean, resolveu voltar ao Brasil sem disso cientificar o marido. Ocorre que a mudança da mãe deu-se com o menor, que a acompanhou em uma viagem ao Brasil, supostamente de férias, autorizada pelo pai americano, que não suspeitava de qualquer intenção da mãe em não mais voltar à América.
Fato foi que a autorização de viagem dada pelo pai ao menor Sean, criança de então seis anos, foi concedida em bases que supunham a volta da mãe. A mãe, ao solicitar do pai e marido a autorização (necessária em razão de lei para viagem internacional do menor do Brasil sem ambos os pais acompanhando), a requereu somente para a viagem de férias escolares de Sean.
Depois de sua chegada ao Brasil, a mãe de Sean então informou a seu marido que não iria mais voltar. Ademais, que tampouco iria o filho.
Imediatamente, a mãe requereu e obteve a guarda provisória em ação proposta perante a Justiça Estadual carioca, em sede de decisão antecipatória de tutela.
O pai, por seu lado, entrou na Justiça norte-americana e lá venceu demanda para ter o filho devolvido ao seu convívio. Como a mãe não atendeu ao seu pleito e à decisão norte-americana, o pai ingressou com ação cautelar de busca do menor no Brasil, na Justiça Federal, alegando que a atitude da mãe violou o disposto na Convenção de Haia sobre os aspectos civis do seqüestro internacional de crianças, convenção esta ratificada e internalizada pelo Brasil[1].
O pedido, todavia, foi negado com base no artigo 13 da referida Convenção.
O pai, evidentemente, recorreu à instância superior, sendo que o TRF manteve a decisão primária, ao sustentar que o retorno da criança lhe causaria abalo emocional e psíquico, usando a letra do artigo 13 convencional:
“Artigo 13: Sem prejuízo das disposições contidas no Artigo anterior, a autoridade judicial ou administrativa do Estado requerido não é obrigada a ordenar o retorno da criança se a pessoa, instituição ou organismo que se oponha a seu retorno provar:
a) que a pessoa, instituição ou organismo que tinha a seu cuidado a pessoa da criança não exercia efetivamente o direito de guarda na época da transferência ou da retenção, ou que havia consentido ou concordado posteriormente com esta transferência ou retenção; ou
b) que existe um risco grave de a criança, no seu retorno, ficar sujeita a perigos de ordem física ou psíquica, ou, de qualquer outro modo, ficar numa situação intolerável.
A autoridade judicial ou administrativa pode também recusar-se a ordenar o retorno da criança se verificar que esta se opõe a ele e que a criança atingiu já idade e grau de maturidade tais que seja apropriado levar em consideração as suas opiniões sobre o assunto.”
Esta decisão foi mantida no STJ, que acatou as exceções ao retorno do menor previstas no artigo 13 do ato internacional.
Nesse ponto, um fato acrescentou dramaticidade à já conturbada história de família. A mãe de Sean faleceu em 2008.
Imediatamente, o padrasto de Sean, então novo marido da mãe, bacharel e advogado no Rio de Janeiro, junto com os avós maternos de Sean, entrou com ação de regulação de guarda na Justiça Estadual carioca. A guarda foi concedida em caráter liminar, inaudita altera pars.
O pai biológico entra, nesse momento, novamente com uma ação de busca do menor na Justiça Federal, mais uma vez com base na Convenção de Haia sobre os aspectos civis do seqüestro internacional.
Como a Convenção estipula que, nos casos onde é aplicável, o país signatário tem interesse na causa, devendo tomar as medidas internas judiciais cabíveis para fazer valer o instrumento, a União passa a secundar o pai norte-americano, como interessada, na demanda em curso na Justiça Federal. A União teria legitimidade, inclusive, para propor a demanda, sempre em favor da repatriação[2], e como já fez em outras ocasiões em casos similares.
Como em curso também a ação movida pelo padrasto na Justiça Estadual, o pai ingressa com Incidente de Conflito de competência perante o STJ.
Neste, agora estando a discussão no campo das competências, o Tribunal acaba por decidir que as duas ações devem ser reunidas em uma só, a correr na Justiça federal. O entendimento foi justificado no fato de ter a União interesse na causa, o que, de acordo com súmula do STJ, impõe ao caso a Justiça Federal.
Valendo agora o processo federal, o pai, finalmente, ganha liminarmente o direito a que a criança fosse enviada pela família que estava com a guarda para os EUA, para lá voltar a viver com o pai, respeitado o direito de visitas do padrasto e avós maternos e exigindo período de adaptação de um mês, antes que a criança pudesse dormir e ficar com o pai o dia inteiro, vivendo somente a partir daí normalmente sob a tutela paterna.
A família materna recorreu da decisão ao TRF, que acatou o pedido de que a criança permanecesse no Brasil até definitividade de decisão no processo.
Novo recurso paterno, que não vingou e a criança permaneceu com o padrasto e avós maternos até a decisão final do Tribunal. Todavia, em dezembro de 2009, o Tribunal corroborou o entendimento primevo, dado em Junho desse mesmo ano, passando o direito-dever da guarda finalmente para o pai.
O padrasto ainda tentou recorrer da decisão do TRF, juntamente com a avó materna. Intentaram habeas corpus preventivo, com a intenção de se fazer ouvir o testemunho de Sean, o que o Juiz a quo não permitiu. Supostamente Sean queria permanecer no Brasil. Houve decisão liminar do STF, dada pelo Ministro Marco Aurélio Mello como relator, para que o menino se mantivesse no Brasil até a decisão do habeas corpus. Irresignado, o pai biológico e a Advocacia-Geral da União entraram com dois Mandados de segurança contra a decisão liminar, para o Presidente do STF, ministro Gilmar Mendes, que acabou por entender que incabível nova demora na execução das decisões que determinavam a volta da criança, decidindo e pondo fim à questão, permitindo e determinando o embarque da criança de volta aos EUA.
A criança foi embarcada junto com o pai, num vôo fretado, e retornou enfim aos EUA.
O caso teve extrema repercussão social, foi parar nos jornais e TV, muito em razão da persistência do pai, que promoveu uma campanha nos meios de comunicação e internet, tendo construído um website com o título Bring Sean Home[3]. Sua luta incluiu a contratação de uma profissional de relações públicas que, em vista da repercussão que o caso teve, foi muito bem-sucedida.
A controvérsia adquiriu ares de discussão nacionalista, haja vista que houve inclusive pedidos de um senador norte-americano para que fossem aplicadas represálias comerciais contra o Brasil. A Secretária de Estado norte-americana, Hillary Clinton, chegou a interpelar o Brasil e o Presidente Barack Obama incluiu o assunto em suas discussões com o Presidente brasileiro à época, Luis Inácio Lula da Silva.
Entretanto, e apesar da repercussão especial obtida no caso em debate, muito em razão da campanha de RP levada a efeito pelo pai, casos como esse, cada qual com, claro, suas específicas nuances, são mais comuns do que se pode pensar.
A extrema mobilidade espacial que o mundo adquiriu após o advento da Globalização explica essa frequência. Uma das explicações é a internacionalização das relações. Os órgãos nacionais que organizam números relativos a esses eventos noticiaram, após a segunda metade da década de 90, um aumento exacerbado de litígios familiares internacionais.
De acordo com dados revelados pela AGU[4], entre 2003 e 2009, 54 crianças que viviam no Brasil afastadas de um de seus pais e longe do país onde originariamente viviam foram devolvidas. No caminho inverso, 22 crianças que estavam irregularmente no exterior tiveram sua situação regularizada no sentido da volta ao Brasil no mesmo período. Sessenta e três pedidos feitos pelo Brasil e 155 por países estrangeiros ao Brasil ainda estão sem solução, destes 28 pedidos pelos EUA.
No caso em tela, além da temática internacional, há adicional dificuldade como a questão do direito do padrasto brasileiro a ter guarda. A “nova família”, reação social contemporânea advinda da liberdade de usos e costumes e ampliação dos modelos de família aceitos, também mais internacionalizada, permite e, em contrapartida, exige mais entendimento e compreensão por parte do jurista. Assim:
“Cada Família circula num modo particular de emocionar-se, criando uma “cultura” familiar própria, com seus códigos, com sua sintaxe própria para comunicar-se e interpretar comunicações, com suas regras, ritos e jogos. Além disso, há o emocionar pessoal e o universo pessoal de significados.
Tais significados, no cotidiano, não são expressos. O que se tem são ações que são interpretadas num contexto de emoções entrelaçadas com o crivo dos códigos pessoais, familiares e culturais mais amplos. Tais emoções e interpretações geram ações que vão formando um enredo cuja trama compõe o universo do mundo familiar.” (CARVALHO, 2003, p.26).
As situações que divórcios e separações, ajuntamentos e re-ajuntamentos familiares podem causar são inúmeras para crianças envolvidas:
“Apenas a título de exemplo, pode-se especular sobre as implicações e significados das separações e re-casamentos e sobre as concepções de família e parentesco, surgem novos status familiares aos quais correspondem novos papéis e que ainda não dispõem de nominação em nossa classificação de parentesco. Existiria, em curso, algum processo de normatização social dessas novas relações familiares?Por exemplo, que tipos de relações são esperadas entre a criança e o segundo marido de sua mãe?E que relação se estabelece entra uma criança que reside com a mãe e a prole da segunda família de seu pai?Quem é parente, quem não é parente?
Essas e outras questões poderiam ser colocadas a qualquer relação familiar, inclusive entre as que se estabelecem entre os membros adultos das famílias: que relações são permitidas e quais são proibidas entre ex-noras e ex-sogras?E entre ex-esposos?Nessas situações o que é mais importante a filiação ou a aliança?
Aqui, a reflexão teórica demanda novas informações empíricas: é extremamente necessário revisitar os papeis sócias e o parentesco, incorporando, porem, nesta revisitação, a perspectiva das relações do gênero. ”(BILAC, 2003, p.35-36)
Voltando ao mote internacional, com o aumento de circulação espacial de pessoas, há uma importância reinaugurada ao Direito Internacional da Família, campo do Direito Internacional Civil e, mais genericamente, do Direito Internacional Privado.
O aumento dos conflitos dessa natureza gera uma preocupação nos Juristas da área. Como dito, é oficial o aumento do número de casos.
Na Europa, o assunto é muito sério, em vista do grande número de países e da circulação trasnfronteiriça ser mais elevada e comum. Por essa razão, o Continente formatou duas convenções sobre o tema, a de Haia, de 1980 e a do Conselho da Europa, do mesmo ano, além de vários tratados bilaterais.
Evidentemente, como dito, só alguns poucos casos chegam a angariar atenção pública como o “caso Sean”. Pode-se lembrar de outro, um pouco mais distante no tempo, mas já na era da “Globalização”, em meados da década de 90, o caso do menino Elián Gonzalez.
O menino, com cinco anos à época, participou de um naufrágio na travessia Cuba-EUA. A mãe e o padrasto, junto com outros familiares, tentavam aportar nos EUA, fugindo do país comunista. No entanto, tendo havido o naufrágio, só Elián e mais dois sobreviveram e foram recolhidos pela polícia imigracional norte-americana. Mãe e padrasto de Elián faleceram no incidente e o pai biológico estava em Cuba. A criança foi então entregue ao tio-avô paterno, que era domiciliado nos EUA, em caráter temporário.
Com o pai exigindo o retorno da criança e os familiares nos EUA exigindo a permanência, estava criada a novela jurídica.
O enfoque político dado ao caso foi estupendo, haja vista a tradicional querela entre os dois países. Manifestações nacionalistas, de ambos os lados, tomaram conta do debate. A possibilidade até de o regime castrista impor penas políticas ao menor foi aventada pela família nos EUA, o que deu base a um pedido de asilo naquele país, como estratégia jurídica.
Também nesse caso houve a invasão e cruzamento de esferas judiciais e administrativas, estaduais e federais, no embate que se travou, não tão demorado quanto o similar brasileiro, mas nem por isso menos complicado. Ao fim e ao cabo, depois de meio ano, Elián González pode retornar a Cuba com seu pai, que foi aos EUA para acompanhar o final dos trâmites.
No decisum norte-americano, dado pelo INS ou “Immigration and Naturalization Service”, um órgão administrativo do Governo Federal americano, a quem a Justiça por fim determinou ter a palavra final, houve a justificativa de apesar das discordâncias políticas entre os países, não se vislumbrava razão para denegar o retorno do menor ao pai que, antes da viagem da mãe, compartilhava com ela a custódia do menor.
O embate na mídia foi apaixonado, com diversas manifestações pró-família nos EUA e utilização política do episódio pelo Partido Republicano, à época na oposição federal.
Tanto no caso Sean como no Elián, a opinião pública foi levada a opinar. De um lado, é importante para a opinião pública participar e ser ouvida. De outro, em um enfoque jurídico e o da segurança jurídica, permitida pelo rule of Law, além dos problemas que a situação de per se já causa ao menor, o extremo sensacionalismo que se imputa à cobertura de tais situações é sobremodo prejudicial. Por muitas das vezes, os fatos são enfocados de maneira absolutamente fora do razoável, dando-se às disputas caracteres de nacionalismos e preferências que não se albergam na análise jurídica da questão.
Os parâmetros aos quais a questão se enquadra para a decisão devem ser jurídicos. Não obstante, por vezes o “jurídico” abre espaço para o sociológico e o psicológico, pois se utilizam de perícias psicológicas para a instrução, mas a “politicização”, a “nacionalização” ou a “sensacionalização” da matéria em nada ajudará a melhor decisão. Por certo que a discussão do tema permitirá à sociedade e seus representantes políticos argumentos para diferentes lados e possibilitará mesmo uma mudança de políticas, mas, uma vez ocorrida uma dada situação/embate, ela deve subsumir-se à ordem jurídica prévia e prevalente, certamente, mudando-se o que tiver que mudar a posteriori.
Enfim, analisemos os critérios que podem justificar as decisões jurídicas em casos como os de Sean Goldman.
A lei definirá os critérios a serem aplicados e, se a partir dessa eleição legal, houver possibilidade de análise subjetiva, os laudos psicossociais serão usados para embasar a decisão em que houver espaço para tal análise. É o que acontece, por exemplo, quando a lei elege o critério “o melhor interesse da criança” como balizador da decisão judicial. Nessa eleição legal, há espaço para a análise psicossocial que, no entanto, não deve permitir-se embasar-se por expressões de nacionalismos ou xenofobia.
A despeito de o olhar a questão com nacionalismo ser desaconselhável, já houve regimes legais que escolheram a nacionalidade como critério legal a amparar decisão sobre guarda. Mas nesse caso, não foi o nacionalismo uma escolha midiática, porém da lei. Tem-se notícias de eleições de critérios nada equânimes, como o fator “paramount interests of the father”, em estados americanos “machistas” anteriormente ao século XX.
Originalmente, antes do século XX, a solução das cortes americanas para os litígios entre pais sobre a posse e guarda dos filhos eram inspiradas na velha doutrina da common Law do “paramount interests of the father”- o interesse prevalecente do pai – que resultava na atribuição da posse e guarda praticamente sempre a este. Isto foi substituído pelo “best interests of the child” – o melhor interesse da criança – como visto quando tratamos da proteção da criança. E assim, nas primeiras seis décadas do século XX, a preferência das cortes americanas era pela mãe, baseadas na presunção de que a criança está melhor com esta, especialmente quando de idade tenra, e meninas em qualquer idade. Esta é a tradicional orientação das cortes de muitos países, inclusive dos tribunais brasileiros e tem origem no antigo direito judaico[5], que movimento feminista nos Estados Unidos, em prol de direitos iguais, acabou com a presunção favorável à mãe, estando agora ambos os pais em posição de igualdade, dependendo as decisões judiciais das peculiaridades de cada caso.(DOLINGER, Jacob. Direito Internacional Privado: A criança no Direito Internacional.Rio de Janeiro/São Paulo: Renovar: 2003, p.179).
Hoje em dia, obviamente, os parâmetros estão bem mais condizentes com as condições sócio-culturais vigentes.
Porém, ainda que se possa definir como justo o critério da lei interna brasileira na decisão da guarda, a saber, o “interesse do menor” uma das tarefas mais difíceis para o julgador é exatamente descobrir o que é melhor para a criança! Várias serão as dificuldades, como se sabe. E importante a análise psicossocial, dado o critério eleito pela lei interna brasileira. A questão se torna mais pungente ainda, e dramática, com infantes nos primeiros anos de vida, senão vejamos:
“A descoberta de que os anos inicias de vida são cruciais para o desenvolvimento emocional posterior focalizou a família como lócus potencialmente produtor de pessoas saudáveis, emocionalmente estáveis, felizes e equilibradas, ou como o núcleo gerador de inseguranças, desequilíbrios e toda sorte de desvios de comportamento. (CARVALHO, 2003, p.23)”
Em discussão em sede de Direito Internacional Privado, é de se atentar que os critérios para definição da custódia nem sempre serão os dados pela lei interna do país onde corre o processo (Lex fori). Quando as pendengas são internacionais, como as que ora discutimos, os critérios e situações são sempre mais difíceis e complexas do que situações inteiramente internas, desprovidas de elementos interjurisdicionais.
Então qual o regime legal aplicável quando o entrave é internacional?
FONTES E CONSEQUENTES CRITÉRIOS PARA DESENTRAVE
Assim, dentro da perspectiva do direito internacional, há a questão das fontes. Qual a fonte aplicável? Pois que não há somente a lei interna, mas sim, de fato, um conflito de leis, daí o Direito Internacional Privado ser denominado, nos Estados Unidos como Conflict of Laws.
O Operador do Direito, pelo DiPr, pode ser instado a usar, em um processo, lei alienígena ao invés de lei nacional. Essa determinação vê-se, em nosso ordenamento, na Lei de Introdução ao Código Civil e advém dos princípios mais antigos do Direito Internacional, pelos quais se tende a respeitar direito internacional aonde há interferências internacionais.
Leis de quais países devem ser aplicadas? E qual o papel das Convenções? Qual a efetividade interna das Convenções Internacionais? Todas essas são questões a serem enfrentadas pelo advogado ou jurista que se deparar com assuntos do porte aqui discutidos.
Uma diferente análise deve ser feita para cada “ordenamento aplicável”. Desta feita, a mesma questão, com iguais partes, fatos e atos pode ter diversos arcabouços legais, um para cada ordenamento jurídico nacional pelo qual se enfoque a questão. O interessante é que vários enfoques podem acabar sendo executáveis em outros países, ainda que não necessariamente obtendo a mesma conclusão que teria se no país da execução tivesse havido julgamento. Daí a harmonia (e o princípio da cortesia e da reciprocidade) do Direito Internacional (e a importância da estratégia).
Exemplifique-se: uma questão envolvendo uma criança com dupla nacionalidade, belga e brasileira, um pai belga e uma mãe brasileira pode ter enfoques distintos pelos ordenamentos jurídicos belga e brasileiro. Se se pretende ver eficácia no território brasileiro, por exemplo, o enfoque dado pelo ordenamento pátrio pode prevalecer, mas se houver, antes do trânsito em julgado de uma decisão pátria, a internalização de uma sentença estrangeira belga, mormente através do processo de homologação de sentença estrangeira, este entendimento alienígena aqui dentro prevalecerá. A estratégia jurídica em cada caso, portanto, deve ser muito bem analisada.
Numa verificação da fonte aplicável, o juiz, ao aplicar a lei em casos onde existentes fatores internacionais, deve sempre verificar a existência de Convenções Internacionais a respeito do tema. A análise da perspectiva convencional é deveras importante na aplicação do direito em questões internacionais. A Convenção internacional, se devidamente internalizada, tem, normalmente, força de lei dentro do país. Evidentemente, a questão da força das convenções deve ser vista sob a égide de cada ordenamento jurídico, de cada país onde se faça essa análise[6].
Além da cogência, portanto, das convenções, mister é analisar a questão da extensão dessa força, se o poder da norma convencional é equiparado ao da Constituição, ou da lei interna, ou de determinado tipo outro de norma (lei complementar, norma infra-legal, etc.).
Assim, é de se verificar: a existência de convenções a respeito do objeto da demanda, e a validade e eficácia dessas Convenções dentro do ordenamento aplicável.
Cabe lembrar que a Convenção Internacional será aplicada se os dois (ou mais) países envolvidos na querela em análise forem signatários. Desta feita, não se poderia aplicar uma convenção de Haia assinado somente pelo Brasil e Países Europeus a um caso onde há interseção de fatos e pessoas localizados no Brasil e África do Sul, por exemplo.
A Convenção mais aplicada no tema em estudo é a “Convenção sobre os Aspectos Civis do Seqüestro Internacional de Crianças”. É uma das Convenções mais bem-sucedidas de toda a série de Convenções de Haia e uma das duas únicas de Haia que o Brasil participa.
Essa convenção, que foi adotada por mais de 60 países, incluindo Brasil e Estados Unidos, foi internalizada aqui no ordenamento pátrio através do decreto legislativo nº. 79/99, tendo o governo brasileiro depositado o instrumento de adesão à Convenção em outubro de 1999 e o decreto executivo 343/00 que a fez vigorar no país mediante a publicação foi levado a efeito em 14/04/00.
O Brasil, em suas decisões, respeita o Direito Internacional convencional, atitude não compartilhada plenamente pelos Estados Unidos, diga-se de passagem.
No Brasil, de acordo com o entendimento emprestado à matéria pelo STF, em caso levado a sua análise e cuja interpretação prevalece até hoje, a norma convencional, uma vez internalizada, equipara-se a uma lei federal interna normal, entendimento atualmente esposado pelo STF, inserto no RE n. 80.004.
A Convenção supra-referida, como detalha em minúcias o que deve ser feito em casos de abdução internacional de crianças, será o instrumento que mais normatizará o litígio, lembrando sempre: se o outro país envolvido na questão for também signatário desse instrumento.
O restituir ao stato quo ante é o que busca a Convenção. Ela obriga ao país que recebeu a criança indevidamente retirada do país onde tinha o domicílio que tome as providências que sejam necessárias para o retorno da criança. Por saída indevida deve-se entender aquela mudança de domicílio sem decisão judicial ou administrativa autorizativa.
“Em princípio a convenção seguiu o adágio secular de spoliatus ante omnia restituatur, antes de mais nada há que se restituir o espoliado ao statu quo ante.[7] Assinale-se, contudo, que a devolução da criança não deve ser vista como princípio absoluto, eis que sofre exceção sempre que o interesse maior da criança ditar diversamente, pois, como se lê no preâmbulo da Convenção, ela se baseia na filosofia de defender os interesses das crianças dos efeitos maléficos de um deslocamento ou de uma retenção indevidas, o que admite a possibilidade de um deslocamento ou uma retenção que deva ser tratada diversamente, como nas hipóteses enumeradas no artigo 13 da Convenção, que dispõe que a autoridade do país solicitado não será obrigada a determinar a devolução da criança, se ficar comprovado que seu responsável no país solicitante não estava efetivamente exercendo a guarda à data da remoção, ou se houver grave risco que a devolução da criança possa expô-la a danos físicos ou psicológicos ou de qualquer maneira colocar a criança em situação intolerável[8], ou ainda se a criança se recusa a voltar, em tendo idade e maturidade para que sua vontade seja considerada.[9]
(DOLINGER, Jacob. Direito Internacional Privado: A criança no Direito Internacional.Rio de Janeiro/São Paulo: Renovar: 2003, p. 250).”
O problema reside nas exceções. Como a Convenção prevê que existem exceções ao retorno da criança de onde ela indevidamente saiu, o aplicador jurídico poderá transformar a Convenção, por sua análise da exceção, em um instrumento rígido ou não.
Sobre as exceções:
Um estudo realizado por um psicólogo clínico e forense a respeito da aplicação da Convenção de Haia sobre Sequestros pelos tribunais de diversos países, baseado em sua experiência como perito pelos tribunais americanos e também em pesquisa que realizou sobre decisões de tribunais de vários países, levou-o a criticar severamente o artigo 13 da convenção e principalmente a maneira como tem sido interpretada por muitas cortes[10]. Analisa o especialista as exceções dispostas no artigo 13.1 (b) da convenção, sendo a primeira quando há grave risco que a volta da criança expô-la-à a dano físico ou psicológico ou, de outra forma, colocá-la-á em situação intolerável, e a segunda, na hipótese de a criança se opor a ser enviada de volta, desde que tenha alcançado a idade e matridade em que seja apropriado tomar em consideração sua opinião, argumentando, preliminarmente, que estas objeções à devolução da criança entre os países-membros da Convenção sobre Sequestro, equivalem à objeção genérica de que a devolução não obedece ao princípio do “melhor interesse da criança” e aos “desejos” da criança, utilizada nos países que não são membros da Convenção das Nacções Unidas sobre os Direitos da Criança. (DOLINGER, Jacob. Direito Internacional Privado: A criança no Direito Internacional.Rio de Janeiro/São Paulo: Renovar: 2003, p. 256).
“Durante a reunião da Comissão Especial da Conferência de DIP da Haia, de 1993, Adayr Dyer, à época primeiro-secretário da Conferência, que acompanhou de perto a evolução da Convenção sobre Sequestro, bem como de outras convenções, a partir da fase preparatória e, depois, na sua implementação pelos tribunais, declarou que a aplicação do artigo 13 contraria o objetivo da Convenção de devolver a criança e, por isto, as exceções contidas neste dispositivo deveriam ser utilizadas cuidadosamente e certamente sem excessos.” (DOLINGER, Jacob. Direito Internacional Privado: A criança no Direito Internacional.Rio de Janeiro/São Paulo: Renovar: 2003, p. 258).”
Não alcançando as exceções, e se aplicável a Convenção, o que ocorrerá na maioria dos casos, já que muitos são os países signatários e o Brasil também, o menor deverá ser retornado ao país de habitual residência antes da abdução, sendo certo que o texto da Convenção é lei dentro do Brasil.
O Brasil, atualmente, é signatário de duas Convenções sobre o tema: uma da CIDIP[11] e a acima referida de Haia.
A Convenção da CIDIP é a da Restituição Internacional de Menores, internalizada no Brasil pelo Decreto Executivo 1212/94 e tem abrangência, em termos de números de países signatários, muito menor que a Convenção de Haia.
O uso da Convenção na resolução de um problema como esse é o primeiro passo. Cabe sempre ao advogado relembrar ao Juiz a vigência do instrumento internacional, pois que pode passar-lhe despercebido.
A não-vigência da Convenção pode dar-se por país envolvido na demanda não ser signatário dela ou porque onde se julga não haver vigência legal da Convenção. Como já anteriormente afirmado, o leitor legal deve estudar qual a força cogente de um acordo internacional dentro de seu ordenamento interno. No Brasil, por exemplo, e como afirmado, a força da Convenção equipara-se à de uma lei interna normal. Se houver, portanto, no direito pátrio, promulgação de norma equivalente, mas posterior, a internalização do acordo internacional é como se houvera sido revogada. A verificação de vigência dá-se como se fosse por um conflito normal de normas internas. Havendo “revogação” da vigência interna de um tratado internacional, internamente ele não se aplicará mais e, internacionalmente, o país deverá arcar com o ônus de tal posição, como sempre é a dinâmica do direito internacional.
Se, então, não houver vigência internamente à Convenção Internacional (ou não havendo Convenção aplicável), passa-se à análise da lei interna.
Há aí, outra problemática típica do Direito Internacional Privado, pois mesmo em se aplicando a lei interna, antes de aplicá-la, ou melhor, aplicando-a adjetivamente, deve-se analisar se o Direito Internacional Privado Brasileiro não determinará que, pela ocorrência de circunstâncias internacionais, não se deve aplicar substantivamente lei de outro país.
Ao aplicar a lei interna strictu sensu em casos onde presentes circunstâncias inter-jurisdicionais, o jurista deve sempre, primeiro, olhar para o seu Direito Internacional Privado. Esse direito internacional privado interno poderá remeter a questão, novamente, para além do direito interno – não para uma Convenção ou Tratado Internacional, mas para a lei interna de outro país.
O direito internacional privado sempre foi concebido, desde as origens, como solução a ser dado para a aplicação de leis ao estrangeiro ou às situações onde haveria interfaces internacionais. Seria justo, em todos os casos, a aplicação da lei interna puramente a uma situação com contatos em outra esfera legal: um casamento realizado no exterior; uma criança cujo domicílio era outro país; um contrato assinado num lugar e executado em outro?
Assim sendo, por medida de cortesia (ao estrangeiro, em alguns casos) e de justiça e racionalidade em outros, deu-se a concepção do Direito Internacional Privado, como limite ao uso irracional do direito interno pura e simplesmente.
Desta feita, não se deve crer que, em não havendo Convenção a tutelar o caso, será necessariamente o direito interno do país que será o utilizado. Ele o é, na medida que foi o seu DIPr (Direito Internacional privado) que está indicando a norma, ainda que estrangeira, a ser usada. Nesse enfoque, o Direito Internacional é, como o processual, direito instrumental. Ele apenas indica o direito substancial de qual país que deverá ser empregado pelo operador jurídico brasileiro, da mesma forma como o direito processual indica como o direito substancial é aplicado.
Assim, por princípio, o direito internacional privado é que faz aplique-se o direito estrangeiro dentro das fronteiras de um país. Grandes internacionalistas suprem a doutrina do DIPr com as justificativas lógicas e históricas fundamentais da cadeira. Entre eles, destacam-se Haroldo Valladão e Osíris Rocha, dentre muitos outros também notáveis doutrinadores.
No Brasil, o Direito Internacional Privado é consolidado na Lei de Introdução ao Código Civil[12] além de possuir conteúdo em outras fontes normativas espaçadas. Nesta lei, o direito de família Internacional está todo contido no supra-citado artigo 7º, que diz ser a lei do domicílio da pessoa a indicar seu direito de família aplicável. O Direito Internacional Privado Brasileiro, norma interna, determina a aplicação da lei estrangeira, se for o caso, do domicílio das partes.
A Lei de Introdução ao Código Civil[13] não prevê circunstância de conexão específica para os casos de abdução de menores, mas invoca a lei do domicílio para casos de direito de família.
Assim, utilizando o Direito Internacional Privado interno, poder-se-ia dizer que a lei material a se aplicar em um caso de abdução de crianças é o Direito do país onde morava habitualmente a família, antes da mudança.
Desta sorte, a lei de onde a criança está domiciliada é que deverá ser aplicada. Mas, pergunta-se, e quando o caso, levado a corte após que a criança abduzida já esteja a tempo suficiente no local escolhido pelo pai que o levou para que esse local possa ser caracterizado como o domicílio do menor? A dúvida não encontra solução pronta na lei e a interpretação variará. Entendemos deva se privilegiar o domicílio de origem, pois além de ser o domicílio no momento do ato que originou a causa de pedir, é exatamente o restabelecimento desse domicílio que se busca. Mas, obviamente, o juiz deverá sopesar a questão e dar ao direito a interpretação cabível na existência da lacuna legal.
Dessa maneira, decidida a lei aplicável, esta deverá ser interpretada pelo juiz que beberá nessa fonte para buscar a solução da demanda: se, como e quando deveria dar-se a restituição da criança abduzida.
Fosse a lei brasileira substancial a ser usada, o interesse da criança seria o principal critério para a determinação do retorno ou não, sem que isso configurasse somente uma possibilidade de exceção ao principio principal ( o do retorno), como vislumbrado pela Convenção de Haia.
Se não há nenhuma determinação prévia judicial sobre a custódia da criança e um pai foge com a criança sem avisar o outro, a lei substantiva brasileira pode ser pouca instrutiva para guiar a solução de um caso de seqüestro entre pais, mas pode ser usada como regra de aplicação de exceção (princípio do uso residual da lex fori). Ás vezes também questões envolvendo proteção à crianças podem ser lidas como de ordem pública, levando à aplicação da lei pátria e não da estrangeira. Falaremos da Ordem Pública mais abaixo.