Resumo: O presente artigo tem como objetivo discutir se é ou não legítima a recusa de tratamento médico por motivos religiosos, mais especificamente, a recusa a transfusão sanguínea por Testemunhas de Jeová, tendo como enfoque a colisão entre direitos fundamentais, neste caso, entre o direito à vida e o direito à liberdade. O debate é feito à luz da doutrina e do ordenamento jurídico pátrio e, objetiva ainda, encontrar uma solução para o problema, bem como apontar um método adequado de aplicação.
Palavras-chave: vida, liberdade, dignidade, testemunhas de Jeová, transfusão sanguínea
INTRODUÇÃO
O conflito de direitos fundamentais é fenômeno frequente no ordenamento pátrio, precisamente devido à sua natureza principiológica. Dentre estes conflitos, conjuntura que vem levantando relevantes e calorosos debates é a questão da legitimidade ou não da recusa de transfusão de sangue pelas Testemunhas de Jeová, congregação religiosa que proíbe severamente tal prática.
Este é um debate atual e de extrema relevância para a sociedade em razão necessidade de obtenção de resposta para as situações que vêm surgindo nesse sentido. Deve-se procurar resolvê-lo de forma a se observar a plena eficácia do principio da dignidade humana, princípio norteador do Estado Democrático de Direito; buscando-se proteger e resguardar todas as partes envolvidas no dilema: o paciente Testemunha de Jeová, o médico e o Estado.
O tema geral da pesquisa é o conflito de direitos fundamentais, mais precisamente a contenda envolvendo o direito à vida versus o direito à liberdade. O presente trabalho tem como objetivo solucionar tal impasse através de um estudo minucioso dos diversos aspectos do debate, utilizando pontualmente a aplicação do conceito de ponderação, desenvolvido por Robert ALEXY, para solução de conflitos entre direitos fundamentais. Para tanto, procurar-se-á uma resposta para a questão da hierarquia dos direitos fundamentais, à luz do princípio da unidade da Constituição; doravante será abordada a questão da possibilidade de relativização de um direito em face do outro no caso concreto. Ademais, através da análise do paradigma vigente na atividade médica, buscar-se-á demonstrar o entendimento da comunidade médica e se este está em consonância com o ordenamento do jurídico.
1. TESTEMUNHAS DE JEOVÁ
O movimento religioso denominado Testemunhas de Jeová surgiu por volta do ano 1870, no Estado da Pensilvânia, Estados Unidos. Seu precursor foi Charles Taze Russell, que insatisfeito com o comportamento dos cristãos, organizou um grupo de estudos que tinha como objetivo realizar uma legítima interpretação da Bíblia. A partir de seus estudos, Russel começou a publicar a revista “Sentinela”, através da qual divulgava suas ideias pelo mundo.
Atualmente a religião conta com quase oito milhões de adeptos divididos em quase cento e vinte mil congregações, presentes em 239 países.[1] Possuem número expressivo também no Brasil, contando com quase 1 milhão e 400 mil seguidores.[2]
São conhecidos pelo empenho na pregação de porta em porta, pela abstenção na participação política e pela recusa a receber tratamentos médicos que envolvam a transfusão de sangue ou de algum de seus componentes primários. As Testemunhas de Jeová fundamentam sua recusa em receber esse tipo de tratamento em passagens bíblicas como Gênesis 9:4; Levítico 17:10; Deuteronômio 12:23; Atos 15:28, 29.
As Testemunhas de Jeová valorizam seus preceitos religiosos acima de tudo; são como normas absolutas que orientam todos os aspectos da vida. Seus seguidores possuem um apego tão forte à doutrina que preferem abrir mão de valores como a vida a transgredir a religião.
É importante ressalvar que há um órgão que governa a religião supracitada, denominado Torre de Vigia, que, por meio de publicações, estabelece os preceitos e o modelo de comportamento que as testemunhas de Jeová devem adotar tanto dentro da congregação como na esfera privada, incluindo sua relação com a família. Tão essencial é o cumprimento dos preceitos que a religião possui uma política ativa de desassociação de membros que não cumprem os preceitos por eles propagados. É a sanção religiosa máxima aplicada aqueles que cometem transgressões graves e não demonstram arrependimento.
Ser desassociado pela Torre de Vigia é um processo mais complexo e mais severo do que os que se verificam em outras religiões, uma vez que transcende a esfera religiosa, gerando consequências que abarcam todos os aspectos da vida do desassociado. A Torre determina, por exemplo, que as testemunhas de Jeová evitem ao máximo o contato com pessoas que não pertencem à religião. Dessa forma, o desassociado, além de ser expulso da congregação, se vê excluído de seu ciclo social, perdendo convívio não só com amigos, mas até mesmo com a família. Há, inclusive, comunidades na internet nas quais desassociados buscam ajuda mútua para se reintegrar à sociedade.
2. ESTADO LAICO E LIBERDADE RELIGIOSA
Afirmar que o Brasil é um Estado laico importa dizer que o Estado não adota religião oficial, é neutro. Todavia, tal afirmação não significa que o Brasil é indiferente à religião. O Brasil é, indiscutivelmente, um país no qual a religião tem relevante força e significativo papel, fato esse que é facilmente constatado ao longo da história do país, tendo origem na colonização portuguesa e perdurando até os dias atuais.
O ordenamento jurídico pátrio reflete a relevância que a religião possui no país, como pode ser percebido ao ler o preâmbulo da Constituição Federal de 1988, onde se afirma que a carta magna está sendo promulgada sob a proteção de Deus, ou ao ler o art. 5º, VII, também da Constituição Federal de 1988, que garante a prestação de assistência religiosa nas entidades civis e militares de internação coletiva. Nesse sentido, leciona Paulo Gustavo Gonet Branco:
“O Estado brasileiro não é confessional, mas tampouco é ateu, como se deduz do preâmbulo da Constituição, que invoca a proteção de Deus. Por isso, admite, ainda que sob a forma de disciplina de matrícula facultativa, o ensino religioso em escolas públicas de ensino fundamental (CF, art. 210, § 1.º), permitindo, assim, o ensino da doutrina de uma dada religião para os alunos interessados. Admite, igualmente, que o casamento religioso produza efeitos civis, na forma do disposto em lei (CF, art. 226, §§ 1.º e 2.º)”[3]
Portanto, a despeito do que possa parecer inicialmente ao se afirmar que o Brasil é um Estado laico, o Estado brasileiro não é contrário a nenhuma religião, pelo contrário, preza pela convivência harmônica e respeitosa de todas elas, garantindo o direito à liberdade religiosa, o que fica evidenciado no art. 5º, VI, da CF/88, que garante a inviolabilidade da liberdade de crença e assegura o livre exercício dos cultos religiosos e proteção aos locais de culto e suas liturgias. O direito à liberdade religiosa é previsto no Brasil desde a primeira constituição da República, promulgada em 24 de fevereiro de 1891, sendo mantido em todas as constituições seguintes. Em âmbito mundial, o referido direito já havia sido previsto mais de cem anos antes, na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, e desde então, está sempre presente em documentos de mesma natureza.
Entende-se por liberdade religiosa o direito de escolher e exercer livremente sua crença, bem como viver de acordo com os preceitos que esta crença defende. Não cabe ao Estado julgar os méritos de determinados preceitos religiosos, cabe a ele tão somente garantir o direito à liberdade religiosa, possibilitando que cada um viva de acordo com suas crenças, intervindo somente quando determinado comportamento causar dano à ordem pública ou ao direito de outrem. Portanto, impedir que alguém tome determinada decisão, efetue determinada escolha ou tenha determinado comportamento por estar baseado em preceitos de alguma crença, sem que essa decisão, essa escolha ou esse comportamento afete a ordem pública ou direito de terceiro, é violar o direito à liberdade de crença. Mais ainda, é violar a liberdade individual como um todo.
3. DIREITO À VIDA
A Constituição Federal, no seu artigo quinto, assegura a todos os brasileiros e aos estrangeiros residentes no país o direito à vida. Assim, segundo os princípios da aplicabilidade imediata das normas constitucionais e da vinculação dos Poderes Públicos aos direitos fundamentais, cabe ao Estado garantir a todos o pleno gozo desse direito.
Assegurar o direito à vida significa atender a sua dupla acepção; a primeira se refere ao direito de continuar vivendo, ou seja, de preservar o bem jurídico que é a vida; a segunda acepção diz respeito a garantir ao cidadão o direito de uma vida digna, ou seja, uma vida que abarque os requisitos necessários para que seja respeitado o principio da dignidade da pessoa humana.
Da primeira acepção pode-se ainda retirar uma dimensão negativa, um direito de defesa que impede que os poderes públicos atentem contra a vida do cidadão; e uma dimensão positiva, a pretensão de exigir do Estado meios efetivos para proteger e garantir a manutenção da vida, como por exemplo, o policiamento urbano, o sistema penitenciário, o direito penal.
A segunda acepção garante ao cidadão o direito de uma vida digna. Conceituar dignidade é uma tarefa árdua, devido à abstração deste principio, mas é inequívoco dizer que é um valor intrínseco ao homem; nas palavras de Kant, “só o homem não existe em função de outro e por isso pode levantar a pretensão de ser respeitado como algo que tem sentido em si mesmo”.
Essa segunda acepção vincula o direito à vida à dignidade da pessoa humana, princípio norteador e fundamento do Estado Democrático de Direito, trazido no art. 1º da CF/88. Como nos ensina Alexandre de Morais,
“A dignidade da pessoa humana: concede unidade aos direitos e garantias fundamentais, sendo inerente às personalidades humanas. Esse fundamento afasta a ideia de predomínio das concepções transpessoalistas de Estado e Nação, em detrimento da liberdade individual. A dignidade é um valor espiritual e moral inerente à pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida [...], constituindo-se um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar, de modo que, somente excepcionalmente, possam ser feitas limitações ao exercício dos direitos fundamentais, mas sempre sem menosprezar a necessária estima que merecem todas as pessoas enquanto seres humanos”;[4]
ou seja, a dignidade, valor inerente ao homem, deve servir de baliza para a limitação dos direitos fundamentais, de modo que todo o ordenamento jurídico esteja em conformidade com este princípio.
O direito à vida possui, inegavelmente, um caráter especial, por ser ele o pressuposto para a existência e exercício dos demais direitos fundamentais garantidos na Carta Constitucional. Todavia, apesar do seu importante papel no ordenamento, ele não possui valor superior aos outros direitos fundamentais, como por exemplo, o direito à liberdade, pois esses direitos não se encontram organizados hierarquicamente entre si, apenas em relação aos demais direitos do ordenamento.
4. ANÁLISE TEÓRICA: DIREITO À VIDA X DIREITO À LIBERDADE
Pontos fundamentais para que se solucione o debate objeto deste artigo no sentido de legitimar ou invalidar a recusa a tratamento médico que conflite com crença religiosa são: a existência ou não de relação hierárquica entre os direitos fundamentais e a relativização do caráter absoluto do direito à vida; a aplicação do conceito de ponderação desenvolvido por Robert Alexy para solução do conflitos entre direitos fundamentais; a liberdade como meio para que se alcance o pleno exercício do principio da dignidade humana; a mudança de paradigma no exercício da atividade médica, do paternalismo à autonomia da vontade.
4.1. Ausência de hierarquia entre direitos fundamentais e a relativização do caráter absoluto do direito à vida
É posição dominante tanto na doutrina como na jurisprudência pátria a ausência de hierarquia entre os direitos fundamentais. Nesse sentido esclarece em artigo publicado em revista, Gilmar Ferreira Mendes:
“Embora não se possa negar que a unidade da Constituição não repugna a identificação de normas de diferentes pesos em uma determinada ordem constitucional, é certo que a fixação de uma rigorosa hierarquia entre diferentes direitos individuais acabaria por desnaturá-los por completo, desfigurando também a Constituição enquanto complexo normativo unitário e harmônico.”[5]
Embora as os direitos fundamentais possuam evidente superioridade hierárquica em relação ao ordenamento jurídico infraconstitucional, não há que se falar em hierarquia entre eles mesmos, havendo, nesse caso, uma relação paritária.
Outro ponto importante neste debate é a relativização do caráter absoluto que muitas vezes é atribuído ao direito à vida. Nesse âmbito, convém ressaltar que é fundamento da ausência de hierarquia a referida relativização, uma vez que, se houvesse algum direito absoluto, haveria então hierarquia, pois este prevaleceria sempre frente aos demais. A relativização do caráter absoluto do direito à vida pode ser extraída do próprio ordenamento jurídico, como se observa, por exemplo, no art. 5º, XLVII, a) da CF/88, que determina:
“Art. XLVII – Não haverá penas:
a)De morte, salvo em caso de guerra declarada, nos termos do art. 84, XIX”;
também podemos observar a referida relativização no art. 23 do Código Penal, que, sobre as excludentes de icilitude, versa: “Não há crime quando o agente pratica o fato:
I – em estado de necessidade
II – Em legítima defesa
III – Em estrito cumprimento de dever legal ou no exercício regular de direito”[6].
É importante frisar que, não sendo prática comum, para que essa relativização seja verificada, deve haver uma fundamentação legítima, genuína, sempre observando os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, já consolidados na doutrina.
Diante da multiplicidade de possibilidades fáticas é frequente a ocorrência de colisão entre direitos fundamentais. Nessas situações, determinado direito prevalecerá sobre outro, não devido a posições hierárquicas distintas, mas sim a uma necessidade de relativização na aplicação a partir da análise do caso concreto. Corroborando essa ideia, aduz Alexandre de Moraes:
“Os direitos e garantias fundamentais consagrados pela Constituição Federal, portanto, não são ilimitados, uma vez que encontram seus limites nos demais direitos igualmente consagrados pela Carta Magna (Princípio da relatividade ou convivência das liberdades públicas).”[7] (p.33)
4.2. A aplicação da ponderação trabalhada por Robert Alexy
Por advirem de princípios, que são aplicados não de forma absoluta, mas sim buscando-se a melhor forma de aplicação, é possível verificar-se que em algumas situações há conflito entre direitos fundamentais. Parece ser o modo mais adequado para solucionar essas situações, o método da ponderação, desenvolvido por Robert Alexy.
A ponderação consiste em pesar, no caso concreto, os princípios conflitantes e, assim, estabelecer a prevalência de um sobre outro. Sobre este conceito, reflete o próprio Alexy:
“As colisões entre princípios devem ser solucionadas de forma completamente diversa. Se dois princípios colidem – o que ocorre, por exemplo, quando algo é proibido de acordo com um princípio e, de acordo com o outro, permitido, um dos princípios terá que ceder. Isso não significa, contudo, nem que o princípio sedente deva ser declarado inválido, nem que nele deverá ser introduzida uma cláusula de exceção. Na verdade, o que ocorre é que um dos princípios tem precedência em face do outro sobre determinadas condições. Sob outras condições a questão da precedência pode ser resolvida de forma oposta. Isso é o que se quer dizer quando se afirma, que nos casos concretos, os princípios tem pesos diferentes e que os princípios com maior peso tem precedência.”[8]
Os direitos fundamentais não possuem apenas caráter de regras, mas sim de princípios, desse modo, seus objetos são direitos extremamente abstratos de grande significado. Esses direitos não se esgotam em proteger o cidadão do Estado, mas, além disso, são mandatos de otimização que irradiam sobre todo o ordenamento. São, portando, direitos ubiquitários. Exatamente por advirem de princípios, esses direitos estão propensos a colidir.
A ponderação de direitos fundamentais é técnica amplamente difundida no aparato judicial do país, como pode-se perceber na seguinte jurisprudência do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul:
DIREITO À SAÚDE E ENERGIA ELÉTRICA. PESSOA PORTADORA DE DOENÇA PULMONAR OBSTRUTIVA CRÔNICA - DPOC. NECESSIDADE DA UTILIZAÇÃO DE APARELHO CONCENTRADOR DE OXIGÊNIO. PEDIDO DE INSTALAÇÃO GRATUITA DE OUTRO MEDIDOR DE ENERGIA ELÉTRICA E DE ISENÇÃO DE TARIFAS QUANTO AO RESPECTIVO CONSUMO. PONDERAÇÃO DE PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS. Ponderados os princípios que asseguram a proteção ao direito à saúde (artigos 6.º, 23, II e 196, CF), dever do Estado lato sensu considerado, e o equilíbrio econômico-financeiro dos contratos (artigo 37, XXI, CF), deve preponderar, no caso concreto, o no caso concreto, o primeiro em detrimento do segundo, por se tratar de direito social fundamental que confere efetividade ao valor da dignidade da pessoa humana.[9]
É apreciável, contudo, que a ponderação é a técnica racional que conduz a melhor resposta para o caso concreto. Situação que também se verifica na hipótese objeto do presente artigo, na qual conflitam o direito à vida e o direito à liberdade religiosa, meio imprescindível para que se atinja o pleno gozo do principio da dignidade da pessoa humana, como será exposto no tópico seguinte.
4.3 .Relação entre liberdade e dignidade da pessoa humana
Outra questão fundamental para que se possa reputar a recusa de tratamento por motivos religiosos é a relação que há entre a liberdade e o princípio da dignidade humana.
A constituição consagra a dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos da República, como se verifica no art 1º, III da CF/88. Ademais, é ponto amplamente consagrado na doutrina que a dignidade da pessoa humana é o principio do qual emanam os demais direitos fundamentais, indicando-se, assim, certa primazia daquele frente a esses. Dessa forma, conclui-se que assim como o direito à vida, o princípio da dignidade humana também possui um caráter especial, pois é ponto de origem dos direitos fundamentais e deve nortear todos eles. Nesse sentido, nos ensina o docente e promotor de justiça Edilsom Farias:
“O princípio fundamental da dignidade da pessoa humana cumpre um relevante papel na arquitetura constitucional: ele constitui a fonte jurico-positiva dos direitos fundamentais. Aquele principio é o valor que dá unidade e coerência ao conjunto dos direitos fundamentais. Dessarte, o extenso rol de direitos e garantias fundamentais consagrados pelo título II da Constituição Federal de 1988 traduz uma especificação e densificação do princípio fundamental da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III). Em suma, os direitos fundamentais são uma primeira e importante concretização desse último princípio[...]”[10]
Cabe, então, apontar que há uma íntima relação entre o exercício das liberdades e o pleno gozo da dignidade da pessoa humana. Nesse sentido, parece ser o exercício das liberdades um dos meios imprescindíveis para que se possa alcançar uma vida digna, sendo de extrema importância a ressalva de que trata-se, neste caso, do exercício legítimo das liberdades individuais, de modo que ele não viole a ordem pública ou direito de outrem. As pessoas devem poder escolher o modo como querem viver, devem poder tomar suas decisões baseadas em suas ideologias, seus valores, e tolher o direito que elas possuem de o fazer, pode resultar em uma vida que carece de dignidade em suas concepções, violando assim, um dos fundamentos da República e princípio que desfruta de certa primazia em nosso texto constitucional.
Dessa forma, não cabe ao Estado cercear a liberdade do indivíduo de escolher o modo como viver, de estabelecer seus valores e de definir o que é uma vida digna, sob o risco de violar o princípio da dignidade humana.
4.4 Mudança de paradigma: do paternalismo à autonomia da vontade
Possui ainda relevante importância para a discussão em xeque a análise de que houve, nas últimas décadas, uma mudança no paradigma que orienta a ética médica, passando do paternalismo à primazia da autonomia da vontade.
Durante a maior parte do século XX, era o paternalismo o paradigma dominante, consistindo ele na orientação de que o médico, baseado em seus próprios critérios e em seu conhecimento técnico, tomasse as decisões que julgasse apropriadas para o paciente, independendo do consentimento deste. Tal paradigma, portanto, legitimava a realização de transfusão sanguínea ainda que perante a recusa do paciente. É neste sentido, que regula a Resolução do Conselho Federal de Medicina, de nº 1021/80, que autoriza a realização de transfusão sanguínea nos termos supracitados. Exemplo claro desta constatação, é o item 2 da referida resolução:
“2. O paciente se encontra em iminente perigo de vida e a transfusão de sangue é a terapêutica indispensável para salvá-lo.
Em tais condições, não deverá o médico deixar de praticá-la apesar da oposição do paciente ou de seus responsáveis em permiti-la.”[11]
Entretanto, é fundamental a percepção de que o paternalismo foi superado, sendo suplantado pelo paradigma da primazia da autonomia da vontade do paciente. É perceptível tal superação no novo Código de Ética Médica, cuja publicação data do ano de 2010. O novo paradigma confere superioridade à liberdade de escolha do paciente em detrimento da imposição da vontade do médico. É perceptível a expressão do novo paradigma, por exemplo, no Capítulo I, item XXI, do novo Código de Ética Médica:
“XXI - No processo de tomada de decisões profissionais, de acordo com seus ditames de consciência e as previsões legais, o médico aceitará as escolhas de seus pacientes, relativas aos procedimentos diagnósticos e terapêuticos por eles expressos, desde que adequadas ao caso e cientificamente reconhecidas.”[12]
Apesar da mudança de paradigma ocorrida, é relevante ressalvar que o médico não se encontra irrestritamente sujeito à vontade do paciente, podendo exercer sua própria liberdade, no sentido de se recusar a realizar procedimento que contraste com suas convicções técnicas ou se recusar a continuar o acompanhamento de paciente que se recuse à receber transfusão sanguínea.
Conclui-se que a publicação da Resolução 1021/80, que data de 22 de outubro de 1980, está ainda fundada no já superado paradigma do paternalismo, não estando em consonância com o novo Código de Ética Médica, que consagra a mudança de paradigma observada na prática da atividade médica. Dessa forma, deve-se adaptar as orientações dadas pela resolução ao novo paradigma.