5. LEGITIMAÇÃO DA RECUSA DE TRANSFUSÃO SANGUÍNEA POR TESTEMUNHAS DE JEOVÁ SOB O PRISMA DAS TEORIAS APRESENTADAS
A ausência de hierarquia entre os direitos fundamentais impossibilita que qualquer um deles tenha caráter absoluto, tornando possível que diante de conflitos em casos concretos haja a relativização de um direito frente a outro. Na hipótese objeto deste artigo há o claro conflito entre o direito à vida e o direito à liberdade que, como vimos, é meio essencial para que se alcance o pleno gozo da dignidade da pessoa humana. Pode-se, portanto, inferir que, de forma ampla, há o conflito entre direito à vida e o princípio da dignidade da pessoa humana.
Ao se realizar a ponderação desenvolvida por Alexy na hipótese em questão, sob o prisma dos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, verifica-se que o direito à liberdade deve prevalecer frente ao direito à vida. Nessa hipótese é legítima a relativização do direito à vida e a consequente preponderância do direito à liberdade com o objetivo de se alcançar o pleno exercício da dignidade humana, pois o indivíduo deve ter o poder de escolher o modo como deseja viver, estabelecer o seu conceito de vida digna. Caso o Estado cerceei esta liberdade individual, ele estará violando o próprio direito à vida em uma de suas duas acepções, a que assegura ao indivíduo o direito a uma vida digna.
Cabe ressaltar que a recusa a receber transfusão de sangue por parte das Testemunhas de Jeová, ainda que em perigo de vida, se deve não a uma desvalorização da vida, mas sim ao relevante e supremo valor que atribuem aos preceitos de sua religião. Tais preceitos possuem, para eles, tamanha força e importância, que os fiéis preferem abdicar de sua vida a viver uma vida que, para eles, não teria dignidade.
Além de todos os argumentos já expostos, é importante repisar que a mudança de paradigma na atividade médica, sendo superado o paternalismo e passando a ser a autonomia da vontade do paciente o paradigma em vigor, é mais um ponto que legitima a recusa a transfusão sanguínea por Testemunhas de Jeová, uma vez que o novo paradigma, cuja expressão é perceptível no novo Código de Ética Médica, publicado em 2010, confere preponderância à liberdade de escolha do paciente em detrimento da imposição da vontade do médico, ainda que embasado em seu conhecimento técnico.
Há ainda, também fundamentando a legitimidade da recusa a transfusão sanguínea por Testemunhas de Jeová, o art. 5º, II da lei máxima do ordenamento jurídico brasileiro, a Constituição Federal de 1988, que aduz: “Ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”.
Dessa forma, resta clara e fundamentada a legitimação da recusa de transfusão sanguínea por Testemunhas de Jeová, ainda que em perigo de vida.
6. CONSENTIMENTO GENUÍNO: PROTEÇÃO PARA O MÉDICO, ESTADO E PRÓPRIO PACIENTE
Como foi anteriormente exposto, há documentos com certo caráter normativo que, ainda que administrativamente, vedam a possibilidade de recusa de tratamento quando há perigo de vida, como, por exemplo, a Resolução do Conselho Federal de Medicina de nº 1.021/80 e o Código de Ética Médica. Mesmo que a conclusão que parece se extrair da Constituição Federal de 1988 (hierarquicamente superior àqueles documentos da classe médica) é que deve ser garantido o direito à recusa de tratamento, ainda que em caso de perigo de vida, se faz necessário garantir proteção ao médico que venha a agir em consonância com a Constituição, para que o mesmo não venha a sofrer sanções, sejam elas de caráter administrativo, ou penal, em caso de tentativa de enquadrar tal abstenção do médico como omissão de socorro. Nesse sentido, parece ser de extrema relevância e elevada precisão o conceito de consentimento genuíno, abordado por Luís Roberto Barroso, em parecer elaborado sobre a problemática abordada neste artigo. Sobre o referido conceito, explana Luís Roberto Barroso:
“O sujeito do consentimento é o titular do direito fundamental em questão, que deverá manifestar de maneira válida e inequívoca a sua vontade. Para que ela seja válida, deverá ele ser civilmente capaz e estar em condições adequadas de discernimento para expressá-la. Portanto, além da capacidade, o titular do direito deverá estar apto para manifestar sua vontade, o que exclui as pessoas em estados psíquicos alterados, seja por uma situação traumática, por adição a substâncias entorpecentes ou por estarem sob efeito de medicamentos que impeçam ou dificultem de forma significativa a cognição. Para que se repute o consentimento como inequívoco, ele deverá ser, ainda, personalíssimo, expresso e atual. Personalíssimo exclui a recusa feita mediante representação, somente se admitindo que o próprio interessado rejeite a adoção do procedimento. A decisão, ademais, haverá de ser expressa, não se devendo presumir a recusa de tratamento médico. É assim na Itália e na Espanha, onde tem de ser escrita. Ainda que essa exigência possa não ser absoluta, ela certamente é recomendável, inclusive para resguardo do médico e do Estado. Por fim, a vontade deve ser atual, manifestada imediatamente antes do procedimento, e revogável.”[13]
Ainda sobre o consentimento genuíno, Luís Roberto Barroso acrescenta que ele deve ser, ainda, livre e informado. Livre no sentido de não ser fruto de influências não cabíveis à situação, pressões ou ameaças, e informada no sentido de ter o paciente completas informações sobre a situação, informações essas que devem ser transmitidas de modo que ele possa compreendê-las, e assim, possa tomar uma decisão ciente de todos os fatos e possíveis consequências. Uma vez que todas essas condições tenham se realizado, se terá um consentimento genuíno por parte do paciente, e então, a recusa de tratamento é válida. Se, por ventura, qualquer uma dessas condições não se realizar, o consentimento não será verdadeiramente genuíno, e, portanto, não será válida a recusa de tratamento.
O supracitado conceito, de consentimento genuíno, se apresenta como uma exigência de extrema importância no sentido de proteger o médico e o Estado, conclusão essa a que também chega o autor do referido conceito, como fora exposto. Mas pode-se ir além. A exigência do consentimento genuíno é um meio de proteção ao próprio paciente, para que a sua decisão seja livre de qualquer vício. Isso é perceptível, por exemplo, quando se discute sobre a possibilidade de uma plaqueta, constantemente em posse das testemunhas de Jeová, que informa que em hipótese alguma essas pessoas aceitarão a realização de transfusão sanguínea, assinada por elas mesmas e mais duas testemunhas, ser suficiente para que o médico se abstenha de realizar a transfusão, ainda que necessária e ainda que em iminente risco de vida. Todavia, a plaqueta não cumpre o critério da atualidade. Ao assinar aquele “documento”, atestando sua recusa à transfusão sanguínea, ainda que necessária, a pessoa não estava de fato vivendo a situação, mas sim, em um momento de calma, apenas supondo que tal situação pudesse vir a acontecer. Ora, nada seria mais plausível do que, em concreta situação de perigo de vida, a pessoa modificasse sua escolha, tendo em vista todas as emoções do momento, além de que no momento concreto se teria a certeza da situação e das consequências, o que não havia quando o “documento” foi assinado.
Portanto, a exigência do consentimento genuíno é de fundamental importância para que se garanta proteção não somente ao médico e ao Estado, mas também ao próprio paciente, evitando que este seja implicado por uma decisão que contenha quaisquer vícios.
CONCLUSÃO
É um debate profundo que se tem feito no âmbito da colisão entre direitos fundamentais, colisão essa que, nesse caso, ocorre entre o direito à vida e o direito à liberdade, se é legítima ou não a recusa de tratamentos médicos por motivos religiosos, bem como, de forma mais específica, se é legítima a recusa de transfusão sanguínea por Testemunhas de Jeová, ainda que em perigo de vida. Conclui-se, após a exposição de argumentos fundamentados na doutrina e no ordenamento jurídico pátrio, que sim, é legítima a recusa de transfusão sanguínea por Testemunhas de Jeová.
Em suma, tal legitimidade é fundamentada por uma série de argumentos. Inicialmente, cumpre-se ressaltar que não há hierarquia entre direitos fundamentais. Desta forma, embora o direito à vida tenha caráter especial, ele não é superior ao direito à liberdade, pois estão todos os direitos em paridade hierárquica.
Como, então, resolver os casos em que direitos fundamentais colidem? A ponderação se apresenta como meio mais adequado, pesando qual dos direitos deve prevalecer no caso concreto. Deve haver, então, a relativização de um dos direitos, e a preponderância de outro. Na hipótese objeto deste artigo não é diferente. Uma vez que refuta-se o caráter absoluto do direito à vida, pois tal caráter implicaria em uma hierarquia entre direitos fundamentais, deve-se relativizar este caráter frente o direito à liberdade, que na situação em análise, deve prevalecer.
Outro ponto relevante ao debate é a relação existente entre o direito à liberdade e o princípio da dignidade da pessoa humana. O exercício da liberdade é meio imprescindível para que se alcance o pleno gozo da dignidade humana. Portanto, não cabe ao Estado tolher a liberdade do indivíduo sem fundamentação legítima, pois tal intervenção implicaria em violar também sua dignidade. Se viola-se a dignidade, viola-se, por conseguinte, o próprio direito à vida, em uma de suas duas acepções, a saber, a que considera o direito à vida como o direito a uma vida digna.
Ademais, há, ainda no sentido de legitimar a recusa, a mudança de paradigma na atividade médica. O paradigma antes vigente, o paternalismo, deu lugar ao paradigma de primazia da autonomia da vontade do paciente. Diferentemente do paternalismo, que defende a imposição da vontade do médico, pois este está baseado em seu conhecimento técnico e busca proteger o paciente, o novo paradigma, que confere primazia a autonomia da vontade do paciente, defende que o este deve ter o poder de escolher como deseja proceder, se aceita ou recusa determinado procedimento, corroborando, dessa forma, a legitimidade da recusa de transfusão sanguínea por Testemunhas de Jeová.
É necessário, entretanto, que se garanta certa proteção ao médico que se abstenha de realizar a transfusão e aja em consonância com a Constituição Federal de 1988, para que ele não venha a sofrer sanções de qualquer tipo, sejam elas administrativas ou até mesmo penais. Nesse sentido, é de extrema relevância e elevada precisão o conceito de consentimento genuíno apresentado por Luís Roberto Barroso, que consiste em uma decisão válida e inequívoca (personalíssima, atual e expressa), bem como livre e informada. Dessa forma, se confere proteção ao médico e possibilita que o mesmo aja em consonância com os fundamentos expostos neste artigo. Este conceito protege não só o médico, mas também o Estado, e o próprio paciente.
Verifica-se, portanto, que a recusa a transfusão sanguínea por Testemunhas de Jeová, ainda que em risco de morte, é legítima e está fundamentada pela doutrina e pelo ordenamento jurídico pátrio. Deve-se, entretanto, à luz do conceito do consentimento genuíno, garantir proteção ao médico, ao Estado e ao próprio paciente. É o que se conclui.
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Notas
[1] Disponível em http://www.jw.org/pt/testemunhas-de-jeova/, acesso em 10/07/2013.
[2] Disponível em <ftp://ftp.ibge.gov.br/Censos/Censo_Demografico_2010/Caracteristicas_Gerais_Religiao_Deficiencia/caracteristicas_religiao_deficiencia.pdf>, acesso em 10/07/2013.
[3] MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 4ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p.461.
[4] MORAES, Alexandre. Direito constitucional. 23. ed. São Paulo: Atlas, 2008, p.21.
[5] MENDES, Gilmar Ferreira. Colisão de direitos fundamentais na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Repertório de Jurisprudência IOB. vol. 1 Tributário, constitucional e administrativo. 1ª quinzena de março de 2003. n. 5. São Paulo: IOB, p. 178-185.
[6] Constituição Federal da República, disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/ConstituicaoCompilado.htm>, acesso em 11/07/2013.
[7] MORAES, Alexandre. Direito constitucional. 23. ed. São Paulo: Atlas, 2008, p.33.
[8] ALEXY, Robert apud ROTHENBURG, Walter Claudius. Princípios constitucionais. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2003. P.93 e 94
[9] TJ-RS - AC: 70041724790 RS , Relator: Armínio José Abreu Lima da Rosa, Data de Julgamento: 06/04/2011, Vigésima Primeira Câmara Cível, Data de Publicação: Diário da Justiça do dia 10/05/2011
[10] FARIAS, Edilsom Pereira de. Colisão de direitos fundamentais: a honra, a intimidade, a vida privada e a imagem versus a liberdade de expressão e informação. 3ª ed., Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2008, p.63.
[11] Resolução 1021/80 do Conselho Federal de Medicina, disponível em <http://www.saude.caop.mp.pr.gov.br/modules/conteudo/conteudo.php?conteudo=307>, acesso em 14/07/2013
[12] Código de Ética do Conselho Federal de Medicina, disponível no site <http://www.portalmedico.org.br/novocodigo/integra_1.asp>, acesso em 11/07/2013.
[13] Parecer de Luís Roberto Barroso à Procuradoria do Estado do Rio de Janeiro, disponível em <http://www.conjur.com.br/dl/testemunhas-jeova-sangue.pdf >, acesso em 14/07/2013, p. 31 e p.32.
ABSTRACT: This article intends to discuss if the refuse to medical’s treatments based on religious reasons is or isn’t legitimate, more specifically, the refuse of blood transfusion by Jehovah´s Witnesses, having as a point of view the collision between fundamental rights, in this case, between the right to life and the right to freedom. The debate is based on the doctrine and the brazilian legal order, and also intends to find a solution to the problem and point a appropriate method of application.
Keywords: life, freedom, dignity, Jehovah’s witnesses, blood transfusion