3 LITISCONSÓRCIO NAS AÇÕES DE ALIMENTOS
Tendo em vista a proposição inicial, o presente capítulo tem como objetivo examinar o instituto processual do litisconsórcio, em especial no seu tipo facultativo, passivo, ulterior e simples, a fim de possibilitar a análise de suas semelhanças com o fenômeno processual criado pelo legislador na edição do artigo 1.698 do Código Civil de 2002.
Para tanto, buscar-se-á esclarecer o conceito e as classificações do litisconsórcio, bem como expor os argumentos utilizados por essa corrente doutrinária e as críticas feitas por outros doutrinadores que entendem se tratar de outras hipóteses de intervenção processual.
3.1 Litisconsórcio: conceito e classificação
Segundo Araken de Assis, o litisconsórcio constitui a assunção, no mesmo processo, da função de parte, por mais de uma pessoa, independentemente do emprego de uma das modalidades de intervenção de terceiros para assumir tal condição[17]. É, nas palavras de José Frederico Marques, o resultado da cumulação subjetiva de litígios, por atuarem vários autores contra um réu, ou um autor contra vários réus, ou vários autores contra vários réus[18][19].
Quanto ao número de autores ou réus pode ser classificado em: ativo, passivo e misto; quanto ao momento da propositura da ação em: inicial e ulterior; quanto ao número de decisões em simples e unitário; e, quanto ao grau de liberdade que a lei confira ao autor de formá-lo, ou não, classifica-se em: facultativo e necessário. Conceituaremos então, brevemente, cada uma destas classificações.
O litisconsórcio é ativo quando há mais de um autor; passivo, quando há mais de um réu; e misto se há mais de um autor e mais de um réu. Thereza Alvim observa, com pertinência, que, em princípio, a possibilidade de formação do litisconsórcio depende do autor. Assim, seja no polo ativo, seja no polo passivo, cabe ao autor a formação do litisconsórcio, conforme se pode depreender do trecho abaixo:
Não foi concedida ao réu a possibilidade de formação do litisconsórcio. Acidentalmente, isso lhe vem sendo possível, quando do uso dos institutos da denunciação da lide ou do chamamento ao processo ou, então, em se tratando de litisconsórcio necessário[20].
Quanto ao momento da propositura da ação, o litisconsórcio denomina-se inicial se é formado desde o momento da propositura da ação, ou ulterior, se formado em momento posterior. De três maneiras pode surgir o litisconsórcio ulterior: em razão de uma intervenção de terceiro (chamamento ao processo ou denunciação da lide, por exemplo); pela sucessão processual (o ingresso dos herdeiros no lugar da parte falecida); pela conexão (se impuser a reunião das causas para processamento simultâneo[21]).
Quando é possível ao juiz proferir decisões distintas em relação aos vários litisconsortes, trata-se de litisconsórcio simples; se o resultado deve ser igual para todos, trata-se de litisconsórcio unitário.
Conforme o grau de liberdade que a lei defira ao autor de formá-lo, ou não, o litisconsórcio é classificado em facultativo ou necessário. Enquanto o litisconsórcio facultativo pode ou não ser formado, a depender da vontade da parte, o litisconsórcio necessário é formado por força de lei, tendo em vista as características específicas da lide.
3.2 O artigo 1.698 do Código Civil e o litisconsórcio passivo, facultativo, ulterior e simples
Conforme já visto anteriormente, o art. 1.698 do novo código dispõe que, sendo várias as pessoas obrigadas a prestar alimentos, todas devem concorrer na proporção dos respectivos recursos, e, intentada ação contra uma delas, poderão as demais ser chamadas a integrar a lide[22].Dentre as diversas correntes formuladas na busca de tentar definir a que instituto processual existente se refere esse “chamamento” dos demais parentes obrigados a prestar alimentos, nos casos em que for intentada apenas contra um dos obrigados, uma delas, defendida, entre outros, por Carlos Roberto Gonçalves[23], Robson Renault Godinho[24], Nelson Finotti Silva[25], Pedro Lino Carvalho Jr[26], Fredie Didier Jr[27]e Yussef Said Cahali[28], descartou de plano qualquer possibilidade de se tratar de hipótese de denunciação da lide e chamamento ao processo – espécies de intervenção de terceiro que autorizam o réu a formar o litisconsórcio ulterior –, uma vez que esses dois institutos trazem ínsita a ideia de direito de regresso e obrigação solidária, respectivamente, o que não estaria em consonância com a natureza da obrigação alimentícia, divisível e não solidária.
Entendem que esse chamamento se trata da formação de litisconsórcio passivo e facultativo com fundamento no artigo 46, inciso I, do Código de Processo Civil, já que se está diante da comunhão de obrigações, em que várias são as pessoas obrigadas pela mesma dívida, ainda que não exista solidariedade entre elas. E que seria, ainda, ulterior, em virtude de se formar após o ajuizamento da demanda, e simples, porque não é necessário que a decisão seja proferida de maneira uniforme para todos os litigantes. Isso significa dizer que cada um será condenado a arcar com o montante que suportar, afastando-se eventual identidade ou distribuição igualitária de quotas entre os potenciais devedores[29].
Fredie Didier, em artigo sobre o assunto, afirma que o autor poderá, desde logo, ingressar com a demanda contra todas aquelas pessoas julgadas serem devedoras da obrigação alimentar; porém, se em graus iguais, o juiz definirá quanto cada um deles deve e, caso em graus distintos, se estará diante de uma litisconsórcio facultativo eventual, em que existirá uma análise sucessiva e subsidiária por parte do magistrado com relação à capacidade que cada devedor tem de suportar a obrigação alimentar a ele direcionada, ocasionado o que se chama de litisconsórcio facultativo eventual[30], ou seja, o parente de grau mais remoto poderia exigir, antes de ser obrigado a pagar algo a título de alimentos, que ficasse provado o esgotamento das forças patrimoniais do parente de grau mais próximo. Seria uma espécie de benefício de ordem, em razão da obrigação do parente de grau mais remoto ser subsidiária em relação ao de grau mais próximo[31]. Nesse sentido são pertinentes as lições de Nelson Finotti:
É indiscutível que o credor poderá desde logo propor a ação em face de todos os devedores ou em relação a alguns, mas, sempre a seu único critério, portanto, trata-se de litisconsórcio facultativo simples e a sentença fixará a parte de cada um. […]Temos que o autor e somente ele poderá formar o litisconsórcio facultativo passivo ulterior até porque a instituição do litisconsórcio facultativo cabe ao autor e não ao réu, salvo, se for hipótese de chamamento ao processo e o limite será o saneamento do processo, diante do princípio da estabilização da instância subjetiva e objetiva, nos termos do artigo 264, do Código de Processo Civil[32].
Já Yussef Cahali embora reconheça que o instituto foi criado para beneficiar o credor dos alimentos entende que tal litisconsórcio pode ser formado não só pelo autor, como também pelo réu. Isso permitiria ao réu originário a faculdade de chamar as demais pessoas obrigadas a integrar a lide, respondendo, cada qual dos chamados, na proporção dos respectivos recursos, de forma que o juiz não precisaria de modo uniforme para todas as partes:
Finalmente, não nos parece despropositado aplicar-se analogicamente a parte final do art. 1698, para permitir que, intentada a ação de alimentos contra um parente de grau imediato, este chame a integrar a lide o parente que deve alimentos em primeiro lugar; verificando-se no próprio processo se este teria condições de suportar totalmente o encargo, e restando ao demandado originário apenas concorrer para a complementação do encargo[33].
Na mesma linha de entendimento, assim se pronunciou Paulo Lôbo:
O Código Civil, apesar da proclamada tentativa de evitar incursionar em matérias processuais, estabelece que, intentada ação contra qualquer das pessoas obrigadas a prestar alimentos, 'poderão as demais ser chamadas a integrar a lide' (art. 1.698). Esse chamamento é direito do réu, que o requererá, de modo a permitir que o juiz defina quotas que todos os obrigados potenciais deverão assumir, de acordo os respectivos recursos[34].
Fredie Didier expõe essa questão da iniciativa de forma interessante, questiona que, caso se permitisse que o réu convocasse terceiro não demandado pela parte ativa, acabaria ele agindo como um inexplicável substituto processual do autor, pois estaria aditando a petição inicial, mesmo contra a vontade da parte ativa, já que nada impede esta de não ter interesse, por questões diversas, de demandar contra determinado parente, de forma que seria um absurdo obrigá-la a assim proceder, contra a sua vontade[35].
Dessa forma, explica que a alegação da existência de outro devedor que deve alimentos em primeiro lugar, conquanto possível, parece, entretanto, simples argumento de defesa, que, certamente, será levado em consideração pelo magistrado no momento de fixar o valor devido pelo demandado, pois, para o referido autor, não tem o réu, no particular, a faculdade de, por simples provocação sua, trazer terceiros ao processo sem a anuência do autor da ação de alimentos. Ao afirmar a existência de outro devedor, o demandado não o insere na relação processual, já que sua arguição de defesa não constitui nova demanda contra o terceiro, com quem inclusive não mantém qualquer relação jurídica.
Assim, de acordo com tal entendimento, cabe ao autor a opção pelo litisconsórcio passivo, no entanto, não instaurando o litisconsórcio, se sujeitaria às consequências de sua omissão, correndo à sua conta e risco ver a pensão alimentícia concedida proporcionalmente à responsabilidade do réu.
Já o réu, sendo demandado como o único responsável pelos alimentos de determinado parente, poderia agir de duas formas: A primeira delas é se sujeitar a pagar a totalidade dos alimentos ou a maior parte deles, sempre observadas as suas possibilidades financeiras. Nesse caso, não tem o direito de reclamar a diferença aos outros parentes, porque não pagou ou não vai pagar dívida destes, mas sim a sua própria. Abstendo-se de alegar e pedir a redução da pensão que lhe foi exigida, ele implicitamente reconheceu ser o único devedor dela e, como tal, foi condenado. A segunda conduta que pode ter é defender-se alegando não ser o único devedor e que outros existem pelos quais tal encargo deve ser distribuído. Assim, ficará ele aliviado no montante desse encargo.
Juntamente com outros doutrinadores, se supõe não ser essa visão mais acertada sobre a disposição do art. 1.698 do CC, como afirma Cássio Bueno, ao falar sobre esta nova possibilidade de intervenção se não fosse pela viabilidade da intervenção dos coobrigados a ação de alimentos tenderia a ser inócua ou, quando menos, menos útil para o alimentando justamente porque, mesmo se admitindo o dever de pagar alimentos, a condenação não pode, por definição, superar as reais possibilidades do alimentante[36].
Várias são as críticas quanto ao entendimento acima exposto. Até quem concorda com tal entendimento admite a sua impossibilidade de ocorrência em virtude da incompatibilidade desse tipo de litisconsórcio (passivo, facultativo, ulterior, simples e por provocação do autor)com ordenamento processual civil brasileiro.
Conforme explicam os próprios defensores dessa corrente através do chamamento consubstanciado no artigo em 1.698 do CC, o autor traria ao processo, em razão de fato superveniente à manifestação do réu, outro devedor comum, formulando um novo pedido em face desse novo réu, ensejando, assim, a cumulação subjetiva e objetiva ulterior, ou seja, a hipótese de intervenção litisconsorcial ulterior provocada[37]. Ocorre que o atual ordenamento processual brasileiro não permite essa intervenção, uma vez que, de acordo com o artigo 264 do CPC se impõe a estabilização subjetiva do processo após a citação[38].
Não obstante entender que o art. 1.698 do CC traz hipótese de chamamento ao processo, Cássio Bueno, também visualizou a impossibilidade de se incluir outros devedores após a manifestação do réu uma vez que já formado o título executivo, o que iria contra as regras de estabilização do processo previstas no art. 264 do Código de Processo Civil. Segue, então, transcrito o ensinamento do referido professor:
Não há como entender, com efeito, que o ingresso, na relação processual dos demais obrigados a pagar alimentos, se desse em estado adiantado do procedimento, reabrindo-se a instrução para se saber em que medida o interveniente pode e deve pagar alimentos. Isto seria admitir retrocesso, noção avessa à de processo. Basta imaginar, a respeito, que somente em execução é que ficasse clara e inconteste a insuficiência dos recursos do réu, condenado a pagar alimentos. Como incluir outros devedores se já formado o título executivo?[...] O que me parece ser argumento de peso às conclusões do parágrafo anterior é que esta “intervenção” dos alimentantes deveria respeitar o art. 264 do Código de Processo Civil, devendo o juiz, a todo instante, indeferi-la ao verificar que ela traz mais prejuízos do que benefícios para o autor. O que me parece de relevo para afastar este entendimento, no entanto, é que o Código de Processo Civil já admite uma modalidade de formação de litisconsórcio (passivo, ulterior e facultativo) pelo réu e esta forma é o chamamento ao processo. Entre criar uma “nova” modalidade de intervenção litisconsorcial — e a do pólo ativo, não obstante a autoridade de Cândido Rangel Dinamarco, já é tão discutida em doutrina — por que não dar o maior rendimento possível à modalidade tradicional do nosso direito, conhecida de todos nós?[39]
Conforme anuncia Fredie Didier, trata-se, portanto, de ‘inovação alvissareira’, porém carente de regulação processual, uma vez que não se enquadra em nenhuma das hipóteses de litisconsórcios possíveis pelo ordenamento processual civil brasileiro, tampouco nas hipóteses de intervenção de terceiros permitidas pelo Código de Processo Civil de 1973. Seria, portanto, uma nova espécie de intervenção, sem precedentes em nosso ordenamento, com aplicação muito restrita e específica, identificando-se muito com o instituto jurídico do litisconsórcio[40].
3.3 O artigo 1.698 do Código Civil e a intervenção iussu iudicis
Não prevista expressamente pelo CPC de 1973, a intervenção iussu iudicisé o ingresso de terceiro, por ordem do juiz, em processo pendente, com base em uma interpretação extensiva do parágrafo único do artigo 47 do CPC, que prevê expressamente que “o juiz ordenará ao autor que promova a citação de todos os litisconsortes necessários, dentro do prazo que assinar, sob pena de declarar extinto o processo”, nos casos em que, por disposição de lei ou pela natureza da relação jurídica, o juiz tiver de decidir a lide de modo uniforme para todas as partes[41].
Dessa forma, ocorre não só nos casos de litisconsórcio necessário no polo passivo[42], como também nas hipóteses de litisconsórcio unitário facultativo, para integrar aquele que poderia ter sido listisconsórcio unitário, mas não foi, eis que o terceiro será, inevitavelmente, atingido pela coisa julgada, em virtude da unitariedade da relação material[43].
Apesar de não se ter encontrado embasamento doutrinário defendendo a posição de que o ‘chamamento’ a que se refere o art. 1.698 do CC seja hipótese de intervenção iussu iudicis, considera-se oportuno afastar, sistematicamente, essa possibilidade. Ante o exposto, não se tratando de litisconsórcio necessário, quem dirá, de intervenção iussu iudicis, pois, como bem ensinaCássio Bueno,a necessidade da integração dos codevedores no processo que discute alimentos não decorre imediatamente da lei, e nem de unitariedade da relação material, uma vez que o dispositivo civil apenas permite a citação de terceiro para integrar a relação processual como forma de otimizar a prestação final do alimentando[44].
Se cada codevedor é responsável por sua cota parte, não será ele atingido de maneira reflexa pela sentença proferida em relação processual anterior, ou seja, se proposta uma nova ação contra outro devedor comum, em virtude da insuficiência da pensão fixada em ação anteriror, o quantum a ser fixado levará em consideração as atuais necessidades do alimentando e possibilidades desse outro réu.
Observa-se que tal situação se mostra totalmente incompatível com o objetivo da intervençãoiussi iudicis, que traz ao processo terceiros, que, certamente serão atingidos por essa eficácia reflexa da sentença, para garantir-lhe o exercício do direito de defesa preventiva e, evitar ao réu que se submeta a um processo cujo resultado possa ser impugnado por terceiro.