4. Variações em torno do pedido genérico
Freqüente, na prática forense, é a circunstância de o autor, na petição inicial, apontar valores ou apresentar estimativas de indenização para compensação do dano moral, à guisa de exemplo ou sugestão para o juízo, formulando, ao final, pedido genérico. Assim, v. g., quando o autor menciona ter havido, em outro processo, no qual se julgou caso semelhante, decisão fixadora de indenização em determinado valor; ou quando o autor pondera que a jurisprudência tem fixado a reparação em montantes variáveis entre certos limites; ou, ainda, quando o autor sugere algum parâmetro, que levaria a uma cifra específica.
Em tais situações, os valores e as estimativas assim deduzidos deverão ser tomados como elementos argumentativos, não vinculadores da pretensão, pois o que importa é que, ao final, a petição inicial exprima, inequivocamente, fórmula genérica de condenação. Aplicável, no caso, a regra do art. 293 do CPC: "Os pedidos são interpretados restritivamente".
O STJ tem, reiteradamente, entendido que os valores meramente estimativos apresentados na petição inicial, à guisa de sugestão, não desconfiguram a natureza genérica do pedido: "A estimativa na petição inicial, de valor do dano não confere certeza ao pedido."[44] No mesmo sentido: "Nas ações de indenização por ato ilícito, o valor estipulado na inicial, como estimativa da indenização pleiteada, necessariamente, não constitui certeza do quantum a ressarcir, vez que a obrigação do réu, causador do dano, é de valor abstrato, que depende, quase sempre, de estimativas e de arbitramento judicial. Montante da indenização há de ser apurado mediante liquidação de sentença. Precedentes do STJ."[45]
Por essa razão, os valores sugeridos ou estimados não interferem na sucumbência: "Sendo meramente estimativo o valor da indenização pleiteada na peça vestibular, não há falar em sucumbência parcial se a condenação fixada na sentença tiver sido inferior àquele montante. Precedentes."[46]
Outra situação freqüente é a de a petição inicial indicar valor mínimo de indenização. O autor continua a entregar ao prudente arbítrio do juízo a fixação da indenização pelo dano moral, mas aponta um montante que constituiria, a seu critério, o mínimo a ser fixado. Pretende o autor obter indenização igual ou superior à indicada na inicial, nunca inferior.
Também em tal situação está presente a generalidade do pedido, mas a partir de determinado valor. No que concerne, todavia, à quantia mínima postulada pelo autor, o pedido é certo e deve ser tratado como tal. De modo que se o juízo fixar valor inferior ao mínimo, haverá sucumbência parcial do autor. O valor da causa, por sua vez, deve tomar por base esse valor mínimo, como já decidiu o STJ: "O valor da causa deve corresponder ao conteúdo econômico da pretensão do autor, que, pedindo um valor mínimo como indenização por danos morais, não pode atribuir à causa valor menor."[47]
Outra situação encontrada com considerável freqüência é a de petições iniciais nas quais o autor articula pedido de condenação do réu em perdas e danos, ou, simplesmente, ao pagamento dos danos suportados pelo autor, sem fazer uso das expressões dano moral, imaterial ou equivalente. O pedido, assim formulado, dependendo da narrativa constante da petição inicial, deve ser interpretado como abrangente não apenas dos danos materiais, mas também do dano moral.
A expressão perdas e danos, a despeito de ter sido cunhada para fazer alusão aos prejuízos materiais sofridos, acolhe, sem dificuldades, o dano moral. O aumento do número de demandas nas quais se pleiteia indenização por dano moral vulgarizou a expressão, alargando seu sentido primitivo, estabelecido pelo art. 1.059 do Código Civil. Não se trata, todavia, de dar interpretação extensiva ao pedido, o que seria vedado pelo regra do art. 293 do CPC, mas de empregar a expressão em sua acepção literal, vulgar, e não em seu sentido técnico e restrito, utilizado pelo art. 1.059, até porque, se a preferência na interpretação de um texto legal é pelo emprego do sentido técnico, na interpretação de outro tipo de texto, como o de uma petição inicial, o sentido vulgar predomina.
Não se queira argumentar que a petição inicial, por emanar de um profissional de direito[48], deve ter os seus vocábulos e as suas expressões interpretados sempre tecnicamente. Um tal argumento estaria em desacordo com a realidade, pois, desafortunadamente, é cada vez mais freqüente entre os profissionais do direito em geral a má aplicação do vernáculo nos escritos forenses.
O Superior Tribunal de Justiça nesse sentido já decidiu: "Tem-se como englobado no pedido a condenação por dano moral quando a petição inicial, ainda que deficientemente, requer a indenização de todos os danos sofridos com o acidente."[49]
Com igual amplitude deve ser interpretado o pedido genérico de indenização por prejuízos decorrentes de um determinado evento, ou, simplesmente, o pedido de indenização sem alusão ao adjetivo moral. O fundamental, em qualquer caso, como já mencionado, é que, da narrativa constante da petição inicial, ou melhor, da causa de pedir a prestação jurisdicional, se extraia a referência a algum fato caracterizador de dano moral.
Já decidiu o STJ que: "A indenização aos pais, por morte de filho menor, deve ser a mais ampla possível e alcançar todos os danos sofridos. Como se vê, a indenização, no caso, podia ser fixada desde logo, nos autos da ação de conhecimento, não se podendo falar em petição inepta ou em decisão além ou aquém do pedido. A inicial, embora sucinta, contém todos os requisitos legais e o pedido é bastante claro no sentido de condenar a recorrente na indenização decorrente dos prejuízos causados aos pais, pela morte do filho. É claro que desta indenização fazem parte os danos materiais e morais."[50]
5. Pedido genérico e direito de apelar para majoração do valor da indenização
Partindo-se da premissa de que é possível a formulação de pedido genérico de reparação por dano moral, cabe examinar questão conexa, qual seja, a da possibilidade de o autor apelar ou, de modo geral, recorrer da decisão que julga procedente a demanda, com a finalidade de obter a majoração do quantum indenizatório.
Julgados isolados já manifestaram o entendimento de que ao autor faltaria interesse em recorrer da sentença, por ausência de sucumbência. Traga-se à colação aresto da 4ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, relatado pelo insigne Desembargador Luiz Eduardo Rabello: "Se o autor requereu indenização a ser fixada pelo Juízo de primeiro grau, e o Juízo fixa o valor que acredita adequado, dando procedência integral ao pedido, não pode o autor apelar pleiteando valor superior, diante da inocorrência de sucumbência sua. Improvimento de ambos os recursos."[51]
O equívoco desse entendimento, francamente minoritário na jurisprudência, decorre da má interpretação do pedido genérico de reparação por dano moral. Observe-se que interpretar restritivamente o pedido, como o determina o art. 293 do CPC, não significa interpretá-lo literalmente, sem atenção para a sua finalidade.
O pedido genérico de indenização não pode ser interpretado como pedido de qualquer valor, visto que não é a expressão do desejo de uma condenação qualquer, sem nenhuma expectativa no tocante ao valor a ser fixado.
Uma tal interpretação joga com as palavras, sem considerar as peculiaridades do dano moral em confronto com o dano material. Ignora-se a razão pela qual deve ser admitido o pedido genérico de indenização por dano moral, que é, como aqui sustentado, a absoluta subjetividade do valor do dano – e, conseqüentemente, de sua estimativa judicial –, a qual, entre outras coisas, torna impossível ao autor forrar-se ao risco de uma improcedência parcial sem subestimar o valor do dano, já que apenas o acaso poderá determinar a equivalência entre a arbitrária estimativa do autor e a arbitrária estimativa do juiz.
Bem focalizada a questão, fica claro que o pedido genérico de indenização por dano moral não significa que o autor queira qualquer indenização que o juízo venha a fixar. Caso a indenização estabelecida não atenda às aspirações ou às expectativas íntimas (embora imprecisas) do autor, poderá ele apelar para buscar a majoração da verba.
Em se tratando de pedido genérico, a sucumbência não se mede pela discordância entre a sentença e o pedido em seu sentido meramente textual ou literal. Se assim fosse, não poderia o autor igualmente apelar da sentença que julga procedente o pedido genérico de reparação por danos materiais para buscar a elevação da indenização fixada, o que seria um disparate. No caso dos danos materiais, o autor apela porque supostamente não concorda com a apreciação que a sentença fez em relação às provas produzidas. No caso do dano moral, o autor apela porque não concorda com a valoração ou estimativa do juízo.
6. Apelação com pedido genérico
Caberia, também, indagar se o autor do pedido genérico, inconformado com o valor da indenização, pode apelar de forma igualmente genérica, ou, em outras palavras, se pode pleitear a majoração da indenização sem indicar o valor pretendido.
Uma primeira reflexão pode levar ao entendimento de que, se o autor não se conforma com o valor fixado na sentença, é porque imaginou valor superior, que deveria, portanto, ser indicado como medida de seu inconformismo. Embora admissível o pedido genérico em um primeiro momento, quando da propositura da ação, à falta de critérios objetivos ou de parâmetros seguros para a fixação do valor da indenização por dano moral, não caberia um apelo também genérico, por já dispor o autor do valor estabelecido na sentença como baliza. Reputado insatisfatório esse valor, deveria o autor quantificar a sua insatisfação.
Um tal raciocínio, no entanto, desconsidera que, mutatis mutandis, as mesmas razões que justificam o pedido genérico de indenização fundamentam a apelação em termos genéricos. A absoluta imprevisibilidade da avaliação do órgão julgador continua presente, agora em grau de recurso – e com a mesma conseqüência de tornar impossível ao autor forrar-se ao risco de uma sucumbência parcial, o que, como se viu, o constrangeria, ilegitimamente, a subestimar o valor do dano em seu recurso, já que apenas o acaso poderá determinar a equivalência entre a arbitrária estimativa do autor recorrente e a arbitrária estimativa do órgão recursal. Entre a estimativa feita pelo órgão a quo e a estimativa a ser feita pelo órgão ad quem não há limites objetivos.
Além disso, a primeira estimativa pode ter sido tão baixa que nem de longe possa ser tomada como ponto de referência para o autor recorrente.
7. Pedido certo de indenização por dano moral. O entendimento da Professora Ada Pellegrini Grinover
Em parecer já mencionado no presente trabalho, a Professora Ada Pellegrini Grinover, depois de tecer considerações sobre a possibilidade de pedido genérico para reparação do dano moral, expõe o entendimento de que qualquer quantia referente ao dano moral indicada na petição inicial vem marcada pelo signo da provisoriedade, precisamente porque competirá ao juiz a quantificação do dano, depois de colhidos todos os elementos de convicção.[52]
Citando o ensino de Yussef Said Cahali e transcrevendo alguns arestos, a ilustre jurista assim exprime seu pensamento: "Ora, se é certo, nos casos de dano moral, que a atribuição de um valor na petição inicial, quando muito e por mera argumentação, é facultativa e provisória, tem-se que a sentença, embora esteja, por regra, adstrita ao pedido (CPC, arts. 128 e 460), poderá inclusive condenar o requerido por valor superior ao indicado na peça vestibular. E isso não representa qualquer ofensa ao contraditório, desde que a sentença leve em conta precisamente elementos contidos nos autos e submetidos ao debate judicial, conforme, inclusive, autoriza o Art. 131 do CPC vigente."[53]
O sempre respeitável entendimento da Professora não parece, com todas as vênias, ser o melhor, considerado nosso sistema processual em vigor.
O artigo 128 do CPC impõe ao juiz decidir a lide "nos limites em que foi proposta", enquanto que o art. 460 do CPC veda ao juiz a prolação de sentença ultra petita ("condenar o réu em quantidade superior" à postulada). Consagram os referidos dispositivos o princípio da adstrição (ou da congruência, ou da correlação), que só pode ser afastado pela própria lei. Assim é que a lei prevê, como exceções ao princípio da adstrição, as prestações periódicas (art. 290 do CPC), os juros legais (art. 293 do CPC), as despesas processuais e os honorários advocatícios (art. 20, caput, do CPC), a multa pelo descumprimento das obrigações de fazer ou de não fazer (artigos 461, § 4º, do CPC; 84, § 4º, do Código de Defesa do Consumidor). Em todos esses casos, e em vários outros, é a própria lei que excepciona a aplicação do princípio.
A não inclusão do pedido de indenização por dano moral entre as exceções expressas ao princípio da congruência dá ao réu a confiança de que, na pior das hipóteses, será condenado ao valor pleiteado na inicial. Por essa razão, a prolação de sentença condenatória, com fixação de indenização superior à postulada na petição inicial, constituiria fator de surpresa para o réu, que poderia, v. g., ter deixado de contestar o valor, por entendê-lo razoável, proporcional ao fato ou de acordo com os parâmetros habituais.
A possibilidade de indenização por dano moral superior à pedida pelo autor, além de não estar prevista em lei – como seria exigível –, não encontraria apoio na doutrina e na jurisprudência citadas pela Professora Ada Pellegrini Grinover. Isso porque a provisoriedade, assinalada por Yussef Said Cahali, seria uma característica do valor da causa, não do próprio pedido de indenização por dano moral. Com efeito, na referida lição, Cahali defende o entendimento de que o valor da causa na ação de reparação de dano moral depende da estimativa unilateral do autor, sujeita, contudo, ao controle jurisdicional, e que tal valor (o da causa, não o de suposto pedido certo de indenização) é remarcado pela provisoriedade.[54]
Do mesmo modo, a jurisprudência citada estaria a se referir ao valor da causa, não ao próprio pedido de indenização que tenha sido quantificado pelo autor na petição inicial.
Assim sendo, ante o direito constituído, para que o juiz não fique adstrito a determinado valor máximo, cabe ao autor recorrer à fórmula do pedido genérico.