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O papel do Judiciário frente às políticas sanitárias

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Agenda 16/12/2013 às 16:40

4 A Universalização do Direito ao Saneamento Básico

4.1 A universalidade do direito ao saneamento básico frente a teoria de Alexy

Silva[47]conceitua os direitos fundamentais (sociais) como

 (...) “prestações positivas proporcionadas pelo Estado direta ou indiretamente, enunciadas em normas constitucionais, que possibilitam melhores condições de vida aos mais fracos, direitos que tendem a realizar a equalização de situações sociais desiguais”. São, portanto, direitos que valem como pressupostos de uma vida digna, assegurados constitucionalmente.

Neste ponto, relevante é a teoria dos direitos fundamentais de Alexy[48], já que é pressuposto de garantia da efetivação destes direitos. Conforme foi demonstrado, ao se considerar as normas de direito fundamentais como regras, a consequência prática é a de que passa a existir um conteúdo determinado que deve ser realizado em sua plenitude. Assim, conforme ensina Dworkin[49], “a sua aplicação redundará sempre no ‘tudo ou nada’, vale dizer, as regras simplesmente se aplicam ou não se aplicam aos casos concretos para os quais são estipuladas”.

Assim, a partir destas normas-regras, surge um conjunto de direitos que ensejam prestações positivas por parte do Estado. Dessa forma, nascem, justificados constitucional e jurisprudencialmente, os direitos sociais, cujas prestações são verdadeiros deveres do Estado para com os indivíduos. Não pode mais prevalecer o entendimento de que os dispositivos constitucionais, de teor social, são meras declarações de teor ético, moral, sem caráter obrigacional, assim como defende Cretella Júnior [50]:

Na regra jurídica constitucional que dispõe que ‘todos têm direitos e o Estado tem dever’ - de educação, saúde, saneamento -, na realidade, ‘todos não têm direito’, porque a relação jurídica entre o cidadão-credor e o Estado-devedor não se fundamenta em um vinculum iuris gerador de obrigações. Pelo que falta ao cidadão,  o direito subjetivo público de exigir, em juízo, perante o Estado, as prestações prometidas (...).

Adotando essa linha de entendimento do respeitado autor, o vocábulo dever para o Estado passaria a ter um cunho apenas ético e moral, mas não jurídico, o que vedaria nestas normas a sua eficácia jurídica. Destarte, quando o Estado é omisso ou presta o serviço de saneamento de forma ineficaz, justamente por não haver um dever de prestação, não se poderia falar em violação a um direito fundamental – e, consequentemente, estaria afastada a possibilidade da interveniência judicial pela ausência de interesse processual do demandante.

Apesar do direito ao saneamento estar esculpido em uma norma-regra, devendo ser concretizado na “medida do tudo”, diante da deficiência econômica e da omissão ou insuficiência na prestação do serviço de saneamento, o Estado acaba por violar direitos constitucionalmente protegidos. Não basta a mera previsão legal se, na prática, essa universalização do serviço como forma de garantia de um direito fundamental não se operar.

Em sua teoria, Alexy[51] aborda justamente a problemática de se entender os direitos fundamentais apenas quanto ordem formal presente na Constituição de um Estado Democrático. Além de positivados constitucionalmente, é a garantia feita pelo Estado que dará a esses direitos uma aplicação material, atribuindo eficácia e existência concreta a essas garantias. É dever do Estado garantir o direito ao saneamento básico, como reflexo do direito à saúde e à vida e da dignidade da pessoa humana.

Seguindo o pensamento do autor, a partir do momento em que se reconhecem as normas de direito fundamental como regras, conferindo a elas uma obrigatoriedade de aplicação material, torna-se dever do Estado concretizá-las, atuando positivamente. Deve a Administração Pública atuar garantindo direitos, de forma a universalizar o serviço de saneamento básico e atenuar todos os problemas relativos à deficiência de sua prestação. Dessa forma, a universalização do acesso ao serviço de saneamento torna-se uma política pública, constituindo um compromisso da Administração com a sociedade, tendo por fim assegurar, de modo permanente, a satisfação das necessidades essenciais da população.

A ideia é simples: com a universalização do serviço, a todos será garantido o direito a um saneamento básico adequado, estando resguardado, por conseguinte, o bem maior da vida. O Estado, então, atua positivamente reduzindo as desigualdades sociais, e ao mesmo tempo, ao garantir direitos, reafirma a força normativa da Constituição – reassume a dupla função de garantidor de direitos fundamentais e de principal garantidor da ordem jurídica vigente.

Contudo, considerando as dificuldades existentes no setor e consequente violação de direitos fundamentais pela omissão estatal na prestação do serviço de saneamento básico, esta universalização tornar-se-á cada vez mais difícil de se concretizar. Por isso, podem ser adotados mecanismos preventivos e repressivos de controle, a fim de coibir esse panorama. Desta feita, conforme será demonstrado no capítulo seguinte, caberá ao Judiciário interferir na elaboração das leis orçamentárias diante da má destinação dos recursos ou ausência de previsão legal de políticas públicas efetivas (controle preventivo); ou ainda, atuar garantindo a materialização do direito ao saneamento diante de uma omissão estatal em concretizá-lo (controle repressivo).

4.2 A universalidade do direito ao saneamento frente a Lei nº 11.445[52]

Não obstante a ideia da universalização extraída da teoria de Alexy[53], corroborando este pensamento, surge a Lei nº 11.445, de 5 de janeiro de 2007 – Lei do Saneamento Básico - seguindo a lógica na qual os investimentos devem estar atrelados às metas de universalização e de integralidade a fim de possibilitar o acesso de todas as camadas da população ao serviço de saneamento, consagrando, assim, direitos fundamentais.

A Lei do Saneamento Básico surge numa tentativa de se amenizar a situação precária que encontra o Brasil quando o assunto é o serviço sanitário. Reconhecendo as dificuldades existentes no setor e as constantes violações de direitos fundamentais pela omissão estatal na prestação do serviço de saneamento básico, estabelece a Lei objetivos e diretrizes nacionais a serem seguidos pelo Estado na consecução das políticas públicas sanitárias, tendo como foco central a universalização do acesso aos serviços públicos de saneamento.

Não obstante, ainda prevê que a aplicação dos recursos financeiros para a promoção da salubridade social deve-se dar visando o maior custo-benefício, atingindo o melhor retorno social possível, como antes sugerido. A lei não só determina a universalização do acesso, como também estabelece parâmetros a serem seguidos pela Administração Pública na distribuição dos gastos públicos e na concretização do Direito.

Conforme já foi demonstrado, mesmo na elaboração orçamentária, não há uma discricionariedade para o Poder Público, devendo este destinar recursos suficientes para a materialização do direito ao saneamento, já que está em jogo o direito à vida. Caso não o faça, é imperioso que o Judiciário interfira nestas escolhas alocativas, assegurando que sejam destinadas verbas para o atendimento do direito. Ainda, deve pautar a Administração – e também o Judiciário, em caso de escolhas equivocadas desta – em obter o maior retorno social possível. Isso significa que, em caso de um conflito envolvendo o direito ao saneamento básico de um e o direito ao saneamento básico de muitos, o critério ético-jurídico do maior número de pessoas atendidas deve nortear a solução da celeuma, a termo do que dispõe a lei. 

Certo é que se deve compreender a Lei nº 11.445[54] à luz da teoria dos direitos fundamentais. A ideia da universalidade da prestação do serviço de saneamento básico, surgida com a necessidade de tutela do direito à vida pelo Estado, que deve atuar positivamente na concretização das políticas públicas trazidas por normas-regras, porém, ganha maior força com o advento da Lei, que não só corrobora a aludida teoria de Alexy[55], mas também garante maior efetividade ao direito ao saneamento.

Ainda, segundo Alochio[56], a Lei de Diretrizes Nacionais para o Saneamento Básico, Lei nº 11.445[57], explicita, ao lado do princípio da  universalidade, o princípio da integralidade. Conforme o autor, “não está se falando apenas em colocar o serviço a disposição de todos, mas sim de um acesso efetivo do serviço por todos.  O que se constitui numa forma de se efetivar o Direito Fundamental  à prestação do serviço”.

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Não basta que o Estado busque uma universalização mediante uma “ampliação progressiva do acesso de todos os domicílios ocupados ao saneamento básico”[58]. Deve ainda perseguir uma integralidade do serviço, no sentido de propiciar “à população o acesso na conformidade de suas necessidades” e maximizar “a eficácia das ações e resultados”[59]. Ou seja, não basta fornecer o serviço se este não for prestado de forma eficiente - o poder público deve criar políticas sanitárias que atendam da melhor maneira possível o maior número de pessoas, tutelando o direito à saúde e à vida das mesmas.

Desta forma, a universalização do serviço de saneamento básico, fundamentada pela teoria de Alexy[60] e corroborada pela Lei do Saneamento Básico, traduz-se numa tentativa de se diminuir números alarmantes registrados no Brasil, reduzindo-se os índices de mortalidade infantil e doenças. E não só, ampliar o alcance do serviço sanitário significa desenvolver o país, erradicar a pobreza, a marginalização, reduzir as desigualdades sociais e, sobretudo, garantir efetivamente o direito à saúde e à vida.

4.3 A Universalização e a atividade jurisdicional

Este tópico ganha importância no presente estudo sobretudo pelo fato de muitos sustentarem que as demandas sanitárias obtidas por meio do Judiciário estariam restritas somente àqueles que buscassem tais pleitos, violando o direito de igualdade e a universalização do serviço de saneamento básico.

Porém, conforme demonstrar-se-á, tal colocação é infundada. A garantia de acesso ao Poder Judiciário, conhecida como o princípio da inafastabilidade da jurisdição, “representa a possibilidade, conferida a todos, de provocar a atividade jurisdicional do Estado e instaurar o devido processo constitucional, com as garantias a ele inerentes”[61], para buscar a tutela jurisdicional adequada.

Do conceito se extrai a amplitude desta garantia, já que o direito de buscar o Judiciário se estende a todas as pessoas, sejam elas titulares de direitos ou meras pretensões infundadas. Nesse ponto, concretizado está o direito à igualdade – todos poderão recorrer à justiça na busca do direito a um saneamento básico adequado.

Por outro lado, ainda que o cidadão não busque a efetivação de seu direito pela via judicial, este não ficará à margem da tutela judicial conferida a outrem. A partir do momento em que o Judiciário determina que seja deferida a tutela e a Administração Pública reconhece o direito, surge para esta uma obrigação de concretizá-lo de modo universal. Melhor explicando: quando o Poder Público reconhece o direito do cidadão à prestação estatal de saneamento, automaticamente está confirmando a relevância do direito e a necessidade de concretizá-lo na “medida do tudo”. Assim, surge a obrigação para a Administração Pública de realizar políticas sanitárias que atendam a toda sociedade, dada a necessidade de concretizar para todos uma garantia ligada diretamente ao direito à vida.

Posto isso, derrubando entendimento contrário, pode-se afirmar que o controle judicial coadunará com o direito à igualdade e a necessidade de universalização do direito ao saneamento, sendo um importante instrumento para concretizá-los.


5 O Controle Judicial dos Atos Administrativos Que Materializam Políticas Públicas

Incumbe à Administração Pública a importante missão de elaboração de políticas públicas, assim consideradas como um conjunto de ações e omissões que visam à proteção e promoção dos direitos fundamentais, inclusive os sociais, sendo o resultado da ponderação entre interesses conflitantes e recursos públicos limitados[62].

Porém, nem sempre esta atividade é desempenhada corretamente, seja pela ausência de um planejamento orçamentário que destine verbas suficientes para a materialização destas políticas, ou seja pela má execução das leis orçamentárias. E é neste contexto que o controle judicial é de extrema importância, aferindo a constitucionalidade das escolhas feitas pela Administração, cuidando para que haja um adequado planejamento do gasto das verbas e correta execução das políticas públicas.

Neste capítulo, analisar-se-á mais a fundo a possibilidade do controle do Judiciário sobre os atos administrativos e, posteriormente, destinar-se-á a análise das formas utilizadas para o empenho deste controle.

5.1 O controle judicial seria uma violação à separação de poderes?

Esta discussão vem à tona sobretudo porque o Judiciário não detém a competência para elaborar políticas públicas, ficando estas a cargo do Legislativo e do Executivo. Desta forma, a doutrina tradicional sustenta que ao haver um controle judicial sobre as opções legislativas e administrativas, estaria o Judiciário interferindo na alçada destes poderes, uma vez que cuidaria da distribuição de recursos (quando sua decisão implica o contingenciamento do orçamento) e da execução das políticas (quando a decisão implica a prática de atos materiais).

Certo é que, de um lado, há aqueles que defendam uma maior atuação do Poder Judiciário nas questões políticas do Estado. Para eles, esta atuação faz-se imperativa para que se resguarde princípios fundamentais e se proteja o Estado Democrático de Direito, visando sempre sedimentar uma verdadeira igualdade social.

Em contrapartida, os defensores da autonomia total dos poderes, atestam que a ingerência judicial viola o processo democrático, já que somente os poderes eleitos pelo povo é que têm legitimidade para operar escolhas políticas. Porém, no atual panorama, reconhecida a força normativa da Constituição, esta concepção tradicional não pode encontrar mais guarita. É mister que haja um controle das políticas públicas pelo Judiciário, determinando a adoção de um comportamento positivo por parte do Poder Público, a fim de conferir real efetividade aos direitos fundamentais.

Refutando o argumento de que a ingerência judicial violaria o processo democrático, Lopes Júnior, citado por Freire Júnior[63], salienta:

A legitimidade democrática do juiz deriva do caráter democrático a Constituição, e não da vontade da maioria. O juiz tem uma nova posição dentro do Estado de Direito e a legitimidade de sua atuação não é política, mas constitucional, e seu fundamento é unicamente a intangibilidade dos direitos fundamentais. É uma legitimidade democrática, fundada na garantia dos direitos fundamentais e baseada na democracia substancial.

No que tange ao argumento de que a interferência judicial macularia a separação de poderes, este pode ser facilmente refutado partindo-se da ideia da inafastabilidade da jurisdição: diante de uma lesão ou ameaça de lesão à um direito não pode ser negada uma prestação jurisdicional apta a coibir a ofensa.  No mais, a própria doutrina separatista não prega uma separação estanque entre os órgãos estatais, uma vez que todos os poderes exercem funções atípicas. Desta forma, é o próprio postulado da separação dos poderes que legitima o Judiciário na incumbência de fiscalizar as ações estatais.

Ainda, a força deôntica das normas consagradoras de direitos sociais, trazida pelo pós-positivismo, conferindo vinculação jurídica ao seu conteúdo, reforça a necessidade de um controle mútuo entre os poderes, atuando em benefício do povo. A necessidade de efetivação dos direitos sociais suplantaria qualquer óbice normativo trazido pelo princípio da separação dos poderes ao controle judicial. Ainda mais quando se trata de um direito social cuja efetivação garante a sobrevivência humana: fornecer condições sanitárias adequadas é cuidar para que o direito à vida também seja tutelado.

Insta registrar que o Judiciário não detém a função de elaboração de políticas públicas, mas tão somente a de controlar decisões políticas dos outros poderes, já que a tomada de decisões políticas cabe ao Executivo e Legislativo. Apesar de não formulá-las, tem o poder-dever de impor sua execução mediante a ordenação de obrigações de fazer à Administração Pública. O próprio Supremo Tribunal Federal reconhece a legitimidades deste controle; no julgamento da ADPF nº 45 MC/DF[64], o Ministro Relator Celso de Mello atestou que tal incumbência seria atribuída ao Poder Judiciário se e quando os órgãos estatais competentes descumprissem seus encargos políticos violando direitos - ainda que derivados de normas de conteúdo programático.

Além de operar perante uma omissão estatal, casos há em que o Judiciário será chamado a intervir para aferir a constitucionalidade das escolhas administrativas. Nestas situações, apesar de haver uma atuação positiva dos órgãos estatais, elabora-se o plano orçamentário destinando verbas insuficientes para as políticas de saneamento básico, ou tem-se uma má alocação de recursos na execução destas políticas.

Note-se que a ingerência judicial será legítima (e imperativa) quando a Administração Pública restringir o direito de maneira antijurídica. A mera alegação da reserva do possível não é argumento suficiente para impedir o controle judicial. Isto implica em dizer que diante de uma limitação financeira devidamente comprovada, quando estão em conflito demandas sanitárias, poderá o Judiciário pronunciar-se acerca da escolha feita, com base no critério do número de beneficiários já apresentado neste trabalho.

Desta forma, por tudo o que foi exposto, conclui-se que o controle judicial não viola a separação de poderes, cabendo ao Judiciário o controle sobre os atos administrativos que materializam políticas públicas, anulando atos inválidos, aplicando condenações ou impondo à Administração obrigações de fazer, mesmo na falta de regulamentação infraconstitucional. Este papel é de extrema relevância para a consagração do direito ao saneamento básico, sobretudo pelo fato desta intervenção significar verdadeira tutela à vida humana.

5.2 As formas de controle do Judiciário sobre as políticas públicas sanitárias

Para que o Judiciário possa atuar, realizando o controle sobre os atos administrativos, é necessário que seja provocado mediante o ajuizamento de uma ação ordinária ou de ações próprias (remédios constitucionais). o ordinária ou ações próprias (remédios constitucionais) erigidas constitucionalmente como garantias do indivíduo. Uma vez provocado, poderá realizar um controle preventivo ou repressivo, visando sempre a coibir eventuais violações ao direito ao saneamento.

5.2.1 O controle judicial na elaboração das políticas públicas sanitárias – o controle preventivo

As leis orçamentárias, de competência do Legislativo e Executivo, são responsáveis por trazer em seu corpo toda a previsão de gasto do Estado e, vigendo o princípio da legalidade orçamentária, são de extrema importância na temática das políticas públicas, pois nenhum gasto poderá ser efetuado sem que haja correspondente previsão na lei. Desta forma, para que políticas públicas possam ser implementadas, considerando a escassez de recursos, tais projetos de lei devem exprimir verdadeiros juízos de ponderação nas escolhas alocativas, visando sempre consagrar os direitos que possuírem maior peso.

É justamente esta atividade de ponderação que permite ao Judiciário realizar o controle sobre ela, que se dará nas ações ordinárias, ações civis públicas, ações populares ou em ações do controle de constitucionalidade; ou, ainda, mediante a verificação da destinação do montante mínimo de verbas, previsto no art. 77 do ADCT, imposto pela EC nº 29. Cabe a ele verificar se foram atendidos parâmetros jurídicos que observam o juízo de ponderação entre os princípios e preservam o núcleo essencial do direito. Sobretudo no tocante ao direito ao saneamento, contido no núcleo essencial do direito à saúde: na elaboração do orçamento, deve o Legislativo e o Executivo cuidar para salvaguardar este conteúdo mínimo destinando verbas suficientes para sua materialização; caso contrário, pelo fato de o direito ser consagrado em uma norma-regra (devendo ser consagrado na medida do tudo), tem legitimidade o Judiciário de interferir no processo legislativo determinando a inclusão de políticas ou recursos financeiros para este propósito.

Além de interferir no processo legislativo das leis orçamentárias, determinando a alocação de verbas ou previsão de políticas públicas, poderá o Judiciário interferir para averiguar a adequação da lei orçamentária com os objetivos fixados na Lei de Diretrizes Orçamentárias e no Plano Pluri-Anual. Tal controle mostra-se importante uma vez que, ao se analisar tal compatibilidade e se exigir sua adequação, garante-se a plena eficácia de tais metas, não sendo apenas meras previsões constitucionais.

 Barros[65]traz uma outra possibilidade do controle judicial. Não se operando o controle sobre a lei orçamentária, seria possível a “alternativa de buscar, no Judiciário, (...) a obrigação de que seja destinada verba no orçamento do ano seguinte para a referida política”. Tal solução ganha relevância frente as demandas sanitárias de alto custo não contempladas no orçamento: além de se garantir a legalidade orçamentária, protegendo os princípios financeiros, não se deixa de concretizar direitos, sobretudo quando o direito em jogo envolve a vida humana.

Desta forma, o controle preventivo feito pelo Judiciário, feito ainda na fase de elaboração das políticas públicas, é uma solução que evita de antemão a violação ao direito ao saneamento. Reconhecida a insuficiência orçamentária do Estado para concretizar todos os direitos previstos na Constituição, atendendo a todas as demandas sociais com o orçamento previsto pela Lei Orçamentária Anual, o Judiciário ganha o importante papel de determinar a alocação dos recursos, cuidando para que as verbas existentes nos cofres sejam utilizadas em políticas de interesse público, evitando o mau uso do dinheiro estatal.

É uma alternativa mais conveniente, pois, ao cuidar que se implementem políticas públicas eficientes e se destine verbas suficientes para elas, evita-se o congestionamento e morosidade do Judiciário com ações judiciais que poderão significar sacrifícios desnecessários aos cofres públicos. E não só, ao lançar mão deste controle preventivo, de caráter geral e abstrato, atinge-se a universalidade da prestação, uma vez que as prestações estatais mediante ordem judicial só recaem sobre aqueles que socorreram à justiça.

5.2.2 O controle judicial na execução das políticas públicas sanitárias – o controle repressivo

Já foi demonstrado que a elaboração das políticas públicas é competência do Legislativo e do Executivo. Desta forma, uma vez elaboradas, cabe ao Judiciário efetuar um controle repressivo sobre elas diante de uma omissão ou uma irregularidade na sua implementação por parte da Administração Pública.

A discricionariedade na alocação de recursos pode existir apenas na fase de elaboração do projeto de lei – discricionariedade esta que não se opera quando se trata de fornecer condições para se tutelar o direito ao saneamento básico, já que se tutela, num primeiro plano, a vida. Também na fase de execução das políticas sanitárias esta discricionariedade é nula, já que o saneamento é garantia veiculada por uma norma-regra que deve ser implementada na medida do tudo. Não pode a Administração realocar recursos financeiros livremente, sob pena de haver o controle judicial, estando equivocada a concepção de Krell[66], de que “no Brasil, não há vinculação legal dos governos de executar o orçamento”.

Desta forma, constatada a ausência ou insuficiência de medidas para realizar uma política sanitária constituindo verdadeira conduta antijurídica da Administração Pública; uma ação ordinária que materialize um pleito individual ou uma ação que permita decisões erga omnes devem ser imediatamente atendidas, já que tem como finalidade resguardar direitos fundamentais preteridos indevidamente pelo Estado. Cumpre agora proceder ao exame de cada uma delas.

5.2.2.1 A ação ordinária

A ação ordinária é medida desenvolvida no leito do procedimento comum ordinário, previsto no Código de Processo Civil, e tem como legitimado qualquer indivíduo, que pode figurar como autor ou como réu. Desta forma, como a ação ordinária pode ser proposta por qualquer pessoa, é importante mecanismo de tutela do direito ao saneamento básico, uma vez que é apta a resguardar direitos de qualquer indivíduo que procure o Judiciário.

Diante da omissão indevida do Estado na execução de políticas públicas, é imperioso o controle judicial garantindo o direito ao saneamento. Porém, os recursos são escassos e as demandas sanitárias são inúmeras, não podendo o Judiciário deferir todas as pretensões que aprecia. Frequente serão os conflitos envolvendo os mesmos interesses sanitários e apenas uma demanda poderá ser acatada. Ademais, como as verbas são poucas, a contemplação do direito ao saneamento básico de um, impedirá a satisfação do direito ao saneamento de outros ou de outros direitos sociais.

Desta forma, é imperioso que toda e qualquer pretensão em juízo seja acompanhada de devida prova dos fatos deduzidos ou resistidos em juízo. Aquele que figura como autor deve apresentar provas robustas de que a obra de saneamento requerida beneficie um número maior de pessoas do que outras destinadas a outros complexos populacionais também carecedores deste serviço; por outro lado, a Administração, como ré, deve apresentar provas cabais de sua impossibilidade financeira, não bastando a mera alegação da mesma.

5.2.2.2 A tutela antecipada

A tutela antecipada é instituto previsto no art. 273 do Código de Processo Civil, que consiste na concessão total ou parcial dos efeitos pretendidos no pedido inicial, em face de prova inequívoca e verossimilhança das alegações dos postulante, além da existência de fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação, abuso do direito de defesa ou manifesto propósito protelatório do réu.

A antecipação dos efeitos em juízo é de extrema importância quando o pleito envolve o direito ao saneamento básico, já que mediante a sua concessão o Judiciário garante de antemão a manutenção da vida humana, até que seja prolatada a decisão final. Aqui, registra-se a mesma necessidade probatória já explicitada supra, sendo que neste caso a prova dos fatos deve ser inequívoca.

Por fim, muitos defendem que a concessão da tutela antecipada só poderá se operar diante da reversibilidade da decisão. Porém, no que toca ao direito ao saneamento, mesmo tutelas irreversíveis devem ser deferidas, uma vez que sempre deverá haver a prevalência da vida.

5.2.2.3 O mandado de segurança individual e coletivo

O mandado de segurança individual é remédio constitucional consagrado no art. 5º, LXIX da Constituição[67] e na Lei nº 12.016[68], cabível diante de uma lesão ou ameaça de lesão a um direito individual líquido e certo, quando o direito não puder ser amparado por “habeas corpus ou habeas data”. É legitimado para a sua propositura qualquer pessoa física ou jurídica que tenha sofrido violação ilegal ou abusiva de seu direito por parte de uma autoridade pública ou agente de pessoa jurídica no exercício de atribuições do Poder Público, exigindo-se, para o seu ajuizamento, prova pré-constituída do direito.

Já o mandado de segurança coletivo traz como diferença os legitimados para a sua propositura e o alcance da tutela. Poderá ser impetrado por qualquer partido político com representação no Congresso Nacional ou por uma organização sindical, entidade de classe ou associação legalmente constituída há pelo menos um ano. Visa a proteção de direitos coletivos e individuais homogêneos do grupo ou categoria representado pelo impetrante, tendo um alcance maior do que o mandado de segurança individual, que restringe os efeitos apenas ao titular da ação.

Não obstante a letra da lei, no caso em que estão envolvidas demandas de saúde de primeira necessidade, ambos os tipos de Mandado de Segurança podem preterir até mesmo o habeas corpus e o habeas data, já que se deve priorizar sempre o direito à vida.

Pelo fato de poderem ser propostos pelo interessado em até 120 (cento e vinte) dias contados da ciência do ato impugnado, tendo prioridade de tramitação sobre todos os atos judiciais (inclusive o Habeas Corpus), representam um meio eficiente de tutela do direito ao saneamento, já que são medidas eficientes e ligeiras, aptas a coibirem omissões estatais violadoras de direitos sociais.

5.2.2.4 A ação civil pública

A ação civil pública é instrumento previsto na Lei nº 7347[69] que tem como finalidade a responsabilização de danos causados ao meio ambiente, ao consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico e paisagístico e a qualquer outro interesse difuso ou coletivo. São legitimados ativos o Ministério Público, a Defensoria Pública, a Administração Direta e Indireta e as associações que estejam constituídas há pelo menos um ano e que inclua entre as suas atribuições um dos objetivos que visa tutelar a lei.

Diante de uma omissão estatal na execução das políticas públicas, poderá o Judiciário impor o cumprimento de uma obrigação de fazer ou não fazer à Administração. Como a sentença prolatada produzirá efeitos erga omnes, a ação civil pública é importante para o alcance da universalidade do saneamento básico. Note-se, contudo, que para o deferimento da demanda, haverá a necessidade cabal de se provar a ocorrência do dano.

5.2.2.5 A ação popular

A ação popular é regida pela Lei nº 4717[70] e pelo art. 5º, LXXIII da Constituição[71] e tem guarida quando se quer anular um ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural. Poderá ser ajuizada por qualquer cidadão, nacional e eleitor em face das pessoas públicas ou privadas, das autoridades que houverem autorizado ou praticado o ato ou que por omissão tenham dado cabo à lesão e contra os beneficiários diretos do ato.

Como foi mostrado, quando se está em jogo o direito ao saneamento básico de um “versus” o direito ao saneamento básico de muitos, deve o Judiciário pautar-se pelo critério do número de beneficiários na solução do conflito. Apenas este critério ético-jurídico é apto a fornecer a melhor solução quando se está em jogo interesses que envolvam o direito à vida: entre salvaguardar a vida de um ou a vida de muitos, deve-se optar pela segunda solução. Desta forma, a pretensão do autor deveria ser negada, a medida que seu deferimento importaria na violação do direito de toda uma população.

Sobre a autora
Ana Luiza Lima Fazza

Formado em Direito pela Universidade Federal de Juiz de Fora Atualmente exerce a profissão de Advogado Orientador: Meste e Doutor em Direito Público pela UFMG

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FAZZA, Ana Luiza Lima. O papel do Judiciário frente às políticas sanitárias. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3820, 16 dez. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/26153. Acesso em: 19 mai. 2024.

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