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Estado moderno:

características, conceito, elementos de formação, instituições políticas, natureza jurídica, atualidades

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Agenda 28/12/2013 às 07:10

18. O PODER POLÍTICO

no país, corrompe-se até o conceito

O Poder Político é o poder de comando, de governo; é o poder como formulação, exercício e controle da soberania política. Quando olhamos a realidade brasileira e da América Latina, entretanto, toda a construção epistemológica – de entendimento e suporte racional das principais instituições políticas – parece ruir sem lógica. Toda a orquestração inteligente, arquitetada com coerência e sintonia, que deveria surgir da análise dos instrumentos que suportam o Poder Político se desmorona. No lugar do entendimento surge uma tremenda confusão e desordem institucional, pois aqui teoria política na prática é outra. Na vida comum do homem médio, os instrumentos do poder não servem ao povo, mas sim ao próprio poder. E é isto que confunde até os iniciados na análise do poder, do direito e da teoria política.

Talvez realmente seja uma missão impossível redigir um manual de Ciência Política e de Teorias do Estado que o povo consiga acompanhar. A dificuldade, todavia, não está na linguagem, mas sim na capacidade do autor explicar que nem tudo que ele lê, de fato ocorre e, ao contrário, que nem tudo que ocorre, deveria ser como é.

Costuma-se dizer que, se na prática a teoria é outra, é porque a teoria está errada, ou seja, uma explicação que não encontra suporte na realidade dos fatos parece inconclusa, desprovida de realismo, longe da verdade dos fatos. Em política, sobretudo nas instituições políticas brasileiras (e na América Latina), comumente se vê o oposto: a realidade é outra porque até mesmo os conceitos foram deturpados e o que se critica como política, em suma, é a corrupção da política.

Neste caso, portanto, a teoria está correta, apenas estamos analisando pelo lado do avesso, incapacitados de compreender pela inversão provocada no fenômeno. Infelizmente, habituou-se tomar a corrupção institucional e conceitual como se fora o recurso normal, validável e ainda se quer adequar a teoria política a este efeito perverso da realidade política nacional. O inescrupuloso, inclusive, apoiaria o raciocínio da corrupção da política, pois ainda teria o referendo de uma teoria política do cinismo.

Poder Político

Originariamente, a Antropologia Política nos mostra que o Poder Político poderia ser de um grupo oude uma assembleia, a exemplo dos conselhos de anciãos que orientam as ações de seus representantes, desde as gens, ou entre os índios, até as modernas assembleias legislativas. Outra estrutura do Poder Político é o encargo do soberano, mais comum ante a longeva história do abuso de poder, está no uso que fazia o rei ("o Estado sou eu" – lembremos de Luís XIV, na França), ou então o Estado atual, em que se dividem as funções de gestão política. O Poder Político organizado na forma estatal, portanto, seria uma variável dentre várias.

Para nós que vivemos na América Latina, resta a dúvida de que só o Executivo parece ser um poder de fato e talvez não passe mesmo de nomenclatura, pois soberano é quem manda, ou seja, quem destina o dinheiro, as forças políticas e os recursos da máquina administrativa. Talvez o Estado Capitalista seja mesmo apenas um engodo e esta divisão de poderes não passe de fantasia ou ideologia liberal. Contudo, temos de diferenciar nossas premissas – se faremos uma análise como se vê desde Montesquieu e então temos três poderes que se completam mais ou menos harmonicamente. Pensemos em Estados definidos, organizados, como Suíça, Áustria, Alemanha e no papel desempenhado pelo Tribunal Constitucional.

Neste caso, a soberania é uma só, é una, e será o poder repartido apenas como forma de controle interno exercido sobre o próprio poder. A soberania é prevista nas constituições modernas como pertencentes ao povo de cada país, sendo manifesta por meio da democracia direta, a exemplo dos Cantões suíços, ou em determinados momentos, nos plebiscitos e referendos, como visto no Brasil, ou então por meio de uma assembleia legislativa. Isto constitui a soberania popular. Em todo caso, a divisão dos poderes nada mais fez do que avançar a chamada soberania legislativa (Parlamento) como forma de se restringir, punir os possíveis abusos de poder cometidos pelo Executivo. A divisão de poderes, entretanto, serve para inibir, impedir que também o Legislativo cometa desvios (forjando emendas constitucionais contra o Judiciário, numa espécie de ditadura legislativa) ou, então, para que o Judiciário não se arvore em legislador (uma das críticas assumidas por causa da crescente judicialização da política, no exemplo do mensalão – mas, onde está a ilegalidade do julgamento do mensalão?).

Historicamente, a ação do Parlamento, contra um Executivo muito forte (dotado de toda a soberania), coincide com o surgimento do Estado Liberal – Locke já falava de uma divisão de poderes, em que o Judiciário decorreria do Legislativo. Mas antes dele, desde o Rei João Sem Terra ou com a lei de Habeas corpus, e os demais direitos civis, o próprio direito foi utilizado como instrumento de garantia da divisão dos poderes e como forma eficaz de seu controle. Desse modo, há uma divisão de poder sim, porque o Executivo desde então não pode tudo ou contra todos, precisa barganhar suas ações com os outros poderes e ainda zelar pela legitimidade e legalidade de suas ações. Mas, também se trata de uma divisão de funções – e não propriamente de poder – se pensarmos que o poder de mando, nas democracias liberais, pertence ao povo (com os efeitos da soberania popular).

A soberania depositada no Poder Político, juridicamente, pode ser vista na extensão do poder erga omnes acumulado na lei. É o direito que exerce a “coerção contra todos” e não o Poder Político. Neste sentido, a soberania pertence ao direito e não ao Executivo ou ao Legislativo. E nem mesmo pertence a soberania ao Judiciário, que tem apenas a função de intérprete legal. O Poder Político pode até ser a fonte do direito, porém, a partir da fase de superação do modelo de Estado Absolutista (em que a soberania é do Soberano: rei ou órgão de poder) e desde que haja autocontrole do poder, não pode o Estado criar o antidireito em nome de sua soberania legislativa. Esta é uma das restrições ao Poder Político enfeixado no soberano que vem sendo articulada desde o século XIX: não pode o Estado criar um antidireito que desobrigue o poder e permita-lhe agir como de interesse de poucos; não pode o Estado formular uma desculpa legal que torne sinônimos o governo (como função transitória de poder) e o próprio Estado (como entidade meio de estabilidade política e institucional). Uma das garantias do Estado de Direito é exatamente a divisão dos poderes e a garantia de que nenhum dos três poderes utilizar-se-á do Estado contra a sociedade e seus cidadãos.

Brasil e América Latina

No Brasil, pela série histórica de desvios, de desmandos e de abusos de fato e de poder, do Executivo sobre os demais poderes, às vezes até duvidamos de que existam outros poderes (o AI-5 da ditadura militar, de 1967, de triste lembrança, é um exemplo marcante, assim como o Estado Novo, de Getúlio Vargas). Ou, recentemente, com os exemplos da PEC 37, que limita a capacidade investigativa do Ministério Público, beneficiando a corrupção política e de outra quesubmete decisões do Supremo Tribunal Federal para análise final e possível alteração pelo Congresso Nacional (PEC 33). A soberana decisão do STF perderia validade jurídica em todo seu conteúdo; em razão de interesses políticos partidários ou de grupos de pressão, seria criado um direito que se adéqüe aos interesses do governo de plantão e não ao Estado e ao povo. Este é um exemplo de ditadura legislativa e infelizmente foi dado pelo Brasil – o nazismo, ao criar a Lei de Plenos Poderes, encontraria no Legislativo brasileiro uma ressonância em estrutura legal.

Na Argentina, parte do conselho superior da magistratura será eleita – em atitude eleitoreira, populista – e também terá efeitos semelhantes ao que se ameaça criar no Brasil. No mesmo contexto dos abusos de poder ou golpes contra a ordem jurídica democrática, a Constituição do Paraguai prevê o impeachment, mas não exatamente em toque de caixa. No dia 22 de junho de 2012 o presidente Fernando Lugo foi destituído do cargo, condenado por “mau desempenho”, em processo de impeachment que durou 36 horas. A Bolívia, desde sua independência em 1825, recebeu cerca de 150 tentativas de golpes de Estado ou tomadas de poder não constitucionais, como se tivesse um presidente eleito a cada 14 meses. Em 1979, o país teve três presidentes. Entre 1978 e 1982 foram nove dirigentes.

Isto ocorre porque a democracia sempre foi tímida na América Latina, seja em governos de direita ou de esquerda; a politização das lides políticas nunca foi regida pacificamente, porque o Executivo sempre decretou variados tipos de golpes contras as instituições democráticas e populares.

Porém, quando mais uma vez olha-se para a história política da Humanidade vemos outras construções que não são apenas simbólicas, mas realmente recursais da divisão de poderes. Veja-se a força instituída ao Legislativo nos países parlamentaristas (repartindo-se o Executivo em dois: com Chefe de Estado e Chefe de Governo, separadamente) ou a força decisiva/descritiva do poder, assumida pela Suprema Corte nos EUA. Mesmo as leis de exceção, aprovadas após o 11/09, tiveram de ser chanceladas, interpretadas pelo Judiciário. A Suprema Corte não analisou, por exemplo, se a quinta emenda terá sua ação restringida por tais leis. E enquanto isso não ocorre as leis de exceção merecem debate jurídico, lá e aqui. Estas são formas efetivas, reais de se ver/pensar a soberania popular que se equilibra na divisão dos poderes, ora se fortalecendo o Parlamento, ora vertendo-se sob a ação independente do Poder Judiciário.

Desse modo, se a teoria pode e deve ser melhorada é porque não está errada, isto é, a teoria política prevê a perfectibidade, um ajustamento com o melhor dever-ser do poder e não é uma mera ideologia (um falseamento, encobrimento dos sentidos que impede a apreensão mais adequada do fenômeno social); ocorre, então, que a prática deve ser convulsionada por uma análise crítica. Na prática, a teoria está ajustada a uma realidade funcional e não exatamente preparada para atuar na sua deformação; em tese, a prática corrompeu todos os laços com o intuito organizativo da sociedade (como poder social) e do Estado (como Poder Político).

Por fim, pode-se dizer que a soberania é única, com o Estado regulado pelo direito; Estado este que não pode atuar contra as normas de contenção do próprio poder (criando o antidireito para anular as regras democrática de autocontrole do Poder Político) e nem contra a sociedade e seus cidadãos. Para facilitar essa tarefa, há a divisão de poderes, a fim de que a soberania não converta as prerrogativas do Executivo – o poder que manipula concretamente os recursos políticos e econômicos – em abuso de poder. Na teoria política correta temos uma soberania e vários poderes; mas, na prática corrupta, viceja um poder que se traveste de soberano. O Acerto de contas realizado contra as antigas tradições, acabou por opor o Estado de Cortes ao Estado legal, como foi apelidado pelos franceses revolucionários.


19. A FORMAÇÃO DO ESPÍRITO PÚBLICO

do Estado de Cortes ao Estado Legal

Neste tópico veremos que a história de afirmação do Estado Moderno deu-se em dois sentidos: 1) contra as formas autocráticas e absolutistas próprias ao Antigo Regime; 2) como conversão da ideia de soberania do poder, para a edificação da soberania popular, especialmente porque a legalidade derivava sua força da legitimidade. O chamado Estado Legal deveria superar uma fase monolítica do Poder Político e se apresentou pela primeira vez a coisa pública como sinônimo de popular; a primeira vez em que o povo passaria a integrar uma política de Estado que não fosse como peões que caminham para a guerra, mas sim integrando-se a soberania popular como matriz das políticas públicas. O texto está dividido em duas partes.

1ª Parte: a soberania absolutista

Na vigência do feudalismo temos a figura do Estado só no nome, uma vez que as estruturas políticas não estão definidas. Nesta fase do Estado Feudal - período que compreende a Idade Média - não temos os marcos históricos mais estimulantes para analisar as tipologias do Estado e nem há grandes formulações ou teorias políticas. Evidentemente, há alguns elementos que caracterizam esse chamado Estado Medieval: cristianismo; invasões bárbaras; feudalismo. Pode-se dizer que no período há uma Filosofia Política católica, de certo modo embasada na moral cristã, mas certamente não chega a compor a realidade da política e do Poder Público da época. Por seu turno, há outros elementos ou circunstâncias que conformam o Estado Feudal:

A – permanente instabilidade política, econômica e social; B – distinção e choque entre poder espiritual e poder temporal; C – fragmentação do poder, mediante a infinita multiplicação de centros internos de poder político, distribuídos aos nobres, bispos, universidades, reinos, corporações etc; D – sistema jurídico consuetudinário embasado em regalias nobiliárquicas; E – relações de dependência pessoal, hierarquia de privilégios (Streck, 2001, p. 21. – grifos nossos).

A história desse Estado Medieval é longa e tortuosa, mas pode-se dizer que, do final do Estado Romano até que se estruturasse um novo tipo de Estado ou sistema de produção, entre feudalismo e capitalismo, transcorreram outros mil anos, agora sob a dominação do poder espiritual estabelecido no correr da Idade Média. Temos aqui um longo período em que, todavia, apenas duas questões foram constantes: a oposição entre Estado x Igreja; tirania x justiça. Na Idade Média como um todo predominara certa visão negativa do Estado 93, pois o Estado acabara sendo definido de forma limitada ou restritiva como se estivesse destinado à repressão, ao passo que a salvação deveria provir da religião, da fé e mais especificamente da Igreja Católica.

O autor católico Isidoro de Sevilha (550-636) seria um exemplo claro do que se chama de Estado negativo, ou seja, um tipo de Estado que não age senão sob a forma da ameaça e do terror. O Estado também seria negativo porque não agiria de forma propositiva, mas só restritiva e, principalmente, negativa quanto aos direitos. Temos, enfim, um Estado elitista e atento às conveniências do poder e do modo de produção feudal ou estamental. Neste caso, a pena imposta pelo Estado negativo seria a restrição da liberdade:

“Pela vontade de Deus, a pena de servidão foi imposta à humanidade devido ao pecado do primeiro homem; quando ele nota que a liberdade não convém a alguns homens, misericordiosamente lhes impõe a escravidão. E, embora todos os fiéis possam ser redimidos do pecado original pelo batismo, Deus, na sua eqüidade, fez diferente a vida dos homens, ‘determinando que alguns fossem servos, outros senhores’, de modo que o arbítrio que têm os servos de agir mal fosse limitado pelo poder dos que dominam. Com efeito, se ninguém temesse, quem poderia impedir alguém de cometer o mal? Por isso são eleitos príncipes e reis, para que ‘com o terror’ livrem seus súditos do mal, ‘obrigando-os, pelas leis, a viver retamente” (Sententiae, III, 47) 94 (Bobbio, 1985, p. 78).

Veja-se que tanto a regra econômica (servidão) quanto a primazia de dizer o certo ou o errado (moral) era de domínio religioso – uma prerrogativa da Igreja e não exatamente do Estado. A frase Deus na sua equidade determinou que alguns fossem servos e outros senhores, ilustra bem a função do poder religioso. As leis que devemos seguir para viver retamente derivam desse poder espiritual, não do Estado e, por isso, não há poder secular. Mil anos depois das afirmações de Isidoro de Sevilha, e já com Lutero 95, a pregação ainda seria a mesma, com conselhos semelhantes para que se usasse da força com o mesmo intuito do amedrontamento (Bobbio, 1985, p. 79). É interessante notar que posteriormente Bobbio desagravou a crítica endereçada à concepção negativa que se formou em torno do Estado Medieval, porque igualmente ia ter-se desenvolvido uma concepção racional do Estado. Como podemos ver, Bobbio chega a inverter os polos, chamando agora de concepção positiva do Estado:

Concepção positiva é certamente aquela que remonta a Aristóteles, e torna-se dominante na Europa da segunda metade do século XIII em diante, quando se difunde o Aristóteles latino: o fim da comunidade política, a koinonía politiké, a societas civilis na predominante tradução latina, não é apenas o viver ou sobreviver, mas o bonum vivere, o viver bem (Bobbio, 2000, p. 120).

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O Estado é coerção e punição, e nisto é negativo, mas os filósofos do Estado e os teólogos (da Moral) dirão aos servos que o Estado deve prover a vida boa e justa. Agora resta saber para quem a vida seria boa e justa. De certo modo, Bobbio trata da Filosofia Política católica alegada por muitos autores. Já o segundo grande problema alegado destaca a tirania ou os cuidados a fim de que seja evitada, porque com tiranos não há segurança e nem justiça. Aliás, o tema do novo príncipe, colocado por Maquiavel, inferia diretamente nesta grave questão da tirania, como forma de abuso de poder e que, gerando descontentamento e resistência, acabaria por provocar desestabilização do poder e do Estado 96. Ainda com Bobbio temos um resumo instigante das obras e dos autores centrais dessa temática:

Dos comentários medievais sobre a tirania, o mais célebre é o de Bartolo (1314-1357); no De Regimine Civitatis, que introduz a distinção (destinada ao êxito) entre o tirano que exerce abusivamente o poder – “tyrannus ex parte exercitti” – e o que conquistou o poder sem ter direito – “tyrannus ex defectu tituli”. Possivelmente o mais completo dos tratados sobre a tirania é o de Coluccio Salutati, e Tratado sobre o Tirano, escrito no fim do século XV... (Bobbio, 1985, p. 81).

Entretanto, Coluccio Salutati não será em nada originário e acabará promovendo quase que uma cópia das fórmulas propostas por Aristóteles e depois retomadas por São Tomás, além de Ptolomeu de Luca e Egídio Romano. As três formas de principatus ou exemplos de casos concretos de tirania são: principatus regius; politicus e despoticus 97. Porém, não devemos nos esquecer que todo esse debate visava alertar para o perigo de instaurar a tirania e para saldar o príncipe sábio e justo. Esse Príncipe sábio, não-tirano, é justamente aquele que se utiliza da força de forma não abusiva ou indiscriminadamente 98:

No que concerne à tirania, Coluccio retoma a distinção entre suas duas formas, definidas por Bartolo: tirano é tanto o que “invadit imperium et iustum non habet titulum dominandi” (o príncipe que conquista o poder sem justo título a ele, sendo portanto um príncipe usurpador, ilegítimo) quanto o que “superbe dominatur aut iniustitiam facit vel iura legesque non observat” (o príncipe que, embora tenha título justo para exercer o poder, o exerce em violação das leis, abusando de seus privilégios, tratando cruelmente os súditos, etc). Por antítese, o príncipe legítimo e justo – não tirano – é o que tem ao mesmo tempo um título justo (“cui iure principatus delatus est”) e governa com justiça (“qui iustitiam ministrat et leges servat”) (Bobbio, 1985, pp. 81-2).

Enfim, o grande tema político da Idade Média se pautava em como delimitar e evitar – o quanto possível – a tirania. Portanto, ao contrário disso, o governo não-tirânico, não-despótico, era o governo estabelecido com parcimônia. E estas eram exatamente as lições prolatadas pela Filosofia Política católica – mais uma moral política, um guia do bem e do mal, do que exatamente Ciência Política. Neste sentido, a Ciência Política não é moral, nem imoral, é simplesmente amoral.

Nesta fase, Filosofia Política e Ciência Política se distanciam porque, enquanto a Filosofia Política indicava como se deveria regular o Poder Público, a Ciência Política – especialmente depois de Maquiavel – indicava a realidade dura e nua do poder e dos poderosos. Como diz Darcy Azambuja (2001), a respeito das ideias que circundavam o grande preceito da soberania, entre filosofia e realidade há uma grande distância:

Bigne de Villeneuve assim as resumiu no que respeita à ideia de Estado. Existe um Direito Natural, de origem divina, ao qual toda a atividade humana, e conseqüentemente a do Estado é subordinada. Existe um Direito Positivo de que o Estado é o criador, mas que também se deve harmonizar com o Direito Natural e tende a realizar o bem público. Seus preceitos mais gerais são obrigatórios também para o chefe do Estado. A direção do Estado compete ao Príncipe ou a uma Assembleia, que devem procurar o bem público, são responsáveis perante Deus e até certo ponto perante os homens. A essa ideia de Estado, contida nos grandes sistemas filosóficos medievais, opunha-se a noção de Estado, a realidade (p. 144).

Isto é o que preceituava, diremos outra vez, a Filosofia Política católica da época, porém não era o que se encontrava na ação diretiva daqueles que exerciam o poder. Entre o dever-ser dos atores sociais e o resultado final das múltiplas forças políticas atuantes (o Rei ou Príncipe eram apenas uma das forças em questão), havia uma distância considerável com muitos obstáculos, e este governante acabava, em geral, refém dos vários polos em conflito. Mas, vejamos mais um pouco das condições propriamente políticas em que gravitava este pretenso Estado Feudal.

Todo Poder provém de Deus

Fala-se ainda de um pretenso Estado Medieval porque, na Idade Média, a figura do Estado como centro de poder desaparece – a política se esfacela, surgindo muitos concorrentes ao Estado e ao rei, a começar da própria Igreja Católica e dos demais estamentos sociais. O Estado se mostra enfraquecido e/ou impotente diante de tanta concorrência pela hegemonia do poder político. Aliás, se a política e o poder eram tão fragmentados e distribuídos pela sociedade é porque faltava justamente hegemonia e controle unificado. Porém, mesmo com esta estrutura política, há a passagem da insegurança geral à pequena segurança local – o senhor feudal deveria garantir a segurança dos servos em cada feudo, em troca de parte de seu tempo disponível para o trabalho. É curioso lembrar que, em caso real de guerra, os servos é que deveriam lutar.

Já o Cristianismo, como Filosofia Política, acenava com o poder do bem comum 99 – certamente como forma ideológica que camuflasse todas as contradições e/ou conflitos sociais e políticos. De todo modo, a Igreja tentava impor certos limites ao exercício do poder – até para que não soasse como o uso do poder nu e cru: Non est potestas nisi a Deo (algo como: em última instância, “o poder pertence a Deus”).

De qualquer forma, o poder deveria ser exercido com sabedoria e um mínimo de aquiescência ou de legitimidade dos servos: Regnum non est propter regem, sed rex propter regnum (“o rei existe para o reino” e não o contrário). Deste modo, pode-se dizer que se almejava o consenso: “É nesse elemento de ordem objetiva em que reside a principal garantia das pessoas” (Miranda, 2000, p. 60). É interessante frisar que, mesmo o poder religioso buscava formas de legitimação de seus atos e editos de poder.

A desorganização experimentada no Estado germânico serve como um bom referencial desse período, pois é ilustrativo do que se vivia em termos políticos nesta era, o tempo de florescerem as concepções cristãs e germânicas. A formação histórica do Estado Germânico nos indica a conturbação de forças e poderes que assolavam o Estado medieval. Como bem diz Jellinek: “...a princípio o Estado germânico é uma associação de povos a quem falta a relação constante com um território fixo, o enlace permanente do território com o povo só muito lentamente se levou a cabo em sua história” (2000, p. 307. – tradução livre). Neste sentido, faltava ao Estado Germânico e ao Estado Feudal um enlace entre povo e território, ou seja, o que chamamos de adensamento e de identidade cultural.

A base do poder era móvel, não havia plena identificação entre o Poder Público e o território, bem como ainda se lidava com grande variedade de costumes e de interesses. Não é fácil de se supor, mas a desordem política e a resistência ao poder central produziam inclusive a mobilidade física do Príncipe. Vejamos, novamente com Jellinek (2000), o exemplo da Alemanha:

A residência do Príncipe era algo completamente contingente e independente da organização do Estado. Por conseguinte, faltava-lhe desde o início a centralização. A dificuldade de organização para um povo que se estendeu por um vasto território e carece de um centro, é ainda maior em uma época em que as comunicações eram rudimentares e predominava a economia agrícola (Jellinek, p. 307).

Além da escassez econômica – que só começou a se modificar com o desenvolvimento da maquinaria e da produção que conduziu à Primeira Revolução Industrial –, o próprio Príncipe ou Rei (enquanto representantes do Poder Público) não fortaleciam a identificação territorial. Diz-se que a ideia de Estado não sobreviveu ao feudalismo, porque o eixo do poder já não passava pelo Estado, estando antes, sobretudo, dirigido às relações mantidas entre Igreja e sociedade. Às vezes, o Estado até se interpunha (ou tentava), mas sempre como intermediário, não como centro destacado de soberania.

No feudalismo, além de ser dissolvida a noção de Estado, ao invés de IMPERIUM (“poder como faculdade soberana de mandar” – e que provém do Estado) passou a vigorar a noção de DOMINIUM (família e propriedade 100: a política migra do geral para as particularidades sociais). Com isso, temos também o que se configura, desde Max Weber, como Estado Patrimonial: o Estado é parte do patrimônio particular dos que detêm o controle do Poder Público – a política é posse privada. É como se o Patrimônio Público se torna-se gradativamente propriedade privada dos mandatários e poderosos que controlam a máquina pública 101.

Por fim, outra vez comparativamente ao Império Romano, há um dualismo na base política e jurídica: “O reino germânico nasce, pois, como um poder limitado; por conseguinte, desde seu início traz consigo um dualismo: o direito do Rei e o direito do povo, dualismo jamais superado na Idade Média 102” (Jellinek, 2000, p. 308). Outros autores encontraram uma fase intermediária entre o feudalismo e a própria unificação do poder, como se terá sob a égide do Estado Moderno. Esta fase intermediária será apelidada de Estado de Cortes.

Estado de Cortes

O Estado de Cortes não foge muito à estrutura fragmentária do poder havida no feudalismo – apenas se coloca numa fase intercalada entre o Estado Feudal esfacelado e o Estado Moderno, dominado pelas Monarquias Absolutas (Estado Absoluto – também indicado como Estado de Polícia).

No nosso caso, o Estado de Cortes não passa de um Estado Estamental, dividido em estamentos 103, na medida em que predominam as mesmas dualidades políticas - tipicamente a oposição entre Rei x estamentos. Nessa estrutura de comando, o Rei tem algum poder de fato (não é somente um mero coadjuvante ou enfeite), mas trata-se de um comando exercido em conjunto. Em suma, no Estado de Cortes, o Rei tem legitimidade e poder, mas só conseguiria governar com o auxílio das cortes: um tipo de Estado dual ou bipartido.

O Estado de Cortes não é mera extensão do feudalismo, porque com certo poder o Rei já não é só marionete, mas também não é soberano porque tinha que negociar em tudo o que realmente fosse importante. Como diz Radbruch, além de lutarem contra o rei, porventura, as Cortes ainda desafiavam os senhores feudais:

... o Estado de Cortes se afigura, contudo, como uma duplicidade de Estados entrelaçados: de um lado o senhor feudal, soberano irrestrito apenas em seu domínio; de outro lado, as Cortes com soberania quase tão irrestrita sobre os pequenos proprietários, cobrando-lhes impostos, julgando-os, chamando-os às armas; reunindo-se em assembleias sem serem convocadas e negociando com o senhor feudal em pé de igualdade, a ele se submetendo apenas à medida que se tenham submetido espontaneamente, atendendo ao chamado às armas por contrato de vassalagem, comprometendo-se a apoio financeiro através de atributos por ele solicitados; provavelmente tratando com potências estrangeiras através de enviados próprios, contrariando a política do senhor feudal. A dupla soberania anárquica do Estado de Cortes conduziu obrigatoriamente a uma luta constante pela soberania única (1999, p. 38).

A principal característica do Estado de Cortes, portanto, é a política de Estado negociada com as cortes. Ainda são características desse Estado de Cortes a existência de direitos fragmentados e estratificados, além de que há representação por estamentos. Isto é, dependendo do estamento a que pertencessem, vigoravam determinados direitos e capacidades sociais e políticas – daí se falar em Estado Estamental. Por isso, vê-se que o Estado de Cortes ainda pode ser chamado de Estado Corporativo, ou seja, a política de interesses está dividida em estamentos. Mas também as corporações (tipicamente relacionadas à produção) iriam disputar seu quinhão ou parcela de poder.

Estado Corporativo

Sob a expressão Estado de Cortes, pode-se ver um Estado que precisa negociar extensamente com as muitas corporações, sejam elas de ofício (de trabalho e de produção), sejam as destinadas à participação política da nobreza 104. No estudo do Estado Corporativo, trata-se da análise da estrutura administrativa do Estado Medieval que permite certa autonomia política, administrativa e jurídica às localidades territoriais. De todo modo, quase que reprisando o que já vimos, o Estado Medieval é um tipo de Estado que se caracterizava especialmente pela atomização do poder e da política. Assim, quando comparado à herança política romana é ainda mais evidente a existência dessas dicotomias no acento do poder:

Onde quer que dominasse a Constituição municipal romana, acentuando-se a substantividade política das cidades, algumas chegam em certas ocasiões, como na Itália, a alcançar uma absoluta independência. Posteriormente, e dotadas de privilégios reais, fundam-se na Alemanha e na França cidades que chegam a conseguir, ao menos parte delas, um caráter de corporações soberanas. Por isto, a divisão dual da natureza do Estado significa por sua vez a atomização do poder público, e toda a história dos Estados da Idade Média é ao mesmo tempo uma história do ensaio para chegar a vencer este desmembramento ou, ao menos, para minorar suas consequências (Jellinek, 2000, p. 309. – tradução livre).

Neste Estado Corporativo, a sociedade aparece claramente dividida em grupos, camadas ou setores sociais (chamados de estamentos) sem que haja possibilidade concreta de mobilidade social. Um exemplo clássico da luta pelo Direito e pela participação vem da Inglaterra, quando os estamentos lutavam contra o Rei, a fim de que este admitisse as garantias individuais (Bill of Rights). Dentre outras garantias, este documento, o Bill of Rights, propugnava pela defesa de alguns direitos individuais. É o caso preciso da liberdade individual, ainda restrita ao comércio, mas que deveria ser assistida juridicamente, agora por meio de um instrumento jurídico chamado Habeas Corpus. Em regra, contudo, temos aqui um Estado que serve à Igreja, que lhe é submisso. Esta tipologia que interpõe o Estado de Cortes entre o feudalismo e o absolutismo, também é partilhada por Bobbio (1987):

À base do critério histórico, a tipologia mais corrente e mais acreditada junto aos historiadores das instituições é a que propõe a seguinte sequência: Estado Feudal, Estado estamental, Estado absoluto, Estado representativo. A configuração de um Estado de estamentos, interposto entre o Estado Feudal e o Estado absoluto, data de Otto von Gierke e Max Weber, e após Weber foi retomada pelos historiadores das instituições sobretudo alemães (p. 114).

Em termos semelhantes ao que já viemos analisando, para Bobbio, o Estado Estamental é um tipo de Estado que não aglutina forças políticas suficientes para controlar os demais setores políticos e religiosos e tampouco as classes sociais dessa época. Portanto, trata-se de uma fase intermediária e que irá desembocar no Estado Moderno – este, absoluto em sua primeira configuração:

Como forma intermediária entre o Estado Feudal e o Estado absoluto, o Estado estamental distingue-se do primeiro por uma gradual institucionalização dos contra-poderes e também pela transformação das relações de pessoa a pessoa, próprias do sistema feudal, em relações entre instituições: de um lado as assembleias de estamento, de outro o rei com seu aparato de funcionários que, onde conseguem se afirmar, dão origem ao Estado burocrático característico da monarquia absoluta. Distingue-se do segundo pela presença de uma contraposição de poderes em contínuo conflito entre si, que o advento da monarquia absoluta tende a suprimir (Bobbio, 1987, p. 115).

A disputa acirrada pelo controle do Estado, da burocracia, do exército, das instituições regulatórias só se dará, contudo, na passagem ao Estado Moderno. De certo modo, esta também será uma fase apenas iniciada pelo absolutismo, uma vez que era necessária a divisão dos poderes 105 para que o perfil institucional do Estado Moderno estivesse mais bem definido. O perfil definido é aquele que aponta para um Estado unitário, fortalecido e reconhecido por todos. O Estado Feudal, todavia, ainda será conhecido por seu pluralismo jurídico porque, não havendo centralização política, também não há uniformização jurídica:

Dizendo que a sociedade medieval tinha um caráter pluralista, queremos afirmar que o direito segundo o qual estava regulada originava-se de diferentes fontes de produção científica, e estava organizado em diversos ordenamentos jurídicos. No que diz respeito às fontes, operavam na sociedade medieval ao mesmo tempo, ainda que com diferente eficácia, os vários fatos ou atos normativos que, numa teoria geral das fontes, são considerados como possíveis fatos constitutivos de normatividade jurídica, quer dizer o costume (direito consuetudinário), a vontade da classe política que detém o poder supremo (direito legislativo), a tradição doutrinária (direito científico), a atividade das cortes de justiça (direito jurisprudencial) (Bobbio, 1992, p. 11).

Esta foi, sem dúvida, uma intensa e extensa experiência do chamado pluralismo jurídico, pois tivemos, como fontes do Direito, os costumes, a política, a religião e o Judiciário, o que, certamente, não convinha a quem mantivesse aspirações de centralizar o poder e o Estado. Além disso, pode-se dizer que o pluralismo jurídico e político medieval era capaz de produzir interpretações variadas, múltiplas do Direito. Ora os clérigos buscando o Direito a partir da Moral e da Teologia Oficial, ora os senhores feudais (muitas vezes em litígio com o Rei) que viam no Direito a mera extensão de seus próprios hábitos pessoais, familiares ou nobiliárquicos. Ou os próprios servos que tinham sua noção de Direito extraída da cultura, das tradições (muitas vezes tradicionalismo, como no caso do senhor feudal que tinha direitos sobre a primeira noite das noivas) e/ou dos valores familiares. Então, tanto as fontes quanto as interpretações do Direito eram variadas e isto, é claro, não favorecia a uniformização do poder. Por isso, não é difícil de se perceber que havia imensos conflitos jurídicos com os vários segmentos sociais, políticos e religiosos disputando entre si o controle legal:

Com a autoridade central enfraquecida, as atividades legislativas, judicial e administrativa serão disputadas entre os reis, a Igreja, os senhores, as corporações e explicadas com o recurso a ideias variadas [...] Os poderes militares, administrativos, fiscais e jurisdicionais dos senhores feudais serão explicados pela situação patrimonial, pela posse da terra, regulada pelo direito privado (Sundfeld, 2004, p. 33).

Portanto, a primeira centralização e unificação que se deu a partir daí foi exatamente em relação às fontes jurídicas legítimas – quando o Estado passasse a ser fonte reconhecida do Direito. O Estado será a fonte única do Direito, a fonte jurídica monista. Mas antes vejamos um breve resumo do Estado Medieval que provocou, exatamente, a centralização do Poder Político.

Resumo: Estado Medieval - características

· Fases do Estado Medieval: Feudal – Estamental - Cortes – Corporativo.

· Modo de Produção Feudal:

a) Vassalagem: os proprietários menos poderosos são submetidos.

b) Benefício: contrato entre o senhor feudal e o chefe de família – o servo recebia terras para produzir, mas teria que trabalhar para o senhor feudal.

c) Imunidade: algumas glebas estão isentas da aferição de tributos.

1. Permanente instabilidade institucional: política, econômica e social.

2. Oposição entre poder espiritual e poder temporal.

3. Fragmentação e multiplicação de centros internos do Poder Público: nobres, bispos, universidades, reinos, corporações.

4. Pluralismo Jurídico - base consuetudinária embasada em regalias nobiliárquicas.

5. Relações de dependência pessoal, hierarquia de privilégios.

6. Não está em vigência o IMPERIUM (“poder como faculdade soberana de mandar”: Estado).

7. Vigora a noção de DOMINIUM (família e propriedade – a política migra para o doméstico).

Estado Patrimonial – características

· Hereditariedade, primogenitura e inalienabilidade da propriedade rural.

· Relações de sujeição, domínio, posse.

· Relações de clientelismo:

- Favoritismo - favorecimento pessoal.

- Punição exemplar dos adversários (não há neutralidade).

· A relação jurídica se baseia em privilégios (leis de caráter privado), regalias, imunidades, salvo-condutos.

· Privatização da política – o espaço público cede às pressões do espaço privado. O geral se enfraquece diante do particular.

· Tirania: principatus regius (pais e filhos) - politicus (marido e esposa) - despoticus (senhor e servo).

2ª Parte: estado legal

o direito como dominação ou liberdade?

Veremos agora um acerto de contas com as formas desorganizadas, mas absolutistas que formaram o Antigo Regime.

Direito e Dominação no Estado Legal

Neste momento, o objetivo é relacionar Direito e Política de um ponto de vista mais orgânico e menos formal, destacando alguns momentos históricos, especialmente o século XIX e a afirmação de novos direitos – agora já tendo em pauta a passagem do Estado Legal para o Estado de Direito moderno. O Estado Legal exprimirá o próprio processo histórico de constitucionalização do Poder Político e que Jorge Miranda (2000) denominou de auto-regência do Direito ou do jurídico, frisando que é uma das garantias ou das conquistas trazidas pelo curso do liberalismo: a outra base do Estado Constitucional. As conquistas e as transformações perpetradas pelo liberalismo, na ordem constitucional, serão de duas maneiras ou formas distintas e complementares:

Diretamente: a abolição da escravatura, a transformação do Direito e do processo penais, a progressiva supressão de privilégios de nascimento, a liberdade de imprensa. Indiretamente: a prescrição de princípios que, ainda quando não postos logo em prática, viriam, pela sua própria lógica, numa espécie de auto-regência do Direito, a servir a todas as classes, e não apenas à classe burguesa que começara por os defender em proveito próprio (assim, a partir da liberdade de associação a conquista da liberdade sindical e a partir do princípio da soberania do povo e do sufrágio universal) (Miranda, 2000, p. 89).

Vemos que mesmo o desenvolvimento liberal do Direito permitirá que, em algum momento posterior, outros grupos ou classes sociais façam uso dos principais institutos jurídicos. Não há uma diferenciação substancial quanto à auto-regulação do jurídico, mas é bom dizer que isto não implica em autonomia ou desligamento do jurídico em relação ao político. De todo modo, há a sugestão de que este é o fundamento político em que está assentado o Estado de Direito 106. Miranda ainda irá frisar o seguinte:

É justamente por efeito desta auto-regência do jurídico que até as próprias classes inferiores podem vir a ter interesse na realização do direito estabelecido pelas classes superiores. É esta a razão que nos explica por que, tantas vezes, na luta pelo direito as classes oprimidas se tenham convertido em defensoras da ordem jurídica estabelecida que as classes superiores impuseram sobre elas. É que esse direito, apesar de ser de classe, é sempre direito e, sendo direito, jamais ousará apregoar francamente o interesse da classe dominante. Encobri-lo-á sob a roupagem duma forma jurídica, redundando assim, qualquer que seja o seu conteúdo, em benefício de todos os oprimidos (Miranda, 2000, p. 89).

O Estado Legal, como estrutura político-jurídica posterior à Revolução Francesa, é exemplo de uma dessas fases de inversão, subversão do Direito Posto. Isto é, o mesmo Direito que outrora tinha sido criado para o estrito cumprimento do exercício legal (simples e direto) da dominação de uma classe social sobre outras, agora permite ou deixa em aberto a possibilidade de os oprimidos utilizarem-se daquele mesmo Direito para a sua libertação. O fato é que, em regra, o Direito sempre falará em liberdade e só raramente demonstrará as armas de dominação empregadas. Talvez por isso o mais correto seja dizer que as demais classes e grupos sociais de oprimidos passem a reivindicar e requerer mais exatamente a ideia de direito, esse ideal de justiça, do que propriamente os direitos já instrumentalizados. A dominação produzida pelo Direito será doravante mais ideológica, e não tanto coercitivamente, porque a classe dominante se vê obrigada a maquiar, esconder os reais propósitos da própria dominação econômica.

Essa situação, no entanto, lembra-nos de que essa artimanha de trazer o Direito para si é uma tarefa ou iniciativa que sempre esteve a cargo dos oprimidos – porque o objetivo do Direito se aproxima muito da dominação. Este é o caso preciso de toda a legislação social e trabalhista (os direitos público-subjetivos) que, literalmente, foi arrancada do sistema capitalista sob a intervenção estatal: a fim de que os anéis não fossem embora com os dedos. A própria fonte original dessa legislação, portanto, é a política e não exatamente alguma racionalidade ou objetividade embutida na atividade política legislativa. O que força a conquista do direito é a luta política dos esquecidos pelo direito.

Mas não será só uma política indefinida, ou seja, trata-se sem dúvida de dominação: a soma ou reunião de Estado de Direito, Constituição e burocracia independente resultará no que Max Weber (1979; 1993) denominava de dominação legítima ou dominação racional-legal. É certo que apregoava aqui uma forma de dominação justa, mas é ainda correto dizer que Weber (1979; 1993) não se tenha dedicado a analisar detidamente o Direito como Liberdade, ou a questionar a distância existente entre Direito e Justiça: seu foco será o Direito como Dominação. Aliás, esse é o curso histórico do Estado de Direito que viria a substituir o predecessor Estado Legal.

Nessa mesma linha, devemos recordar que quando Weber define o Estado como o organismo político que detêm o monopólio estatal do uso legítimo da força física, está em destaque a relação interna entre Direito e dominação estatal. Entretanto, naquele ambiente conhecido do Estado Legal, os trabalhadores acabaram agrupados na realidade do chão de fábrica, ou seja, para alimentar a linha de produção foi necessário o deslocamento de milhares de trabalhadores para o interior das fábricas: o que também corresponde à fórmula da consciência social em si, como descrita por Marx 107, além de destacar o necessário exame das Leis de Fábrica. Esse contato levou a que passassem a reconhecer as necessidades mais gerais e coletivas da classe trabalhadora, compartilhando e comparando as dores do mundo do trabalho.

Desse modo, o trabalhador pode ampliar sua consciência individual pela comparação, pelo diálogo, pela verificação dos problemas e mazelas comuns. Assim, de posse dessa consciência social para si, quer dizer, a consciência individual do trabalhador que já perscruta as relações sociais ampliadas pelo trabalho e todas as consequências daí decorrentes, o trabalhador se tornou agente social. (Vai-se, portanto, da consciência individual em si, à consciência social para si). De modo complementar, pode-se dizer que o Estado Legal favoreceu o desenvolvimento da consciência global do trabalho, especialmente quanto ao respeito e ao uso possível do Direito:

O Estado Legal, já mencionado como antecessor do Estado Constitucional e do Estado de Direito, fora concebido como ordem jurídica hierárquica. No vértice da pirâmide hierárquica situava-se a Déclaration de 26 de agosto de 1789 consagrando os “droits naturels et sacrés de l’homme”. Esta Déclaration era, simultaneamente, uma “supraconstituição” e uma “pré-constituição”: supra-constituição porque estabelecia uma disciplina vinculativa para a própria constituição (1791); pré-constituição porque, cronologicamente, precedeu mesmo a primeira lei superior. A constituição situa-se num plano imediatamente inferior à Declaração. A lei ocupa o terceiro lugar na pirâmide hierárquica e, na base, situam-se os atos do executivo de aplicação das leis (Canotilho, s/d, p. 95).

Ressaltamos esse aspecto jurídico do Estado Legal porque no topo do ordenamento estava a Declaração Francesa e ali repousava a declaração de interesses ditos universais e de salvaguarda do direito ao trabalho: o reconhecimento do direito natural e a consciência social de que o mesmo direito deveria ser considerado na prática e coletivamente, visto que o direito ao trabalho é a garantia homogênea e concreta ao processo de hominização. De certo modo, a primazia da lei, império da lei, não poderia se furtar a esta progressiva humanização da legislação social:

O princípio da primazia da lei servia para a submissão ao direito do poder político “sob um duplo ponto de vista”: (1) os cidadãos têm a garantia de que a lei só pode ser editada pelo órgão legislativo, isto é, o órgão representativo da vontade geral (cfr. Déclaration de 1789, artigo 6º); (2) em virtude da sua dignidade – obra dos representantes da Nação – a lei constitui a fonte de direito (Canotilho, s/d, p. 95).

Historicamente, de um modo ou de outro, os oprimidos sempre procuraram avariar os impeditivos factuais à transformação do Estado e da sociedade. E não fosse pela resistência e insistência dos adversários dos vários Estados absolutos, nada teria saído do lugar durante esse tempo todo. Não fosse pela pressão dos que de alguma forma sempre acabavam oprimidos, e o direito do opressor jamais se teria alterado substancialmente, a ponto de agasalhar os direitos e os interesses deles que antes eram simplesmente oprimidos e relegados a um quinto plano da cidadania. Por outro lado, o Estado Legal se mostrava um autêntico herdeiro do processo revolucionário de 1789 e o Estado de Direito (liberal, formal) viria a interromper esse fluxo histórico de reivindicação e de participação popular 108:

A teoria do “Estado de Direito” [...] foi construída em grande parte contra a de “Estado Legal”, o Estado do império da lei herdado da Revolução Francesa, que dava preponderância ao Parlamento e aos eleitos pelo sufrágio universal no sistema político e de elaboração de normas. A partir do começo do século XX a doutrina desejou submeter a lei ao Direito e confiar o Estado de Direito ao controle pelo Judiciário, para evitar os “desbordamentos” dos Legislativos e dos eleitores. Isso porque se confiava mais no juiz do que na norma escrita e no cidadão para controlar o Estado [...] se refere a um período em que movimentos populares – os cidadãos – começavam a gerar o temor da queda do edifício social burguês [...] a teoria do Estado de Direito foi construída, em grande parte, para barrar a possibilidade de extensão do papel dos cidadãos (Dallari, 2003, pp. 195-6).

Daí se conclui que o Estado Legal era mais afeto à participação popular e, portanto, mais social do que o Estado de Direito. Mas, mesmo que o Estado de Direito viesse a ser postado como instrumento conservador de privilégios de classes ou de grupos sociais, a luta pelo Direito passaria a ter uma conotação de isonomia e equidade. Este foi e tem sido o papel e o desenlace extremamente positivos demonstrados pelos princípios da igualdade formal e da legalidade, uma vez que, ao equiparar juridicamente opressores e oprimidos, o Estado e sua lei permitiram – pela primeira vez na história do Direito – que os oprimidos requeressem para si o Estado de Direito, em pé de igualdade, fazendo valer todas as consequências da isonomia, os direitos que antes só serviam ao opressor. Agora em benefício do lado mais fraco, procurando-se equiparar/equilibrar a balança jurídica, política e social.

O Estado Legal, portanto, foi um desses raros momentos em que a soberania legislativa resgatou seus laços, seus elos com a soberania popular, sendo que aí repousara por instantes a força social e jurídica legítima. Pois só assim a soberania popular seria capaz de legitimar a soberania legislativa. Hoje, porém, sabemos que é necessário (urgente) ultrapassar os limites da igualdade formal. Pois, se levada ao pé da letra, a igualdade jurídica acarretaria ainda mais desigualdade, uma vez que se tratam os desiguais, igualmente, sem capacidade de diferenciação em virtude das melhores condições ofertadas a uns do que a outros.

Esta situação é tão clara que a matemática nos auxilia a exemplificar essa questão: imaginemos uma situação hipotética em que o sujeito A receba 100 unidades monetárias por trabalho mensal realizado e que um sujeito B receba somente 10: é fácil constatar que a diferença entre ambos é de 90 unidades. Pois bem, aplicando-se equitativamente a regra do reajuste de 10% aos dois envolvidos, o sujeito A passaria a receber 110 unidades monetárias mensais e o sujeito B apenas 11 unidades. Ou seja, a partir do reajuste, a distância salarial entre ambos chegaria a 99 unidades monetárias. No exemplo, a concentração de renda passou de 90 para 99 unidades salariais.

Enfim, é esta consciência do Direito Justo ou da Justiça Material que ainda nos resta adquirir, a fim de percebermos que só haverá justiça quando se tratar os iguais igualmente, e os desiguais, desigualmente. Essa consciência de justiça material é ausente no formalismo abstrato do Estado de Direito, porque o modelo não fora preparado para recepcionar as medidas sociais de discriminação positiva ou de ação afirmativa.

Por essa via, a igualdade formal, diante da lei, seleciona uma imensa desigualdade no ponto de partida, diante das oportunidades e/ou condições materiais da vida social. De outro modo, a igualdade material ou econômica pressupõe um forte igualitarismo no ponto de partida mas, em compensação, admite uma também substancial desigualdade no ponto de chegada – de acordo com as potencialidades e méritos próprios de cada um.

Por isso, da mesma forma como o Estado Legal rompeu com a estrutura dos privilégios do Ancien Régime, ao Estado de Direito resta romper os diques capitalistas que represam a justiça real. Desse modo, essa limitação burocrática formal do Estado de Direito realmente reforça a validade das críticas de Marx, no Crítica ao Programa de Gotha e nos Manuscritos Econômico-Filosóficos. Como diz Raymond Aron (2003), esta é uma das leituras possíveis do jovem Marx analítico do Direito. Mesmo apropriado pela classe trabalhadora, o Direito tem seus marcos na dominação social de classe, pois que seu objetivo inicial era este e não outro. Esta será a matriz marxiana envolvendo Estado e Direito. Lembremo-nos de que a crítica de Marx ao Estado e ao Direito é uma crítica dirigida ao que poderíamos chamar de Estado de Direito Moderno. Trata-se, em suma, do Estado de Direito que se afirmou com as fundações políticas e institucionais do próprio Estado Moderno.

O Direito Como Limitação à Liberdade Real

Aron (2003) cita literalmente Marx na Crítica ao Programa de Gotha, a fim de destacar que Marx teria percebido os elementos formais de formação do Estado (como enunciado pelas Teorias do Estado), e ainda que fosse em tom mais crítico:

“A ‘sociedade atual’ é a sociedade capitalista existente em todos os países civilizados, mais ou menos livre dos elementos medievais, mais ou menos modificada pela evolução histórica particular parcialmente desenvolvida em cada país. O ‘Estado atual’, pelo contrário, muda com a fronteira (...) O ‘Estado atual’ é uma ficção. “No entanto, os diversos Estados dos diversos países civilizados, não obstante a múltipla diversidade de suas formas, têm todos em comum repousar sobre o terreno da sociedade burguesa moderna, mais ou menos desenvolvida do ponto de vista capitalista. Isso faz com que certas características essenciais lhes sejam comuns. Neste sentido, pode-se falar de ‘Estado atual’ como expressão genérica, em contraste com o do futuro, quando a sociedade burguesa, que hoje é sua raiz, não mais existirá” (Aron, pp. 461-2 – grifos do autor).

Por Estado Atual entende-se a forma possível do Estado, neste momento histórico. Já os elementos do Estado em destaque são de ordem jurídica, administrativa, organizacional, institucional. Outra questão derivada é: saberia a classe popular, proletária, trabalhadora se apropriar desses instrumentos do Estado Burguês para redimensioná-los em seu favor?

Sem dúvida essa é uma questão das mais controversas e que acompanhou toda a história do Socialismo Realmente Existente. Porém, de acordo com um Marx (1989) mais agudo, agora na Contribuição à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, talvez encontremos algum ponto de resposta no processo de surgimento e de formação do Estado Moderno. E a resposta não parece ser muito satisfatória:

A crítica da filosofia alemã do direito e do Estado, que teve a mais lógica, profunda e complexa expressão em Hegel, surge ao mesmo tempo como a análise crítica do Estado moderno e da realidade a ele associada e como a negação definitiva de todas as anteriores formas de consciência na jurisprudência e na política alemã, cuja expressão mais distinta e mais geral, elevada ao nível de ciência, é precisamente a filosofia especulativa do direito. Só a Alemanha poderia produzir a filosofia especulativa do direito – este pensamento extravagante e abstrato acerca do Estado moderno cuja realidade permanece no além (mesmo se este além fica apenas no outro lado do Reno) -, o representante alemão do Estado moderno, pelo contrário, que não toma em linha de conta o homem real, só foi possível porque e na medida em que o próprio Estado moderno não atribui importância ao homem real ou unicamente satisfaz o homem total de maneira ilusória (Marx, 1989, p. 85).

É certo, então, que não teria vez uma Teoria Geral do Estado, pois que, a partir dessa leitura filosófica do Estado, se privilegia por demais uma abstração do Estado e não propriamente o homem real. A leitura do Direito como processo de dominação, portanto, parece ainda mais forte. A condição do Direito que se espraia ao conjunto dos Direitos Humanos, portanto, também não seria diferente e é isso que vemos em muitas passagens da Condição Judaica. Mas tomemos uma como exemplo dessa acidez de Marx (1989): “Constatemos, em primeiro lugar, o fato de que os chamados direitos do homem, enquanto distintos dos direitos do cidadão, constituem apenas os direitos de um membro da sociedade civil, isto é, do homem egoísta, do homem separado dos outros homens e da comunidade” (p. 56).

É claro como o Direito é produto direto do homem egoísta, para satisfazer seus interesses pessoais no tocante ao direito à propriedade. A ideia de que a propriedade é base da soberania do Estado, aliás, principia com Hobbes (1983, p. 110), o clássico pensador político e formulador da síntese do Estado Moderno. No mesmo sentido, no Manifesto do Partido Comunista, Marx tornará explícita a relação entre burguesia e Estado: “O poder político do Estado moderno nada mais é do que um comitê (Ausschuss) para administrar os negócios comuns de toda a classe burguesa” (1993, p. 68). Deste modo, será que as diferenças seriam assim tão sensíveis entre esse tipo de Estado de Direito Moderno (substituto do Estado Legal) descrito por Marx, até o chamado Estado Social, de inspiração popular, no século XX?

Com o Estado Social, já no século XX, esse procedimento de reapropriação do Direito pela classe trabalhadora é ainda mais evidente – porque é um Estado quase-socialista (de inspiração social-socialista, mas radicado na Europa capitalista e no México de economia rural). Aliás, é o protótipo do Estado Capitalista que gera uma legislação específica para os trabalhadores e inicia a compreensão coletiva do Direito. Metaforicamente, é como se o Estado mudasse de lado ou, talvez, estivesse de cabeça para baixo. Essa mesma situação irá ocorrer no transcurso do Estado Democrático, em meados do século XX e, posteriormente, com o chamado Estado Democrático de Direito, em que a figura do Estado, paulatinamente, vai se distanciando desse recorte ideológico que se mitifica no binômio Estado-coerção. A Comuna de Paris, então, é uma fase ainda mais acirrada ou prelúdio popular do Estado Social.

Outra coisa é saber se o povo será capaz de tomar para si a racionalidade jurídica capitalista, nos dias atuais e, se isso acontecesse, se seria uma espécie de reinvenção do Estado e do Direito. Ou seja, trata-se de revelar esse Direito que se presta à dominação, à opressão, à mera coerção, para não mais se relevar essa condição de injustiça e pobreza jurídica. Para que o Direito não sirva só aos ricos, é preciso fortificar o socialismo jurídico presente no Princípio da Justiça Social e que forma o eixo central do Estado Democrático de Direito Social.

Atualização do debate

Dois grandes julgamentos seguidos trazem à tona a história das “penas duras”. A pena de antecipação da morte, bem como as penas cruéis e degradantes são proibidas constitucionalmente no Brasil. Nenhum projeto de emenda constitucional ganhará êxito porque o direito à vida, como direito fundamental, garante que essas penas sejam afastadas do cotidiano jurídico nacional. Mas, o que garantiria que as próprias cláusulas pétreas são sofreriam mudanças em sua substância a fim de que essas garantias fossem removidas e, em seu lugar, fossem incluídas as tais penas duras e finalizadoras?

Ao contrário do que se debate em termos de impedimentos legais a essas mudanças profundas na ordem constitucional, o que garante o direito à vida é o nível de profundidade republicana que já alcançamos. Este alicerce republicano, estampado na defesa de um mínimo de moralidade e de racionalidade evolutiva impediria que déssemos um passo atrás. O Brasil já conheceu a pena de morte na época do Império, então, voltar a esta pena seria o equivalente de retroagir. Juridicamente, republicanamente, seria um processo involutivo.

A moral republicana, descontados os debates ideológicos inesgotáveis, pode ser sumariada como uma fase de amadurecimento dos valores públicos em que o Estado não mais se resume a um aplicador da vingança pública. O Estado Republicano não mais se vê como refém da cultura popular, como um microfone aberto ao queixume e ao senso comum. O Estado Republicano é um profundo indutor de cultura pública, modificando o direito e a atividade política. Este pensamento republicano tem um extenso papel modificador da sociedade, movido por um princípio educativo. Este tipo de Estado tem um aporte civilizatório, socializador. Herdeiro do jusnaturalismo, do Iluminismo, o Estado da República é elucidativo, esclarecedor da condição humana. Não é, portanto, um mero extensor das práticas institucionais focadas no controle social.

O Estado repressor – hoje aplica-se a pena de morte, amanhã haverá redução nos níveis de liberdade política, sindical, social – é o oposto da perspectiva propriamente republicana da política. Ao contrário de se estimular a inclusão social por meio do fortalecimento da autonomia, invoca-se a heteronomia a ser impulsionada por esse tipo de Estado Penal. Um Estado Penal que, como se estampa no nome, conhece sua sobrevida na paralisia e no represamento do esclarecimento e da extensão da responsabilidade social. Essas penas, obviamente, não motivam a consciência republicana, não aprofundam o senso de responsabilidade pública, logo, não concorrem para a inclusão social.

Neste sentido, o Estado Penal lastreado nas penas cruéis e degradantes é um Estado de Exceção, uma vez que são penas que seguem a lógica da exclusão social. Ninguém será humanizado com a prática da tortura pública, do mesmo modo que ninguém será incluído pelo banimento social ou pela execução autorizada pelo Estado. As penas definitivas, cruéis são uma degradação da moralidade pública, constituem uma depreciação dos ganhos civilizatórios e evolutivos que a duras penas conseguimos alcançar. Permitir este retrocesso seria pouco inteligente e um desserviço à Humanidade. Essas penas são uma degradação moral do ponto de vista do aprofundamento dos pressupostos do pensamento e das práticas sociais e institucionais republicanas. Desse modo, não é difícil ver a lógica que se abriga na Teoria Jurídica da própria soberania.

Sobre o autor
Vinício Carrilho Martinez

Pós-Doutor em Ciência Política e em Direito. Coordenador do Curso de Licenciatura em Pedagogia, da UFSCar. Professor Associado II da Universidade Federal de São Carlos – UFSCar. Departamento de Educação- Ded/CECH. Programa de Pós-Graduação em Ciência, Tecnologia e Sociedade/PPGCTS/UFSCar Head of BRaS Research Group – Constitucional Studies and BRaS Academic Committee Member. Advogado (OAB/108390).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MARTINEZ, Vinício Carrilho. Estado moderno:: características, conceito, elementos de formação, instituições políticas, natureza jurídica, atualidades. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3832, 28 dez. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/26268. Acesso em: 27 dez. 2024.

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