Resumo:O artigo pretende refletir sobre as mudanças ocorridas no Direito e a necessidade de análise de sua função antropológica, possuindo como marco teórico a obra de Alain Supiot, Homo Juridicus. A construção é feita a partir do significado do homem até chegar nos direitos humanos. Sua função antropológica é sustentada com a clara intenção de se opor a qualquer tentativa de racionalização simplificadora que explicaria as disposições jurídicas através de questões de interesse ou de cálculo e que conduziria o direito a mero utensílio de gestão dos recursos humanos e sociais.
Palavras-chave: Direito. Função Antropológica. Contratualização. Globalização. Direitos Humanos.
1. INTRODUÇÃO
O artigo tem por escopo abordar a função antropológica do direito, conforme sustentada por Alain Supiot. Nos tempos atuais, em que a preocupação com os direitos fundamentais e o discurso neoliberal é constantemente suscitada, a reflexão que se propõe, a partir da obra Homo Juridicus, pode fomentar o debate e enriquecer a discussão.
A obra aborda o tema de forma não linear, o que ao mesmo tempo dificulta a sua compreensão, mas também o torna extremamente instigante. Para fins deste artigo e pretendendo uma melhor compreensão, este trabalho foi dividido em três partes: a primeira delas intitulada de crenças fundadoras e o papel do Direito, com a intenção de resgatar a construção do ser humano como ‘imago Dei’, a inserção da ordem econômica na Sociedade e as nítidas mudanças atribuídas ao Direito; De acordo com Supiot, a dogmática jurídica seria a forma ocidental de vincular os homens, instaurar a justiça e submetê-los ao império da razão, em outras palavras, converter em homem jurídico a cada um de nós seria um modo que o Ocidente encontrou de unir as dimensões biológicas e simbólicas que constituem o ser humano.
O Homem vem ao mundo e descobre seu significado, o significado de um mundo já existente que lhe atribui um sentido. Passa então a se envolver na Sociedade para tornar-se racional. Antes mesmo de aprender a falar, o Direito já o terá transformado em sujeito de Direito. Portanto, o homem não nasce racional, se torna racional ao conviver com outros homens, razão pela qual se pode afirmar que cada Sociedade institui a razão ao seu modo.
Nessa linha de pensamento, a lei e o contrato representariam apenas uma maneira entre outras de vincular os seres humanos. Por isto, a defesa da necessidade antropológica do Direito. Negá-la em nome da biologia, da política ou da economia, foi o ponto comum de todos os projetos totalitários, relembra o autor, razão pela qual denuncia uma atual tentativa de redução do homem a um ser biológico ou mental, que viria acompanhada pela dinâmica do cálculo trazida pelo capitalismo e pela ciência moderna. Toda essa construção é baseada no fato do homem Ocidental ter sido criado à imagem de Deus. Com isto, o segundo tópico, trabalha as metamorfoses do Estado e a dinâmica da contratualização, visando demonstrar como as leis do mercado se fazem presentes em toda dinâmica social. A ideologia econômica que se instala, aspira ao atendimento dos interesses do mercado, tornando o indivíduo um mero ser de cálculo. O movimento da Law and Economics que vem ganhando espaço mundo afora, estaria buscando reduzir a sociedade a suma de suas utilidades individuais. De acordo com esta concepção, o Estado, criado pelo Ocidente como terceiro garante perdeu a sua finalidade, já que o fenômeno da mundialização impõe a livre circulação de bens. Neste ponto, é invocada a contratualização, para demonstrar que a globalização e suas pretensões unificadoras somente são possíveis pela horizontalização das relações.
Por fim, é abordado o tema dos direitos humanos e o projeto ocidental de dominação do resto do mundo, destacando o alerta de que pensar a globalização como um processo de anulação de diferenças e da uniformização de crenças pode conduzir a um caminho sem volta. Por isto, a importância de recolocar o Direito no lugar de técnica de humanização, com a interpretação dos direitos do homem aberta para todos os povos, sem que os valores ocidentais possam prevalecer em detrimento das demais culturas.
2. As crenças fundadoras e o papel do Direito
Antes de mais nada, é preciso salientar que a maneira de ver o mundo contemporâneo, iniciou com o período conhecido como Modernidade[1], instituidor do império da razão, por volta do século XVII, marcado pelo desaparecimento de Deus do cenário institucional.
Os períodos medieval e moderno apesar de interligados cronologicamente, sendo este o período imediatamente posterior daquele, são marcados por uma consagrada descontinuidade de soluções que tem origens em fundamentos antropológicos diferentes.[2]
Em ambos existia o Direito, como se pode ler das obras de Hobbes, Locke, Kant, Rousseau. No primeiro estágio existia a lei natural, a lei divina, que, posteriormente, passou a ser criação dos próprios homens. Para Grossi, embora ambas as civilizações tenham consagrado a lei, no medievo, a “dimensão jurídica circulava constantemente nas veias do organismo medieval, contrastando a atitude de completa instrumentalização que domina o moderno”, em outras palavras, enquanto para o primeiro era considerado como regra social consuetudinária, para o segundo, é um instrumento institucionalizado, habilitado nas mãos do poder político.
Para a civilização jurídica medieval, o direito era uma realidade ôntica, “pertencente a uma ordem objetiva, estava no interior da natureza das coisas onde podia-se e devia-se descobri-lo e lê-lo”[3], surgiu e transformou-se fora das espirais do poder público. Já o modelo atual, evoca um tempo que dominado pelo desmantelamento de antigas mitificações, enraizadas nos costumes, o abandono das referências às leis divinas e naturais foi responsável por introduzir a razão, as leis da ciência e, com elas, a vinculação do direito ao poder.
Neste contexto, houve a reconstrução do próprio homem que se tornou um fim em si mesmo, independente de qualquer raiz vinculada à religião. Aliás, a concepção do ser humano no Ocidente, é a do “imago Dei, do homem concebido à imagem de Deus”[4], assim a sua dignidade procede de seu Criador, partilhando-a com todos os outros homens.
Surgem, portanto, na visão de Supiot, três pilares da humanidade: a individualidade, a subjetividade e a personalidade. Como indivíduo é ser único, diferente de todos os outros; como sujeito é soberano, nasce livre e dotado de razão; como pessoa adquire personalidade jurídica ao nascer, com a atribuição de vários direitos. Essa definição supõe a existência de uma referência última que simbolize o lugar antes ocupado por Deus e que garanta os direitos agora positivados, dito de outra forma, a referência divina desaparece para dar lugar a outra instância que garanta a sua identidade e que sirva de símbolo de proibição de tratá-lo como coisa. Este lugar passa a ser ocupado pelo Estado.[5]
A personalidade, portanto, não é um dado biológico mas uma construção dogmática, a unidade de corpo e alma que obriga a reconhecer a fronteira entre pessoa e coisa e que permite a cada homem ter garantida a dignidade humana. Essa garantia deve ser assegurada pelo Estado.
Ocorre que, por volta do Século XX, houve uma perda da fé no Ocidente em suas categorias fundadoras. A tentativa de redução do homem a um ser biológico, conduz aos dogmas da ciência fetichizada, “em que a crença na dignidade do homem é relegada à esfera privada ao lado das religiões, para deixar lugar na esfera pública apenas para o “realismo” da luta pela vida”. [6]
Começam então a ser inseridas as ideias da ordem econômica e social, conduzindo a uma ideologia de não-limite. Segundo essa filosofia, a lei não é tida como garantia de estado das pessoas, mas uma coerção da qual é preciso libertar-se.
Nessa linha, importa frisar o papel desempenhado pela lei e pelo Direito[7]. A lei não é uma criação dos juristas, porquanto já existiam a ideia de ordem natural e divina, antes de ter sido juridicizada, já o direito foi criado juntamente com a figura do Estado.
Em Mostesquieu, extrai-se que “as leis, no significado mais extenso, são as relações necessárias que derivam da natureza das coisas: e nesse sentido todos os seres têm as suas leis,”[8] portanto, a divindade, os animais, o homem. E conclui “a lei em geral é a razão humana, na medida em que governa todos os povos da terra”[9]. Todavia, a criação do sistema de regras a reger a sociedade, regido pelo Direito só ocorreu com a Revolução Francesa, emancipando definitivamente o Estado e a ciência da referência religiosa.
Designado, pois, como um sistema explicativo, Supiot parte para a análise estrutural consistente “em descobrir os sistema de regras que determina de forma subjacente os objetos estudados”.[10]
Nesse passo, a denúncia é feita para mostrar que o paradigma de mercado, assim como a análise estrutural, não presume que os homens sejam conscientes do que os determina.
Sugerindo, portanto, que a confecção das leis se dá propositalmente de maneira incompreensível, aponta como solução efetuar o resgate das leis, dentro de uma visão antropológica, para reconhecer o lugar próprio do Direito na construção de identidades pessoais e social, considerando as particularidades de cada Sociedade.
O Direito se assumiria, assim, como uma técnica de humanização, cumprindo sua função de interposição entre o homem e suas ferramentas, cujo uso seria submetido a proibições específicas que variam de acordo com os riscos que fazem correr.[11]
3. A contratualização e as leis do mercado:
A noção de contrato surgiu com o Direito romano e se alastrou na cultura ocidental, sendo considerado na era de globalização como instrumento fundamental. Na Idade Média, para instituir um regime de livre troca foi preciso tratar o trabalho, a terra e a moeda como se fossem produtos. Criou-se, portanto, mitos, isto é, considerá-los assim é o mesmo que dizer que se transformaram em artefatos jurídicos, pois é o Direito que permite, por exemplo, fazer como se o trabalho fosse uma mercadoria, criando um estatuto que lhe protege, proibindo tratar o trabalhador como uma coisa.[12]
A lógica atual parece inverter-se e olvida-se de que são mitos e, assim, passa-se a confundir e tratar os indivíduos e a natureza como produtos, sem a observância dos valores assegurados pelo arcabouço jurídico.
Desde o advento das Luzes[13], o Estado assumiu a figura de Terceiro garante das trocas, como dito anteriormente, mas vem perdendo seu espaço com a implementação do paradigma contemporâneo do neoliberalismo, em que tudo passa a ser permitido, segundo o parâmetro da eficiência.
Para o jogo econômico, a abertura das fronteiras passa a ser estratégica e possibilita nutrir o que se denomina de pensamento único. O poder normativo e regulatório do Estado transfere-se para atores econômicos mais poderosos.[14]
Seria a construção da ‘Grande Sociedade’, que na visão de Hayek, opõe-se à sociedade fechada. Naquela, prevalece a hierarquia de valores comuns, porque é pluralista, abstrata, permite a cada um perseguir sua própria concepção de vida, onde não há perturbação do jogo econômico, que segue livre.[15] Para Supiot, esse fenômeno é descrito como ‘contratualização da sociedade’, um sintoma da “hibridação entre a lei e o contrato e da reativação das maneiras feudais de tecer o vínculo social”.[16] Assim como ocorreu na construção jurídica do Ocidente, o contrato restabelece agora a sua capacidade de vincular todos os poderes, não só internamente, mas também externamente.
Interessa, neste ponto, traçar um breve apanhado sobre as metamorfoses do Estado, a fim de se poder compreender melhor essa dinâmica da contratualização.
Com a criação do Estado moderno, a grande pretensão era a de abolir os privilégios do feudalismo, permitir à burguesia a ocupação do poder e, com isso, possibilitar o surgimento e desenvolvimento do capitalismo.
O Estado foi criado, já desde logo, consoante os ditames liberais, que, de acordo com Adam Smith, seria a de um estado mínimo, de uma sociedade que funcionaria por si só, já que a economia funcionaria segundo leis naturais[17], recusando qualquer intervenção estatal.[18]
Neste período, chamado de capitalismo liberal, o direito era responsável em regular o mercado e a economia. A função do direito na ordem jurídica burguesa foi exatamente, desde o início, “o de definir as regras do jogo, garantindo a segurança, a previsibilidade, a calculabilidade e a racionalidade no trânsito dos interesses econômicos privados.”[19]
Em razão de vários fatores, como a concentração de capital, a luta de classes e o progresso técnico, os cânones do estado liberal falharam fazendo exsurgir a necessidade de ampliação de atuação do Estado, mormente nos campos da economia e na área social. “A mão visível do direito começava a substituir a mão invisível da economia”.[20]
A construção de uma nova ordem social, consolidou o que se chamou de Estado Social, empenhado em assegurar a paz social, o bem-estar dos cidadãos, condições dignas de trabalho, garantindo educação, saúde, habitação e segurança.
A Constituição de Weimar pode ser apontada como o primeiro e mais importante documento de intervenção do Estado na economia, espalhando-se posteriormente, praticamente por toda a Europa.
Porém, não é demais lembrar de que o ideais do capitalismo permaneceram presentes o tempo todo, tomando novo fôlego com a derrocada do socialismo na antiga União Soviética. Destarte, a discussão do Estado social que entra em crise não só financeira, mas também ideologicamente, traduz o retorno do mercado e a reprivatização das relações sociais.[21]
Surge com força total, então, um novo movimento designado de neoliberal, que nada mais é do que uma nova roupagem para o liberalismo clássico, já que ambos fundamentam-se sob as mesmas prerrogativas, como o individualismo exacerbado, igualdade apenas formal, liberdade extremada, livre concorrência, lógica do lucro.
O grande diferencial parece ser somente que, contemporaneamente, o capitalismo ocorre em escala mundial, com a expansão de grandes conglomerados econômicos que aos poucos foram usurpando a soberania dos Estados-nação[22].
O neoliberalismo acaba fazendo do “Estado um simples instrumento submetido a forças que o superam, sejam as dos mercados financeiros no plano internacional ou dos interesses das categorias no plano interno”[23].
Há um evidente regresso “ao velho mito individualista de que cabe a cada indivíduo (como seu direito e como seu dever) organizar a sua vida de modo a poder assumir, por si só, o risco da existência”.[24]
Com este pensamento, a liberdade passa a ser o mote. “A noção manipulada da liberdade irá permear toda a construção teórica de ordem espontânea via mercado.[25]
Resta nítida, portanto, a ideia da contratualização, que serve para “recusar a lei e a coerção, em proveito da adesão espontânea de uma ordem”, [26] responsável, mais uma vez, por criar indivíduos atomizados, expostos a insegurança e a desestabilização social.
Da dimensão vertical, assumida pela figura do Estado, passa-se a uma dimensão horizontal, em que as relações passam a ser conduzidas segundo a lógica do contrato, em que tudo está liberado[27] ou ao menos parece estar.
Nesse sentido, Zizek denuncia que “somos obrigados não só a obedecer aos senhores, como também agir como se fôssemos livres e iguais, como se não houvesse dominação – o que, é claro, torna a situação ainda mais humilhante”[28].
Está-se a viver a era da governança que, de acordo com Supiot, nada mais é do que uma “técnica de normatização dos comportamentos”, cujo objetivo é “obter dos seres humanos um comportamento espontaneamente conforme com as necessidades da ordem estabelecida”,[29] a ordem dos mercados financeiros.
4. Direitos Humanos:
De tudo que foi dito, é preciso resgatar aqui o homo juridicus, criado pelo positivismo jurídico bem como a preocupação com a sua proteção, que foi consubstanciada na Declaração Universal dos Direitos Humanos[30].
Com a secularização, o homem passou a ocupar o lugar de Deus. Os direitos humanos são, dessa maneira, postulados institucionais. Retira-se a figura do divino e a substitui-se pela do homem. Segundo Salo de Carvalho:
a primeira ferida narcísica da cultura ocidental – o descentramento da Terra operado por Copérnico – indica em realidade, o descentramento do homem e inexoravelmente o questionamento de Deus – se o homem é feito à Sua imagem e semelhança, deve ocupar papel privilegiado na geografia ocidental.[31]
Efetivamente o homem ocupou lugar privilegiado no Ocidente, o que culminou no fato do antropocentrismo ser mais um dos sistemas de crenças com pretensão de caráter universal, terminando por constar de maneira expressa na Declaração dos Direitos Humanos.
Essa pretensão universalista europeia dos Direitos Fundamentais, segundo Wallerstein, adotou como paradigma central a concepção de superioridade de uma cultura sobre a outra.[32] É o que se tenta impor até hoje, todavia, facilitada agora pelo enfraquecimento dos Estados, pela ausência de fronteiras, pela irrupção do fenômeno da globalização.
Neste passo, não é demais fazer um recorte para relembrar de que o Homem dos Direitos Humanos tem todas as características do imago Dei desveladas no homem jurídico ocidental. Este ponto de vista é sustentado por Supiot em sua tríplice visão do homo juridicus. Para o autor, o homem dos direitos humanos é um indivíduo – ser indivisível, partícula elementar de toda a sociedade, ser único, completo e insular, em que a família humana seria uma imensa irmandade, sendo todos iguais -. Enfatiza que “em uma sociedade assim reduzida a uma coleção de indivíduos formalmente iguais, a chave de uma ordem justa não pode, de fato, ser encontrada noutro lugar que não seja a competição”.[33]
Em segundo lugar, o homem dos Direitos Humanos seria também um sujeito soberano, eis que titular de dignidade própria, sendo detentor de soberania individual, revelada pelo voto, “é a base de instituições em que cada qual deve poder agir como senhor”. [34]
E, por último, o homem dos direitos humanos é uma pessoa, que vê em cada uma, um espírito único, um ser para descobrir. Se a Declaração Universal dos Direitos do Homem fez constar a personalidade jurídica, não foi porque ela é imprescindível para os demais direitos, a razão segundo Supiot está alhures:
Sob o império do cientificismo, o próprio Ocidente veio a acreditar que a única realidade do homem era de natureza biológica, e que a personalidade jurídica era, portanto, uma pura técnica de que se podia dispor à vontade. Mas os horrores do nazismo acabavam de mostrar que essa redução do homem ao seu ser biológico redundada em fazer da sociedade um mundo darwiano submetido apenas à lei do mais forte. Foi por isso que a Declaração Universal fez dessa personalidade um objeto de um direito universal e imprescritível.[35]
Retornando ao caráter universal dos direitos, importa salientar que apesar de Bobbio[36] afirmar que a Declaração de 1948, pode ser acolhida como o maior consenso de valores até hoje firmados, não se pode olvidar o colonialismo vigorante naquela época.
Sobre isso, Supiot chama a atenção de que a ideia da lei existente no Ocidente é muito diferente de outras civilizações, além de que, não se pode deixar de lado de que a lei quando não foi simplesmente “imposta por uma potência colonial, foi importada como uma condição necessária ao comércio com o Ocidente, e de modo algum como a expressão de valores humanos ou sociais”.[37]
Neste ponto, cabe invocar Herrera Flores, que com muita propriedade aborda a normatização dos direitos humanos como um jogo de interesses de poder:
Os direitos humanos tem sido o campo de batalha onde os interesses de poder se enfrentam para institucionalizar ‘universalmente’ seus pontos de vista, os meios os fins a conseguir. Por isso, toda classe social em ascensão formula suas pretensões em nome da humanidade, toda ideologia hegemônica pretende justificar os interesses subjacentes sob a forma do universal, e toda cultura dominante exige a aceitação geral de seus pressupostos básicos”.[38]
Esta pretensão de expandir o discurso dos direitos humanos a todas as culturas, tem gerado múltiplas discussões, podendo-se citar pelo menos duas vertentes. A primeira delas seria a dos defensores dos valores universais, que acreditam no poder de humanização da população e na recuperação do Estado social. De outro, estariam os defensores do localismo, que abandonam a ideia da intervenção do Estado, em prol do objetivo de construção de identidades multiculturais.[39]
Herrera Flores admite a universalização dos direitos desde uma visão complexa dos direitos humanos a envolver o diálogo intercultural entre as diferentes concepções sociais.[40]
Wallerstein, praticamente na mesma linha, questiona apenas quais seriam os valores universais, pois estes não seriam dados, mas sim criados pelos homens. Pondera que a criação de referidos valores é um grande legado moral da humanidade. “Mas só poderá concretizar-se quando formos capazes de ir além do ponto de vista ideológico dos fortes e de chegar a uma verdadeira apreciação conjunta (e, portanto, mais próxima de ser global).”[41]
Por sua vez, a proposta de Supiot, a fim de que haja uma chance de prosseguir o debate sobre os valores comuns da humanidade, seria primeiramente apontada para a fuga de qualquer interpretação fundamentalista, que pode se mostrar sob três aspectos distintos: “o messianismo, quando se procura impor ao mundo inteiro uma interpretação literal”; o do comunitarismo, em que os direitos humanos assumir-se-iam como uma “marca de uma superioridade do Ocidente” e se negariam a outras civilizações, “em nome do relativismo cultural, a capacidade de adotá-los; e, por fim, o do cientificismo, “quando a interpretação dos direitos humanos é reportada aos dogmas da biologia ou da economia, que seriam as verdadeiras leis intangíveis do comportamento humano”.[42]
Avançando no projeto, Supiot propugna pela abertura da interpretação dos direitos humanos, passando a considerá-los como um “recurso comum da humanidade, aberto às contribuições de todas as civilizações”. Entende que assim seria possível manter a estrutura do Estado, já que a organização da sociedade internacional já se dá em forma de Estados-nação, além de que respeitaria os ideais de cada nação, sem que o Ocidente se apodere do que lhe interessa e rejeite o resto. [43]
Defende, portanto, uma hermenêutica mais humana e social, um verdadeiro diálogo entre as diferentes culturas, mormente em tempos de globalização econômica, que não será suportada, exceto se for tratada “não como um processo de uniformização dos povos e da cultura, senão como um processo de unificação que se nutre de sua diversidade em lugar de dedicar-se a fazer desaparecê-la”[44].