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O STF e a Responsabilidade Penal da Pessoa Jurídica.

Perdemos a batalha, mas não a guerra

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Agenda 10/01/2014 às 07:45

À luz da doutrina estrangeira e brasileira, não estamos autorizados pela Constituição a processar criminalmente uma pessoa jurídica.

I - A mais recente posição do Supremo Tribunal Federal – Perdemos a batalha

Por maioria de votos, a Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal reconheceu a possibilidade de se processar penalmente uma pessoa jurídica, mesmo não havendo ação penal em curso contra pessoa física com relação ao crime. A decisão determinou o processamento de ação penal contra a Petrobras, por suposta prática de crime ambiental no ano de 2000, no Paraná. Segundo o voto da Ministra Rosa Weber, a decisão do Superior Tribunal de Justiça violou diretamente a Constituição Federal, ao deixar de aplicar um comando expresso, previsto no artigo 225, parágrafo 3º, segundo o qual as condutas lesivas ao meio ambiente sujeitam as pessoas físicas e jurídicas a sanções penais e administrativas. Para a relatora do Recurso Extraordinário, a Constituição não estabelece nenhum condicionamento para a previsão, como fez o Superior Tribunal de Justiça ao prever o processamento simultâneo da empresa e da pessoa física. A Ministra afastou o entendimento do Superior Tribunal de Justiça  segundo o qual a persecução penal de pessoas jurídicas só é possível se estiver caracterizada ação humana individual. Segundo seu voto, nem sempre é o caso de se imputar determinado ato a uma única pessoa física, pois muitas vezes os atos de uma pessoa jurídica podem ser atribuídos a um conjunto de indivíduos. “A dificuldade de identificar o responsável leva à impossibilidade de imposição de sanção por delitos ambientais. Não é necessária a demonstração de coautoria da pessoa física”, afirmou a Ministra, para quem a exigência da presença concomitante da pessoa física e da pessoa jurídica na ação penal esvazia o comando constitucional.A relatora também abordou a alegação de que o legislador ordinário não teria estabelecido por completo os critérios de imputação da pessoa jurídica por crimes ambientais, e que não haveria como simplesmente querer transpor os paradigmas de imputação das pessoas físicas aos entes coletivos. “O mais adequado do ponto de vista da norma constitucional será que doutrina e jurisprudência desenvolvam esses critérios”, sustentou.Ao votar pelo provimento do Recurso Especial, a relatora foi acompanhada pelos Ministros Luís Roberto Barroso e Dias Toffoli. Ficaram vencidos os ministros Marco Aurélio e Luiz Fux.


II – A Pessoa Jurídica

A questão da possibilidade da pessoa jurídica vir a delinquir é um tema penal tormentoso em todo o mundo. Os penalistas desde há muito enfrentam esta matéria que remonta à antiga discussão em torno da natureza da pessoa jurídica, é dizer, se se trata de uma mera ficção ou uma realidade.

Basicamente duas teorias enfrentaram o tema: a teoria da ficção, de tradição romanística, foi defendida, dentre outros, por Savigny, Vareilles-Sommières e, de certa forma, pelo próprio Ihering; já a teoria da realidade teve como grande defensor o jurista alemão Otto Gierke, sendo seguido por autores como Von Tuhr e Zitelmann.

Apesar de modernamente preponderar a teoria segundo a qual a pessoa jurídica não se trata de uma mera ficção (como afirmava Savigny), o certo é que também se aceita amplamente que a realidade da pessoa jurídica é inteiramente diversa da realidade da pessoa física. Como ensina o mestre civilista Washington de Barros Monteiro, “a pessoa jurídica tem assim realidade, não a realidade física (peculiar às ciências naturais), mas a realidade jurídica, ideal, a realidade das instituições jurídicas.”[1] A pessoa jurídica, no dizer de Miguel Reale, “não é algo de físico e de tangível como é o homem, pessoa natural.”[2]


III - A pessoa jurídica e a teoria geral do crime

Mesmo aqueles que se inclinaram pela teoria da realidade nunca aceitaram a possibilidade da pessoa jurídica delinquir, sendo amplamente aceito o apotegma societas delinquere potest.

De fato, a incapacidade penal da pessoa jurídica salta aos olhos quando se estuda a teoria do delito e os seus postulados, dentre os quais o conceito de ação, a culpabilidade e a personalidade da pena, elementos indissociáveis da responsabilização criminal.


IV - A pessoa jurídica e a capacidade de ação

É sabido que nullum crimen sine actione e é evidente que ação é necessariamente uma conduta humana; logo só é possível atribuir a autoria de um crime a quem verdadeiramente pode agir, ou seja, o homem. Neste sentido,

Zaffaroni assevera que “en el derecho penal stricto sensulas personas jurídicas no tienen capacidad de conducta, porque el delito se elabora sobre la base de la conducta humana individual, (...) porque el delito según surge de nuestra ley es una manifestación individual humana.”[3]

Efetivamente a ação, como a define Roxin, é um “comportamento humano relevante no mundo exterior, dominado ou ao menos dominável pela vontade. Efeitos causados por animais ou poderes da natureza não constituem ações em sentido jurídico-penal, o mesmo podendo dizer-se dos atos de uma pessoa jurídica.”[4]

Exatamente por isso, Muñoz Conde ensina que “só a pessoa humana, considerada individualmente, pode ser sujeito de uma ação penalmente relevante.” Para ele, “a capacidade de ação (...) exige a presença de uma vontade, entendida esta como faculdade psíquica da pessoa individual, que não existe na pessoa jurídica, mero ente fictício ao qual o direito atribui capacidade para outros efeitos distintos do penal.”[5]

Afirma Wessels que “o ponto de referência no Direito Penal é a conduta humana ligada às consequências socialmente danosas.” Para este autor, “o homem se diferencia de outras formas de vida pelo fato de que porta em si mesmo uma imagem do mundo estampada por representações de valor e está apto, através de sua potencialidade criadora, à configuração sensível de seu meio.”

Exatamente por isso, “capaz de ação em sentido jurídico-penal é toda pessoa natural independentemente de sua idade ou de seu estado psíquico, portanto também os doentes mentais.” Logo, conclui que “as pessoas jurídicas e associações não são capazes de ação em sentido natural.”[6]

Para Hassemer “o dolo e a culpa são os dois elementos de uma conduta humana, dos quais resulta positivamente a possibilidade de imputação subjetiva.”[7]

O mestre italiano Bettiol, após afirmar que “apenas o homem pode agir no campo penal”, afirma que o “sujeito capaz de ação é apenas o homem, entendido como entidade psico-física, como entidade que pode cumprir uma ação animada por um processo psicológico finalístico, ainda que não passível de reprovação”. 

Este grande jurista italiano, apesar de admitir que “a pessoa jurídica torna-se centro de imputação de atos de vontade expressos pelas pessoas físicas”, afirma que “o Direito Penal não atua com fundamento nestes critérios normativos.” Para ele, “o Direito Penal pressupõe que os seus violadores responsáveis sejam seres inteligentes, livres e sensíveis. Mas a pessoa jurídica é um ser abstrato, que não tem inteligência, nem liberdade, nem sensibilidade, se bem que, por privilégio da lei, seja capaz de prover; não é, portanto sujeito possível de delito. Isto significa que pelo crime praticado responderá em nome próprio a pessoa física, não a pessoa jurídica.”[8]

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Outro jurista italiano, Giulio Battaglini escreveu que “o delito é a violação de norma de comportamento, suscetível de valoração moral. E essa valoração não pode dizer respeito senão à ação humana, pois somente nesta é que se pode encontrar uma vontade moralmente valorável.”[9](Grifo no original).

Gonzalo Rodriguez Mourullo também concorda que “sólo la persona humana puede realizar acciones en sentido jurídico-penal. Acción es únicamente, a estos efectos, el comportamiento dependiente de la voluntad humana”; assim, as pessoas jurídicas são irresponsáveis penalmente, pois “carecen de la voluntad en sentido psicológico que requiere el concepto jurídico-penal de acción.” Diz o jurista espanhol que neste sentido “la capacidad de acción (...) presupone la existência de una voluntad en términos psicológico-naturalísticos, que, por definición, es patrimônio exclusivo de las personas individuales.”[10]

Na doutrina brasileira, prepondera também este entendimento; dentre os autores, destacamos inicialmente o pensamento do Professor René Ariel Dotti:

“O ilícito penal (crime ou contravenção) é fruto exclusivo da conduta humana”, logo “somente a pessoa física pode ser sujeito ativo da infração penal. Apenas o ser humano, nascido de mulher pode ser considerado como autor ou partícipe do crime ou contravenção”; “somente a ação humana, conceituada como a atividade dirigida a um fim, pode ser considerada como suporte causal do delito.”[11]

Há muito, o mestre Aníbal Bruno, depois de afirmar que “sem ação não há crime, e não existe ação quando falta algum dos seus componentes”, complementa que a ação é constituída pelo “comportamento humano”, um “fazer do agente.”[12]

Na mesma linha de pensamento, destacam-se Luiz Régis Prado para quem “falta ao ente coletivo o primeiro elemento do delito: a capacidade de ação ou omissão (típica)”[13]; para Juarez Tavares, “o conceito de conduta está indissoluvelmente ligado às características da vida humana como vida de relação, da qual emergem todos os aspectos da sociabilidade e da individualidade e pela qual o homem se materializa e se realiza, produz, cresce, organiza e adquire, através de repetições e atividades laborais cada vez mais complexas, possibilidade de formular pensamentos abstratos e propor seus respectivos objetivos.”[14](Grifos no original).

Segundo Juarez Cirino dos Santos “é possível concluir que a definição capaz de identificar o traço mais específico e, ao mesmo tempo, a característica mais geral da ação humana, parece ser a definição do modelo final de ação”[15]; e João Mestieri: “a pessoa jurídica não pode ser sujeito ativo por ser incapaz de ação (...). Pelos atos delitivos praticados em nome da sociedade respondem os indivíduos diretamente responsáveis pelos fatos incriminados, e não todos os diretores, como já se pretendeu no Direito Penal Econômico brasileiro.”[16]

Para o saudoso Heleno Cláudio Fragoso a “ação é atividade humana conscientemente dirigida a um fim.”[17]Cezar Roberto Bitencourt aduz que “por ser o crime uma ação humana, somente o ser vivo, nascido de mulher, pode ser autor de crime (...). A conduta (ação ou omissão), pedra angular da Teoria do Crime, é produto exclusivo do homem. A capacidade de ação (...) exige a presença de uma vontade, entendida como faculdade psíquica da pessoa individual, que somente o ser humano pode ter.”[18]


V - A pessoa jurídica e a culpabilidade

Também é óbvio faltar capacidade de culpabilidade à pessoa jurídica, entendida aquela como um juízo de reprovabilidade, só passível de ser aferido a partir de um comportamento humano. É inadmissível uma pessoa jurídica praticar um fato culpável, pois “la capacidad (...) de culpabilidad (...) presupone la existência de una voluntad en términos psicológico-naturalísticos, que, por definición, es patrimônio exclusivo de las personas individuales.”[19].

Em conferência realizada na Universidade Central da Venezuela, no ano de 1945, Jiménez de Asúa já afirmava que “la culpabilidad es el conocimiento de la significación del hecho”, logo “la persona moral no puede ejecutar ningún hecho con dolo, ni tampoco la pena no tiene la fuerza de intimidar a una persona moral.”[20]

Battaglini, já citado neste trabalho, asseverava que “fora do homem, não se concebe crime: porque somente o homem possui a consciência e a faculdade de querer, exigidas pela responsabilidade moral, em que fundamentalmente se baseia o Direito Penal. E como as pessoas jurídicas só podem realizar atos jurídicos através de seus representantes, para se sustentar sua capacidade para o crime dever-se-ia reconhecer consciência e vontade no sentido supra mencionado, com referência ao ente representado. Mas isso é inadmissível. Assim é que os entes morais são conceitualmente incapazes de delinquir.”[21]

Também para Welzel “toda culpabilidade é culpabilidade de vontade. Somente o que o homem faz com vontade pode ser censurado como culpabilidade. Seus dons e predisposições – tudo o que o homem é em si mesmo – podem ser mais ou menos valiosos (portanto, podem ser também valorizados), mas somente o que disso faz ou como os empregou, em comparação com o que teria podido fazer deles ou como poderia ter empregado, somente isto pode ser computado como ´mérito` ou ser censurado como ´culpabilidade`.”[22]

Para Muñoz Conde “a capacidade (...) de culpabilidade (...) exige a presença de uma vontade, entendida esta como faculdade psíquica da pessoa individual, que não existe na pessoa jurídica, mero ente fictício ao qual o direito atribui capacidade para outros efeitos distintos do penal.”[23]

Também Cezar Bitencourt aduz com propriedade que “a capacidade (...) de culpabilidade exige a presença de uma vontade, entendida como faculdade psíquica da pessoa individual, que somente o ser humano pode ter.”[24]João Mestieri também afirma que “a pessoa jurídica não pode ser sujeito ativo por ser incapaz (...) de culpabilidade.”[25]Idêntico pensamento extrai-se da obra de Régis Prado: “a pessoa jurídica é incapaz de culpabilidade (...). A culpabilidade penal como juízo de censura pessoal pela realização do injusto típico só pode ser endereçada a um indivíduo (culpabilidade da vontade). Como juízo ético-jurídico de reprovação, ou mesmo de motivação normal pela norma, somente pode ter como objeto a conduta humana livre.”[26]

Aliás, Magalhães Noronha já advertia que a responsabilidade penal da pessoa jurídica seria “inconciliável com a culpabilidade, que é psicológico-normativa, o que impede sua atribuição à pessoa jurídica.”[27]


VI - A pessoa jurídica e a pena

A possibilidade de responsabilização penal da pessoa jurídica também afronta as teorias da pena, seja quando se fala em prevenção geral ou especial, ou mesmo quando se trata da ressocialização.

Ademais, há o princípio da personalidade da pena, segundo o qual nenhuma pena passará da pessoa do condenado (art. 5.º, XLV da CF), que impede a aplicação de uma pena a um ente coletivo composto por várias pessoas, muitas delas absolutamente alheias à prática do fato criminoso. Seria mesmo a consagração da odiosa responsabilidade penal objetiva, de triste lembrança.

Valemo-nos mais uma vez do ensinamento de Magalhães Noronha, segundo o qual “a especialização e a individualização da pena, como também a finalidade de reajustamento, tudo isso impraticável com a pessoa jurídica, pois requer a existência do elemento biossociológico.”[28]

Aplicar uma sanção penal a uma corporação significa sancionar penalmente todos os seus membros, ferindo de morte o citado princípio constitucionalmente previsto. Neste sentido, Mourullo afirma que “la capacidad (...) de pena presupone la existência de una voluntad en términos psicológico-naturalísticos, que, por definición, es patrimônio exclusivo de las personas individuales.”[29]

Também Bettiol conclui que “a pessoa jurídica não pode sofrer sob a execução de uma pena, assim como sofre a pessoa física que cometeu o delito”[30], assim como Wessels, para quem “as pessoas jurídicas e associações (...) também não podem ser infligidas com pena criminal.”[31]


VII - A pessoa jurídica e o Direito Administrativo

Para a solução da questão da responsabilidade penal da pessoa jurídica, poderíamos adotar o que o jurista alemão Winfried Hassemer chama de Direito de Intervenção, uma mescla entre o tradicional Direito Penal e o Direito Administrativo; este novo Direito excluiria as sanções tipicamente penais com garantias menores que o Direito Penal tradicional. Segundo ele, “o Direito Penal não serve para resolver os problemas típicos da tutela ambiental”, tendo nesta seara, simplesmente, um “caráter simbólico, cujo verdadeiro préstimo redunda em desobrigar os poderes públicos de perseguirem uma política de proteção do ambiente efetiva”, pelo que sugere “a criação de um novo ramo de direito. Para o efeito, escolhemos a designação de Direito de Intervenção (Interventionsrecht), mas poderemos designá-lo da forma que mais nos aprouver”, cujas principais características seriam: o seu caráter fundamentalmente preventivo, de imputação de responsabilidades coletivas, sanções rigorosas, com impossibilidade de admitir penas de privação de liberdade, atuação global e não casuística, atuação subsidiária do Direito Penal, como, por exemplo, para dar cobertura a determinadas medidas de proteção ambiental e, por fim, a previsão de soluções inovadoras, que garantam a obrigação de minimizar os danos.”[32] Seria, portanto, um Direito sancionador, sem os princípios, regras e postulados do Direito Penal das pessoas físicas. (Grifos no original)

Aliás, desde há muito que os penalistas propõem a aplicação de medidas administrativas quando se está diante de ilícitos cometidos por intermédio de pessoas jurídicas.

Bettiol, por exemplo, afirmava que a pessoa jurídica poderia “ser passível de medidas diversas da pena, de medidas de caráter administrativo (dissolução da sociedade, sanções pecuniárias, etc., mas, em nenhum caso de penas verdadeiras.”[33]

Também

Zaffaroni assevera que as leis “que sancionan a personas jurídicas, (...) no hacen más que conceder facultades administrativas al juez penal, o sea que las sanciones no son penas ni medidas de seguridad, sino consecuencias administrativas de las conductas de los órganos de las personas jurídicas.”[34]

Muñoz Conde defende “medidas civis ou administrativas que possam aplicar-se à pessoa jurídica como tal (dissolução, multa, proibição de exercer determinadas atividades, etc.)”[35], assim como Cerezo Mir ao afirmar que “sólo será posible aplicarles medidas de seguridad de carácter administrativo.”[36]


VIII - A pessoa jurídica e a Constituição Brasileira de 1988

Questão que se mostra tormentosa no caso brasileiro diz respeito a uma suposta autorização constitucional para a responsabilidade penal da pessoa jurídica.

Com efeito, prescreve o art. 173, § 5.º da Constituição Federal que “a lei, sem prejuízo da responsabilidade individual dos dirigentes da pessoa jurídica, estabelecerá a responsabilidade desta, sujeitando-a às punições compatíveis com sua natureza, nos atos praticados contra a ordem econômica e financeira e contra a economia popular.” (grifo nosso)

Por este dispositivo fica bem clara a impossibilidade de responsabilização penal da pessoa jurídica, ao se afirmar que ela ficará sujeita, tão-somente, a punições compatíveis com a sua natureza, ressalvando a possibilidade de responsabilidade individual (que poderá ser de índole penal) dos seus dirigentes.

Já o art. 225, § 3.º estabelece que “as condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados.” (grifo nosso)

Será que neste dispositivo, realmente, a Constituição Federal autorizou a responsabilidade penal da pessoa jurídica? Entendemos que não. Observa-se que a Constituição utilizou dois vocábulos diferentes: conduta, em primeiro lugar, e atividade em segundo lugar. Ora, conduta implica comportamento humano, de uma pessoa física; a atividade é que pode ser atribuída a uma pessoa jurídica. Na sequência refere-se às pessoas físicas em um primeiro momento e, depois, às pessoas jurídicas; por fim, indica sanções penais e depois sanções administrativas.

Com esta redação, fica patente que o legislador constituinte não autorizou atribuir-se sanção penal a pessoas jurídicas, mas apenas sanções administrativas por suas atividades. Às pessoas físicas reservou-se sanção penal, em razão de suas condutas. Resumindo:

1) conduta = pessoa física = sanção penal

2) atividade = pessoa jurídica = sanção administrativa

Neste sentido, trazemos à colação o entendimento de um importante e respeitado constitucionalista brasileiro, J. Cretella Jr. Este autor, comentando o primeiro dos artigos acima transcritos afirma que “o dispositivo é bem claro ao fixar, de início, os dois tipos de responsabilidades, a responsabilidade individual, civil ou criminal, dos dirigentes, pessoas físicas, e a responsabilidade civil, tão-só, da pessoa jurídica.” Para o autor, “não há a menor dúvida, porém, de que a fonte primeira ou remota – o ato gerador, a causa determinante – da responsabilidade, pública ou privada, é sempre, em última análise, o homem. (...) Daí o dizer-se que pessoa e responsabilidade são noções intimamente ligadas. A todo momento a ação (ou a omissão) humana pode empenhar a responsabilidade. ´Agir` ou ´deixar de agir` é traço típico do homem, da pessoa física, que se expande ou se retrai no mundo, influindo estas duas atitudes, ação ou omissão, sobre as relações jurídicas, de modo positivo ou negativo.”[37]

Ainda com Cretella Jr., pode-se afirmar que a responsabilidade penal “abrange uma área muito mais restrita, visto compreender apenas as pessoas físicas, os indivíduos, sabendo-se que as pessoas jurídicas, privadas ou públicas, são inimputáveis”, pois a responsabilidade da empresa “será necessariamente patrimonial, a única compatível com sua natureza de pessoa jurídica, irresponsável penalmente, mas responsável em decorrência dos atos praticados contra a ordem econômica, a ordem financeira e a economia popular.”[38]

Este constitucionalista, valendo-se das lições de Waline, na obra Droit Administratif, 9.ª ed., 1963, p. 786, afirma que “a pessoa jurídica, metafisicamente, não tem vontade; o direito lhe atribui a vontade de uma pessoa física ou de conjunto de pessoas físicas que concordam em representá-la, mas em definitivo sempre uma ou várias pessoas físicas é que cometeram o ato prejudicial imputado à pessoa jurídica.”[39]

Mesmo quando comenta o art. 225, § 3.º da Carta Magna, Cretella Jr. afirma incisivamente que a “Constituição de 1988, em momento algum, aceita o princípio da responsabilidade penal da pessoa jurídica. Por exemplo, o art. 225, § 3.º, colocando, de um lado, a pessoa física, a quem se aplica o termo conduta, de outro lado, a pessoa jurídica, à qual se aplica o vocábulo atividade, cominando aos atos lesivos das primeiras, sanções penais e às atividades das segundas, sanções administrativas e econômicas, independentemente da obrigação de reparação dos danos causados.”[40]

Outro importante constitucionalista brasileiro, Ives Gandra da Silva Martins, após afirmar que “o constituinte não exclui qualquer tipo de pessoa, sendo puníveis tanto as físicas quanto as jurídicas”, adverte que as pessoas jurídicas serão punidas “pecuniariamente, e seus diretores, se tipificada a infração, penalmente.”[41]

Daí entendermos que o art. 3.º da Lei 9.605/98 que prevê a responsabilidade penal da pessoa jurídica não deve ser aplicado, pois, apesar de norma vigente formalmente (porque aprovada pelo Poder Legislativo e promulgada pelo Poder Executivo), é substancialmente inválida, tendo em vista a incompatibilidade material com a Constituição Federal. Relembremos que “não se pode interpretar a Constituição conforme a lei ordinária (gesetzeskonformen Verfassunsinterpretation). O contrário é que se faz.”[42]

Uma coisa é lei vigente, outra é lei válida.

Vejamos a lição de Miguel Reale: “Validade formal ou vigência é, em suma, uma propriedade que diz respeito à competência dos órgãos e aos processos de produção e reconhecimento do Direito no plano normativo.”[43]

Nem toda lei vigente é válida e só a lei válida e que esteja em vigor deve ser observada pelos cidadãos e operadores de Direito.[44] Como afirma Enrique Bacigalupo, “la validez de los textos y de las interpretaciones de los mismos dependerá de su compatibilidad con principios superiores. De esta manera, la interpretación de la ley penal depende de la interpretación de la Constitución.”[45]

A propósito, Ferrajoli:

“Para que una norma exista o esté en vigor es suficiente que satisfaga las condiciones de validez formal, condiciones que hacen referencia a las formas y los procedimientos de acto normativo, así como a la competência del órgano de que emana. Para que sea válida se necesita por el contrario que satisfaga también las condiciones de validez sustancial, que se refieren a su contenido, o sea, a su significado.” Para o autor, “las condiciones sustanciales de la validez, y de manera especial las de la validez constitucional, consisten normalmente en el respeto de valores – como la igualdad, la libertad, las garantias de los derechos de los ciudadanos.”[46](Grifos no original).

Sobre o autor
Rômulo de Andrade Moreira

Procurador-Geral de Justiça Adjunto para Assuntos Jurídicos do Ministério Público do Estado da Bahia. Foi Assessor Especial da Procuradoria Geral de Justiça e Coordenador do Centro de Apoio Operacional das Promotorias Criminais. Ex- Procurador da Fazenda Estadual. Professor de Direito Processual Penal da Universidade Salvador - UNIFACS, na graduação e na pós-graduação (Especialização em Direito Processual Penal e Penal e Direito Público). Pós-graduado, lato sensu, pela Universidade de Salamanca/Espanha (Direito Processual Penal). Especialista em Processo pela Universidade Salvador - UNIFACS (Curso então coordenado pelo Jurista J. J. Calmon de Passos). Membro da Association Internationale de Droit Penal, da Associação Brasileira de Professores de Ciências Penais, do Instituto Brasileiro de Direito Processual e Membro fundador do Instituto Baiano de Direito Processual Penal (atualmente exercendo a função de Secretário). Associado ao Instituto Brasileiro de Ciências Criminais. Integrante, por quatro vezes, de bancas examinadoras de concurso público para ingresso na carreira do Ministério Público do Estado da Bahia. Professor convidado dos cursos de pós-graduação dos Cursos JusPodivm (BA), Praetorium (MG) e IELF (SP). Participante em várias obras coletivas. Palestrante em diversos eventos realizados no Brasil.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MOREIRA, Rômulo Andrade. O STF e a Responsabilidade Penal da Pessoa Jurídica.: Perdemos a batalha, mas não a guerra. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3845, 10 jan. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/26358. Acesso em: 23 dez. 2024.

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