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O princípio constitucional da presunção de inocência, o in dubio pro reo e a aplicação do in dubio pro societate na decisão de pronúncia

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No momento da decisão, na fase de instrução preliminar do procedimento do Júri, o juiz singular tem o dever de aplicar o princípio constitucional da presunção de inocência, bem como a sua derivação, o princípio do in dubio pro reo.

Resumo:O presente artigo propõe uma análise da aplicação do princípio do in dubio pro societate, em detrimento dos preceitos constitucionais da presunção da inocência e do in dubio pro reo nas decisões de pronúncia, em caso de dúvida do julgador acerca da existência do crime e/ou sua autoria. O estudo baseia-se em pesquisa bibliográfica na doutrina, bem como na jurisprudência nacional.

Palavras-chave: Processo Penal. Presunção de Inocência. In Dubio Pro Reo. In Dubio Pro Societate. Pronúncia. Tribunal do Júri.  

Sumário: Introdução. 1. As garantias processuais penais na Constituição. 2. Constitucionalismo de princípios. 3. O princípio da presunção de inocência e o in dubio pro reo. 4. Decisão de pronúncia e in dubio pro societate. Conclusão.


INTRODUÇÃO

O presente artigo trata da aplicação do princípio do in dubio pro societate, em detrimento dos princípios constitucionais da presunção de inocência e do in dubio pro reo, nas decisões de pronúncia, que finalizam a fase de instrução preliminar no procedimento do Tribunal do Júri.

Atualmente, o entendimento majoritário na doutrina e na jurisprudência é que, nos casos de dúvida quanto à existência do crime e/ou de sua autoria, o acusado deve ser pronunciado e julgado pelo Tribunal Popular, eis que este seria o verdadeiro órgão competente para o julgamento da matéria.

No entanto, se faz necessário perscrutar se tal entendimento está de acordo com o Estado Democrático de Direito e com os princípios elevados a garantias fundamentais da Constituição Federal de 1988.

Para que se possa responder a tal indagação, cumpre analisar, primeiramente, a estrutura principiológica da Carta Política, bem como as garantias processuais penais nela previstas. Em um segundo momento, deve-se aferir as diretrizes do princípio da presunção de inocência e do in dubio pro reo, para, finalmente, cotejar os posicionamentos favoráveis e contrários, na doutrina e na jurisprudência, à aplicação do in dubio pro societate nas decisões de pronúncia.


1.      AS GARANTIAS PROCESSUAIS PENAIS NA CONSTITUIÇÃO

A Constituição, é consabido, encontra-se no ápice do ordenamento jurídico, sendo norma hierarquicamente superior às demais, que a ela devem adequar-se. No contexto processual penal, destarte, é defeso à legislação infraconstitucional afastar-se do princípio acusatório e do rol de garantias processuais previstas na Carta Política. Em um Estado que se pretende de Direito e Democrático, a eficácia de qualquer intervenção penal não pode estar atrelada à diminuição das garantias individuais, até porque tais garantias não são favores do Estado: sua observância, ao contrário, é exigência indeclinável[1].

Nesse contexto, depreende-se, assim, que o garantismo penal, formulado pelo mestre Luigi Ferrajoli na obra Direito e Razão, foi elevado à condição de princípio pela ordem constitucional vigente: entendendo-se os direitos como fins e as garantias como meios que a ordem política coloca a disposição dos sujeitos sociais para protegê-los, o garantismo é, assim, um meio pelo qual melhor se pode pretender o exercício de um direito[2].


2.      CONSTITUCIONALISMO DE PRINCÍPIOS

À guisa de introdução, diga-se que, a partir da Segunda Guerra Mundial, passou-se a defender que o direito fosse baseado em princípios, e não apenas em normas legais – isso porque, até aquele conflito, os ordenamentos, em geral, previam apenas regras que o juiz devia aplicar estritamente, sem espaço para interpretação, contexto este que instrumentalizava qualquer governo, bastando a promulgação de leis no sentido desejado pelos governantes. A inserção de princípios no ordenamento possibilita aos magistrados interpretar as leis à luz da sociedade e da Constituição, traduzindo-se em liberdade e independência para o Poder Judiciário e em instrumento de manutenção da separação de poderes, essencial no Estado Democrático de Direito.

A Constituição é composta, assim, por regras e princípios, que, uma vez inseridos no ordenamento jurídico, tornam-se exigíveis e obrigatórios.

A regra é norma que pode ou não pode ser realizada, portanto, quando há validade da regra, é determinado fazer exatamente o que ela exige, nada mais e nada menos[3]. Observe-se, ainda, que, havendo antinomia, uma das regras perde a validade[4].

Os princípios, por sua vez, diferenciam-se das regras por algumas características que lhes são próprias. Possuem eles maior abrangência que as regras, aplicando-se a diversos casos concretos. São, porém, naturalmente conflitantes, e, havendo conflito, um dos princípios prevalece, mas o outro continua existindo e gerando efeitos, embora mitigados.[5] Nesse sentido, os princípios seriam “mandados de otimização[6]”: ordens cujo grau de cumprimento depende das possibilidades reais e jurídicas para sua realização.

 A solução da tensão de mandamentos de otimização é denominada de “lei da colisão” pelo jurista Robert Alexy, segundo o qual não existem relações absolutas de precedência entre princípios, eis que tal somente será determinado de acordo com o caso concreto[7]. Nesse sentido, não existem princípios constitucionais absolutos ou um princípio constitucional absoluto que, em colisão com outros princípios, precederá independentemente da situação posta[8].

Neste ponto, invoca-se o princípio da proporcionalidade, dispondo que a limitação do direito fundamental tem que ser proporcional às razões desta limitação, o que se aprecia por intermédio do exame dos subprincípios adequação, necessidade e proporcionalidade estrita, nesta ordem – sem a ocorrência de qualquer destes subprincípios, haverá inconstitucionalidade. Define-se, assim, no caso concreto, qual princípio deverá prevalecer[9].

Por esta razão, no sistema constitucional brasileiro, os direitos e garantias individuais não se revestem de caráter absoluto: razões de relevante interesse público ou exigências derivadas do princípio de convivência das liberdades legitimam, ainda que excepcionalmente, a adoção, por parte dos órgãos estatais, de medidas restritivas das prerrogativas individuais ou coletivas, desde que respeitados os termos estabelecidos pela própria Constituição. Nesse sentido, considerou o Supremo Tribunal Federal que o

“estatuto constitucional das liberdades públicas, ao delinear o regime jurídico a que estas estão sujeitas – e considerado o substrato ético que as informa – permite que sobre elas incidam limitações de ordem jurídica, destinadas, de um lado, a proteger a integridade do interesse social e, de outro, a assegurar a coexistência harmoniosa das liberdades, pois nenhum direito ou garantia pode ser exercido em detrimento da ordem pública ou com desrespeito aos direitos e garantias de terceiros[10].”


3. O PRINCÍPIO DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA E O IN DUBIO PRO REO

Ainda que não haja previsão expressa a esse respeito no texto constitucional, percebe-se que o sistema processual penal acusatório é adotado no processo penal brasileiro, uma vez que sua utilização decorre da interpretação sistemática da Constituição[11].

Entende-se por sistema penal acusatório aquele no qual o juiz é um sujeito passivo rigidamente separado das partes, existe paridade no debate entre a acusação e defesa, sendo que o ônus probatório compete, exclusivamente, à acusação, e, no final, é solucionado pelo julgador com base em sua livre convicção[12].

A adoção, pelo Texto Magno, do sistema penal acusatório em processo penal é evidenciada pela consagração do princípio da presunção de inocência, o qual, com as consequências que lhe são inerentes, consiste em fundamento sistemático e estrutural do processo acusatório, base de um modelo processual penal que tenha como objetivo respeitar a dignidade e os direitos essenciais da pessoa humana[13].

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Nesse diapasão, conforme refere o Prof. Aury Lopes Jr., a presunção da inocência trata-se de “princípio reitor do processo penal e, em última análise, podemos verificar a qualidade de um sistema processual através do seu nível de observância (eficácia)”[14].

O mestre italiano Luigi Ferrajoli, por sua vez, menciona que a presunção de inocência é um princípio fundamental de civilidade, fruto de uma opção garantista a favor da tutela da imunidade dos inocentes, mesmo que isto acarrete na impunidade de algum culpado, pois, ao corpo social, basta que os culpados sejam geralmente punidos, sob o prisma de que todos os inocentes, sem exceção, estejam a salvo de uma condenação equivocada[15].

Salienta-se, contudo, que tal princípio já constava na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão promulgada em 1789, que em seu artigo nono estabelecia: “Todo acusado é considerado inocente até ser declarado culpado”.

Posteriormente, a Declaração Universal dos Direitos Humanos promulgada pela Organização das Nações Unidas, em 1948, também assegurou tal garantia ao referir que:

“Art. XI. Toda pessoa acusada de um ato delituoso tem o direito de ser presumida inocente, até que a culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei, em julgamento público, no qual lhe tenham sido asseguradas todas as garantias necessárias à sua defesa.”

Já na atual Constituição da República Federativa do Brasil, assim está insculpido o princípio:

“Art. 5 º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

(...)

LVII – ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória;”

Tal dispositivo assegura ao acusado, ou mesmo indiciado, o direito de ser considerado inocente até que sentença penal condenatória venha a transitar formalmente em julgado, sobrevindo, então, a coisa julgada de autoridade relativa[16], servindo como um fundamental postulado de segurança jurídica diante dos poderosos tentáculos do Estado Leviathan[17].

Além disso, o referido princípio requer que o julgador mantenha uma posição negativa em relação ao acusado, e, ainda, uma postura positiva, na medida em que não o considere culpado, mas, principalmente, trate-o efetivamente como inocente[18].

Se ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória, como dispõe o inciso LVII do art. 5º, é de rigor que, em caso de dúvida, a decisão seja dada em prol do acusado, pois um juízo condenatório deve ser baseado em um lastro mínimo de certeza.

Nesse diapasão, assevera o e. Supremo Tribunal Federal:

“O postulado constitucional da não culpabilidade impede que o Estado trate, como se culpado fosse, aquele que ainda não sofreu condenação penal irrecorrível. A prerrogativa jurídica da liberdade – que possui extração constitucional (CF, art. 5º, LXI e LXV) – não pode ser ofendida por interpretações doutrinárias ou jurisprudenciais, que, fundadas em preocupante discurso de conteúdo autoritário, culminam por consagrar, paradoxalmente, em detrimento de direitos e garantias fundamentais proclamados pela Constituição da República, a ideologia da lei e da ordem. Mesmo que se trate de pessoa acusada da suposta prática de crime hediondo, e até que sobrevenha sentença penal condenatória irrecorrível, não se revela possível – por efeito de insuperável vedação constitucional (CF, art. 5º, LVII) – presumir-lhe a culpabilidade. Ninguém pode ser tratado como culpado, qualquer que seja a natureza do ilícito penal cuja prática lhe tenha sido atribuída, sem que exista, a esse respeito, decisão judicial condenatória transitada em julgado. O princípio constitucional da não culpabilidade, em nosso sistema jurídico, consagra uma regra de tratamento que impede o Poder Público de agir e de se comportar, em relação ao suspeito, ao indiciado, ao denunciado ou ao réu, como se estes já houvessem sido condenados, definitivamente, por sentença do Poder Judiciário. Precedentes[19].”

Vislumbram-se, então, duas regras, em relação ao acusado, decorrentes do princípio da “presunção de inocência”: uma regra de tratamento e outra de fundo probatório[20].

A primeira estabelece que o acusado não pode sofrer qualquer restrição pessoal fundada na possibilidade de condenação[21], ou ainda, na lição de André Nicollit: “Embora recaiam sobre o imputado suspeitas de prática criminosa, no curso do processo deve ele ser tratado como inocente, não podendo ver-se diminuído social, moral nem fisicamente diante de outros cidadãos não sujeitos a um processo”[22].

Já a segunda condiciona que o ônus probatório, em relação ao fato delituoso e à sua autoria, deve recair exclusivamente sobre a acusação, restando à defesa a demonstração de excludentes de ilicitude e culpabilidade, em casos nos quais se façam presentes tais alegações[23].

Desta segunda regra emergente do princípio da presunção de inocência, segundo a qual toca à acusação o inteiro cabimento da carga probatória, origina-se o in dubio pro reo: sendo o acusado presumivelmente inocente e cabendo o ônus probatório ao acusador, é necessário, para a imposição de uma sentença condenatória, que se prove, além de qualquer dúvida razoável, a culpa do acusado. Subsistindo dúvida, tem-se que a acusação não se desincumbiu do ônus que lhe cabe, restando inafastável a absolvição do réu, já que, sem demonstração cabal de sua culpa, prevalece a inocência presumida. Nesta acepção, pode-se dizer que a presunção de inocência confunde-se com o in dubio pro reo[24].

Correlato processual do princípio da presunção de inocência, insculpido na fórmula nulla poena sine culpa, o princípio in dubio pro reo busca garantir que, sem provas suficientes dos elementos, tanto subjetivos quanto objetivos, do fato típico e ilícito, não seja possível a aplicação de pena. A insuficiência da prova equivale à subsistência de uma dúvida positiva e invencível sobre a existência ou inexistência de determinado fato ou de sua autoria. Dá-se, então, como não provado o fato desfavorável ao arguido, e, vedado o non liquet em nosso ordenamento, é indicado ao juiz que valore a favor do acusado a prova dúbia[25].

Note-se que o in dubio pro reo tem incidência no momento do julgamento pelo magistrado, quando existir uma dúvida em relação à existência do fato e/ou quanto à autoria, enquanto a presunção de inocência atua durante todo o curso do processo [26].

No juízo singular, a condenação do acusado pressupõe a certeza ou convicção do juiz, que é “a crença de haver se apoderado da verdade”. Assim, realizadas ou colacionadas todas as provas possíveis, se ainda persistir a dúvida no espírito do julgador, não há outra solução senão aplicar o princípio in dubio pro reo (art. 386, inciso VI, do Código de Processo Penal), sob pena de engrossar-se o lamentável rol de erros judiciários, que tristes conseqüências acarretam no mundo inteiro[27].

Nesse sentido, um Estado Democrático de Direito que adote um processo penal acusatório tem, como seu consectário necessário, o in dubio pro reo[28].

A justificação do in dubio pro reo varia na doutrina, mas é possível identificar, como linha de fundo, uma idéia que percorre o pensamento ético-jurídico da humanidade, ainda que muitas vezes sem repercussões práticas no decorrer da história processual penal: é preferível absolver um culpado a condenar um inocente[29].


4. DECISÃO DE PRONÚNCIA E IN DUBIO PRO SOCIETATE

Malgrado os princípios acima mencionados estarem insculpidos no texto da Constituição Federal, muitas vezes não são aplicados pelos julgadores, e um dos momentos em que tal se verifica com mais intensidade é aquele da decisão do judicium acusationis[30] no procedimento relativo ao Tribunal do Júri.

Com efeito, o entendimento majoritário na doutrina e na jurisprudência é que nessa fase o julgador deve se orientar pelo princípio do in dubio pro societate: subsistindo dúvida em relação à existência do fato e da autoria, deveria o magistrado pronunciar o réu, a fim de que seu julgamento seja realizado pelo Tribunal Popular, decisão esta que seria condizente com os interesses da sociedade.

Contudo, a “regra” que impõe, havendo dúvida acerca da autoria e da materialidade, decisão em favor dos “interesses da sociedade” serve ao discurso de um sistema penal inquisitório, pois fazer com que uma pessoa sofra todos os inconvenientes de ter contra si um processo penal relativo a crime grave, em relação ao qual não existam provas contundentes de sua participação ou mesmo da existência do delito, é posição que não se coaduna, evidentemente, com o princípio acusatório e com os ditames constitucionais – pelo contrário, revelam-se nessa interpretação  reminiscências da orientação de reconhecido viés autoritário anteriormente esposada pela Lei Adjetiva Penal, inspirada na legislação penal italiana produzida durante o regime fascista.

Filiam-se a esta linha de pensamento, por exemplo, Norberto Avena, o qual refere que “neste momento processual, vigora o princípio in dubio pro societate, vale dizer, qualquer dúvida quanto à ocorrência das situações mencionadas deverá importar em pronúncia[31]” e, também, Hidejalma Muccio, que menciona:

“na pronúncia vige o princípio do in dúbio pro societate (na dúvida, decide-se a favor da sociedade) e não o do in dúbio pro reo (na dúvida, decide-se a favor do réu). Havendo dúvida acerca da autoria do crime, a pronúncia é de rigor, possibilitando que o juiz natural tome conhecimento e decida a causa[32].”

No mesmo diapasão têm decidido nossa Corte Suprema e o Superior Tribunal de Justiça em relação à matéria, conforme ementas abaixo:

“Penal. Processual Penal. Procedimento dos crimes da competência do Júri. Iudicium acusationis. In dubio pro societate. Sentença de pronúncia. Instrução probatória. Juízo competente para julgar os crimes dolosos contra a vida. Presunção de inocência. Precedentes da Suprema Corte. 1. No procedimento dos crimes de competência do Tribunal do Júri, a decisão judicial proferida ao fim da fase de instrução deve estar fundada no exame das provas presentes nos autos. 2. Para a prolação da sentença de pronúncia, não se exige um acervo probatório capaz de subsidiar um juízo de certeza a respeito da autoria do crime. Exige-se prova da materialidade do delito, mas basta, nos termos do artigo 408 do Código de Processo Penal, que haja indícios de sua autoria. 3. A aplicação do brocardo in dubio pro societate, pautada nesse juízo de probabilidade da autoria, destina-se, em última análise, a preservar a competência constitucionalmente reservada ao Tribunal do Júri. 4. Considerando, portanto, que a sentença de pronúncia submete a causa ao seu Juiz natural e pressupõe, necessariamente, a valoração dos elementos de prova dos autos, não há como sustentar que o aforismo in dubio pro societate consubstancie violação do princípio da presunção de inocência. 5. A ofensa que se alega aos artigos 5º, incisos XXXV e LIV, e 93, inciso IX, da Constituição Federal (princípios da inafastabilidade da jurisdição, do devido processo legal e da motivação das decisões judiciais) se existisse, seria reflexa ou indireta e, por isso, não tem passagem no recurso extraordinário. 6. A alegação de que a prova testemunhal teria sido cooptada pela assistência da acusação esbarra na Súmula nº 279/STF. 7. Recurso extraordinário a que se nega provimento[33].” (grifei)

“AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO DE INSTRUMENTO. PENAL. CRIME DE TENTATIVA DE HOMICÍDIO. SUPOSTA VIOLAÇÃO AO ART. 155 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL. INEXISTÊNCIA. POSSIBILIDADE DE PROVAS COLHIDAS NO INQUÉRITO POLICIAL AUXILIAREM NA FUNDAMENTAÇÃO DA DECISÃO DE PRONÚNCIA. EXAME DE MATÉRIA FÁTICO-PROBATÓRIA. DESCABIMENTO.

INCIDÊNCIA DA SÚMULA N.º 7 DESTE TRIBUNAL. ALEGADA DIVERGÊNCIA JURISPRUDENCIAL. FALTA DE SIMILITUDE FÁTICA ENTRE OS JULGADOS RECORRIDO E PARADIGMA. AGRAVO DESPROVIDO.

1. A teor do disposto no art. 408, caput, do Código de Processo Penal, na redação conferida pela Lei n.º 5.941, de 22/11/1973, não se faz necessário, na pronúncia, um juízo de certeza a respeito da autoria do crime, mas que o Juiz se convença da existência do delito e de indícios suficientes de que o réu seja o seu autor, por se aplicar, nessa fase, o princípio do in dubio pro societate.

Precedente do Supremo Tribunal Federal.

2. Esta Corte Superior de Justiça já decidiu no sentido da possibilidade de a pronúncia ser fundamentada em provas colhidas no inquérito policial e que não foram rechaçadas na instrução contraditória.

3. A pretensão de impronúncia, por ausência de indícios suficientes de autoria, esbarra no óbice contido no verbete sumular n.º 7 deste Superior Tribunal de Justiça.

4. Quanto à arguida divergência jurisprudencial, não há similitude fática entre os julgados. Com efeito, o aresto paradigma consignou que a decisão de pronúncia não foi minimamente fundamentada, limitando-se a transcrever a denúncia. O decisum hostilizado, por outro lado, fundamentou a pronúncia do Réu após percuciente análise das provas inquisitoriais e judiciais produzidas, não se limitando, por certo, aos termos em que foi relatada a inicial acusatória.

5. Agravo regimental desprovido[34].” (grifei)

Em que pese esse seja o entendimento majoritário na doutrina e na jurisprudência brasileiras, impõe-se rechaçar tal posicionamento, eis que o princípio da presunção de inocência e, por consequência, a regra do in dubio pro reo obrigam o julgador a decidir de acordo com as garantias estabelecidas em nossa Constituição Democrática.

Primeiramente, é imperioso referir que o in dubio pro societate não possui nenhuma base constitucional, conforme destaca o Prof. Aury Lopes Jr. em sua obra[35], referindo, ainda, que:

“Por maior que seja o esforço discursivo em torno da “soberania do júri”, tal princípio não consegue dar conta dessa missão. Não há como aceitar tal expansão da “soberania” a ponto de negar a presunção constitucional de inocência. A soberania diz respeito à competência e limites ao poder de revisar as decisões do júri. Nada tem a ver com carga probatória[36].”

No mesmo sentido é a lição de Paulo Rangel, para quem:

“se há dúvida, é porque o Ministério Público não logrou êxito na acusação que formulou em sua denúncia, sob o aspecto da autoria e materialidade, não sendo admissível que sua falência funcional seja resolvida em desfavor do acusado, mandando-o a júri, onde o sistema que impera, lamentavelmente, é o da íntima convicção[37].”

Cumpre referir que, no momento da pronúncia, o julgador deve estar, necessariamente, convencido da materialidade do fato e da existência de indícios suficientes de autoria ou participação, segundo a inteligência do artigo 413, do Código de Processo Penal.

Dessa forma, havendo dúvida em relação a qualquer um desses elementos, não pode o julgador pronunciar o réu e mandá-lo a julgamento pelo Tribunal Popular com base na – ilógica – regra do in dubio pro societate, pois tem o dever de observar o estado de inocência do acusado, bem como a regra do in dubio pro reo.

Assevera-se inaceitável, em um Estado dito como Democrático e de Direito, que vigore o entendimento segundo o qual mandar um réu a julgamento pelo Tribunal do Júri, onde, como acima referido, impera o sistema da íntima convicção, mesmo havendo dúvida em relação à responsabilidade penal, seja considerado uma decisão a favor da sociedade, eis que a mesma reclama um processo penal consubstanciado nas garantias constitucionais estabelecidas.

Nesse sentido, ainda que o entendimento majoritário da jurisprudência seja no sentido de supremacia do in dubio pro societate sobre o in dubio pro reo nas decisões de pronúncia, verificamos algumas decisões que se opõe ao mencionado brocardo, como, por exemplo, o elucidativo voto de lavra do Desembargador Manuel José Martinez Lucas, do Tribunal de Justiça Rio Grande do Sul, no julgamento da matéria, in verbis:

“Por derradeiro, peço licença aos eminentes colegas para tecer algumas considerações em torno da pronúncia e dos elementos necessários para que seja ela proclamada.

Freqüentemente se diz e se repete, até por comodismo e quase sem pensar, que, nos processos da competência do Tribunal do Júri, qualquer mínima dúvida deve ser dirimida pelos juízes leigos, impondo-se a pronúncia do réu, por aplicação do brocardo in dubio pro societate, vigente nesta fase do processo. Nem se admite que o juiz singular faça um exame mais aprofundado da prova, em relação a qualquer dos aspectos do feito.

Não é isso, data venia, o que se extrai da própria disposição contida no art. 408, caput, do diploma processual penal, nem o que ensina a melhor doutrina e o que proclama a mais refletida jurisprudência.

De fato, o citado dispositivo exige, para a pronúncia, que o juiz esteja convencido da existência do crime e de indícios de que o réu seja o seu autor. Ora, para chegar a tal convencimento, é imprescindível um exame mais acurado da prova da materialidade e da autoria e, se concluir pela inexistência de prova daquela e de indícios suficientes desta, forçosamente deverá impronunciar o acusado.

Então, quanto a esses dois aspectos cruciais do processo, não vige, mesmo na fase da pronúncia, o princípio in dubio pro societate, o qual só tem efetivo cabimento quanto à possível exclusão da antijuridicidade ou da culpabilidade.

Tal ponto de vista é sustentado brilhantemente por Evandro Lins e Silva em artigo intitulado “Sentença de Pronúncia”, com apoio em lições doutrinárias e precedentes jurisprudenciais, alinhando argumentos ponderáveis e concluindo que “quando a dúvida envolve a autoria ou participação no crime impera o princípio in dubio pro reo; se a dúvida é quanto a qualquer excludente ou justificativa a solução é pro societate[38].”

Cabe, ainda, mencionar outra interessante lição trazida no referido artigo escrito por Evandro Lins e Silva, ex-ministro do Supremo Tribunal Federal, acerca do tema:

“é alógico o procedimento penal contra quem tem em seu favor o benefício da dúvida. Quanto mais depressa se resolva essa situação melhor para a própria sociedade de que o réu faz parte. O Juízo de acusação posto diante do Júri há de ter como pressuposto absoluto a prova de existência de um crime contra a vida e indícios suficientes de autoria e participação de alguém[39].”

Note-se que, em uma ordem processual garantista, não há como aceitar o princípio ou regra do in dubio pro societate[40], porquanto, a despeito de o juiz natural nos crimes dolosos contra a vida ser o Júri, sem entrar no mérito quanto às vantagens e desvantagens do julgamento pelo Tribunal Popular, é absolutamente temerário deixar ao livre alvedrio dos jurados a decisão quando, realizada a instrução preliminar, não emergiram provas suficientes de autoria, pois, vigorando naquela corte o sistema da íntima convicção, com o que podem os jurados condenar o réu sem sequer fundamentar o julgado, não se pode deixar de observar que, no mais das vezes, falta aos jurados qualquer capacitação técnica a embasar sua decisão.

Não é por outro motivo que existe a instrução preliminar perante o juiz singular, e não diretamente perante o Tribunal do Júri, cuja finalidade primeira é resguardar o réu provavelmente inocente, é dizer, aquele em relação ao qual inexistam provas suficientemente indicativas de participação em crime doloso contra a vida cuja materialidade esteja provada, do julgamento perante seus pares, já que estes, resguardados pela íntima convicção, podem condenar um inocente à míngua de qualquer fundamentação.

Uma decisão justa de pronúncia, que encaminhe ao Júri apenas aqueles acusados que tenham contra si, evidenciada na instrução preliminar, a probabilidade de ter cometido o delito, é a única alternativa que atende aos princípios insculpidos em nossa Constituição.

Sobre os autores
Juarez Maynart Pereira

Advogado/Especialista em Ciências Penais

Dora Maynart Pereira

Servidora Pública do TRE-BA/ Especialista em Direito Público pelo IDC e em Direito Constitucional pela LFG

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PEREIRA, Juarez Maynart; PEREIRA, Dora Maynart. O princípio constitucional da presunção de inocência, o in dubio pro reo e a aplicação do in dubio pro societate na decisão de pronúncia. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3852, 17 jan. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/26439. Acesso em: 25 nov. 2024.

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