Por que o chamado “rolezinho” causa tanto transtorno? Penso que o problema tem dois lados: conexos, mas distintos. Há um problema histórico/racista: as elites sempre detestaram os pobres, os mulatos, os “morenos”, os trabalhadores, as negras, as lavadeiras, os sem-terra e os sem-teto. Recentemente, apoiados pela ascensão econômica (ainda que muito superficial) e graças às compras de celulares e de acesso às redes de comunicação em massa (internet), os pobres passaram a requerer sua inclusão na modernidade. Pode-se dizer que, tardiamente, os pobres foram às compras; mas, foram.
Vimos um pouco disso nas manifestações que tomaram o país em meados do ano passado. Há muitas diferenças entre um movimento e outro. Lá em 2013, mais organizados, sobretudo nas últimas aparições, havia um conteúdo político-anarquista (os Black Blocs). Se fossem organizados massivamente – no sentido de uma orientação político-ideológica –, seriam o embrião do que na Europa se convencionou chamar de Multidões. A Multidão é um conglomerado urbano reunindo diversos movimentos sociais, populares, sindicais ou de anônimos e de desconectados, em suas singularidades; porém, com um objetivo global, comum.
Nos rolezinhos, são crianças e adolescentes que querem incendiar a praça de alimentação dos shoppings. Por que o shopping? Por que não há outro lugar para o lazer, a cultura, o rolê, a paquera de final de semana (não há para onde irmos nas cidades) e porque é o símbolo da sociedade de consumo. Nas últimas décadas, no Brasil, os pobres passaram a acreditar que poderiam/deveriam participar da festa toda e não esperar de joelhos pelas migalhas. Especialmente os mais pobres passaram a acreditar que estão inseridos (vide o consumo da “linha branca”), porque têm jeans e celular (similares) e mesmo que não encontrem cultura, lazer, educação e saúde. Como acreditam nisso e – em parte – porque adolescentes adoram infringir regras, preferem o anonimato do shopping para badalar.
Todavia, tanto em 2013, quanto nos atuais rolezinhos, não há mobilização como estratégia. Em 2013, metade do movimento estava lá porque a outra metade também tinha ido. Neste rolê de hoje não se trata de nenhum movimento social, nem há consciência do que escrevo aqui, com raríssimas exceções nunca ouviram falar sobre ideologia e ignoram qualquer noção de participação política. Aliás, neste aspecto, são muito parecidos com os manifestantes de 2013: tive alunos que se mobilizaram nas passeatas; porém, quantos sabiam efetivamente o que é uma PEC (Proposta de Emenda Constitucional)?
A outra face do problema é jurídica: o shopping é um espaço privado, de responsabilidade de seus proprietários e, é claro, rege-se pelo Princípio da Propriedade (ainda que sob os cuidados do Código do Consumidor). O shopping é privado, mas de significação pública. É um privado que só se realiza no público. Basta-nos pensar no significado da Praça de Alimentação. Quer dizer que ali deve se encontrar um coletivo de clientes, centenas, milhares de pessoas em um ambiente público (ainda que não seja um “espaço público: espaço comum para a realização da política”). Cada um dos clientes está ali para satisfazer uma necessidade estritamente individual, privada (comer, beber, conversar), mas fará isto em um local público. Isto também, espera-se, deverá gerar uma etiqueta social.
Então, de um lado, há o direito à propriedade e ao trabalho; de outro, o direito de ir e vir, de pobres e de ricos pelo shopping ou em qualquer lugar de convivência pública. A rigor, este entrechoque não atormenta muito, pois a etiqueta racista de séculos de apartheid social sempre serviu de barreira cultural contra os pobres (os mais pobres nem sabiam o que é um shopping até pouco tempo). Contudo, se fosse apenas isto, a exclusão desses jovens seria equiparada juridicamente ao crime de racismo.
Hoje, nos rolezinhos, as dezenas/centenas de jovens avançam o sinal das subclasses, ultrapassam a descrição dos papéis sociais. Então, há algo mais. E o que serve de pretexto para medidas judiciais é a série de roubos, ameaças, intimidação que esses jovens praticam no ambiente público dos shoppings. Os proprietários não se baseiam apenas no direito de propriedade para afastar os “economicamente indesejáveis”, mas sim na possibilidade de ameaça à ordem jurídica democrática e à paz social.
Os pobres são convidados a se retirar do shopping porque não têm poder de compra. Na sociedade capitalista de consumo, quem não compra não barganha com o poder. Nos rolezinhos, os jovens pobres são impedidos de ultrapassar o limite do convívio social. Como nunca tiveram uma educação de verdade e nem cultura (como “esclarecimento do mundo”), pensam que no ambiente público vale tudo, assim como na periferia de suas vidas. Os jovens têm todo o direito de requerer seu ingresso no baile da modernidade, de ir e vir para onde e quando quiserem, mas não podem furar a fila ou atormentar os outros convidados. Os fins são justos, mas os meios são judicialmente reprováveis. O crime social de ontem não justifica a baderna de hoje.