INTRODUÇÃO
O presente estudo é fruto do trabalho que teve como instigação a busca por um método capaz de vencer os atos fraudulentos e abusivos, perpetrados através da pessoa jurídica, no escopo de violar direito patrimonial decorrente de relação familiar.
Para melhor focalizar o tema, se faz indispensável analisar a natureza da pessoa jurídica e os requisitos necessários para sua constituição, o que possibilita uma melhor compreensão da sua capacidade de ser sujeito de direitos e obrigações, da mesma forma que sua utilidade social, econômica e os benefícios e prejuízos que podem acarretar à coletividade.
Por possuírem personalidade jurídica própria e, consequentemente, direitos e obrigações independentes das de seus sócios, as sociedades empresárias gozam de autonomia patrimonial. Em decorrência deste princípio, o patrimônio da pessoa jurídica e o de seus membros são autônomos, vale dizer, a sociedade não responde por dívida dos sócios e vice versa.
Tal atributo outorgado à pessoa jurídica tem o poder de proteger tanto seu patrimônio como o de seus sócios, o que é de suma importância à economia, uma vez que diminui os riscos, aumenta os investimentos e potencializa a garantia de retorno financeiro. Ocorre que, em decorrência da perfídia, a autonomia patrimonial da pessoa jurídica pode ser utilizada como meio para fraudar direitos de terceiros de boa-fé, denotando, desta forma, o mau uso da sociedade empresária para atos lesivos.
Contra tais condutas, tão desonrosas para a ordem jurídica, precisou-se desenvolver mecanismos adequados para coibir a fraude e restituir a parte lesada. Foi com esta necessidade que surgiu, no final do século XIX, na Inglaterra, a disregard doctrine ou teoria da desconsideração da pessoa jurídica, que consiste no afastamento temporário e episódico da autonomia patrimonial da pessoa jurídica sempre que esta for utilizada como meio à fraude e ao abuso de direito.
No final da década de 60, do século passado, a disregard doctrine começou a ser discutida pelos juristas brasileiros que, na ausência de legislação expressa, desenvolveram a teoria da desconsideração da pessoa jurídica a partir da doutrina e da jurisprudência, aplicando-a nas situações onde havia desvio de função da sociedade empresária, as quais, via de regra, depreendia em fraude ou abuso de direito. Esta teoria adentrou no ordenamento jurídico nacional, expressamente, em 1990, com a promulgação da lei n. 8.078. A aplicação da disregard doctrine consiste em ignorar a autonomia da pessoa jurídica, responsabilizando o(s) sócio(s) pelo ato fraudulento cometido em nome daquela.
Destarte, coube dedicar-se à apreciação das teorias que justificam o emprego da disregard doctrine, suas formulações e, principalmente, a controvertida questão que envolve o momento processual adequado de se empregar a desconsideração da pessoa jurídica. Igualmente, foi observado a respeito da aplicação da desconsideração inversa, onde, ao contrário da via ordinária, o propósito é responsabilizar a sociedade por dever do sócio, visto que essa foi utilizada para ocultar a fraude, ou seja, o ato fraudulento também ocorreu de maneira inversa.
A aplicação inversa da disregard doctrine se coaduna com o ponto cêntrico deste trabalho, é esta a forma apropriada de tolher o mau uso da pessoa jurídica nas relações familiares, dado que nestes casos ela é utilizada para encobrir a fraude. Ocorre que, através do irregular exercício da autonomia patrimonial da pessoa jurídica é possível que um dos cônjuges transfira bens pertencentes a sociedade conjugal à sociedade empresária da qual ele é sócio.
Assim, impõe-se necessário uma apreciação especial ao Direito de Família que, por sua vez, passou por diversas modificações desde o Código Civil de 1916 até o advento do Novo Diploma. Inicialmente tinha-se a manifestação do ideal liberal-burguês propulsor da sociedade patrimonialista do início do século XX, a qual tinha a família como objeto impulsionador de riquezas, a mutação dos valores sociais foram recepcionadas por diversas leis extravagantes, atingindo seu ápice na Constituição Federal de 1988 e, posteriormente, no Código de 2002.
Diante de tantas modificações na lei civil, desde 1916, imperioso o exame das principais transformações sociais que refletiram diretamente na constituição e regulamento da família brasileira. Deste modo, revela-se a importância do estudo dos efeitos patrimoniais do casamento (destacando, neste ponto, que a Carta Magna de 1988 elevou a união estável à categoria de entidade familiar) e do instituto do regime de bens, da separação judicial e do divórcio.
Após o enfrentamento dos principais pontos ensejadores de efeitos patrimoniais no Direito de Família passa-se a vislumbrar as hipóteses em que a pessoa jurídica pode ser utilizada como meio para fraudar direito decorrente da relação familiar, o que ocorre, principalmente, no momento da meação e na prestação dos alimentos devidos.
Neste sentido, faz-se mister a compreensão do instituto da meação, a sua relação com a separação judicial, divórcio e união estável, assim como de que forma esta pode restar lesionada devido ao mau uso da pessoa jurídica, oportunidade em que deve ser aplicada a disregard doctrine. Imperioso também, o exame das principais características do direito a alimentos e do dever de prestá-los.
Por fim, inevitável ponderar as possibilidades de aplicação processual da disregard doctrine, as medidas cautelares existentes no ordenamento pátrio e a análise de importantes aspectos peculiares à desconsideração da pessoa jurídica, como a perícia contábil e as cotas sociais.
1 A PESSOA JURÍDICA E A TEORIA DA DISREGARD DOCTRINE
O caráter social dos seres humanos leva-os a se organizarem em grupos com o intuito de atingirem determinados objetivos. Contudo, é essencial que estes grupos tenham personalidade própria para assim poderem praticar atos jurídicos. É com esta necessidade que o direito individualiza esses agrupamentos lhes concedendo personalidade e capacidade jurídica própria, transformando-os em sujeitos de direitos e obrigações. O direito brasileiro conceitua este conjunto de pessoas, que também pode ser composto de uma destinação patrimonial, de pessoa jurídica. Ressalta-se que esta nomenclatura pode sofrer modificações em relação ao direito comparado, como por exemplo, pessoas morais, coletivas, civis, místicas, intelectuais, universais, etc.
“A pessoa jurídica é a unidade de pessoas naturais ou de patrimônios, que visa à consecução de certos fins, reconhecida pela ordem jurídica como sujeito de direitos e obrigações”. (DINIZ, 1996, p. 142).
Caio Mario da Silva Pereira (2004), considerando os benefícios e as facilidades de como uma atividade pode ser desempenhada através de uma pessoa jurídica, bem como o poder econômico que pode ser concentrado em suas mãos, o que é vantajoso e ao mesmo tempo perigoso à sociedade, salienta a importância do cuidado que deve ser dispensado pela doutrina e pelo direito positivo a estes entes.
Para a constituição de uma pessoa jurídica é necessário a presença de três requisitos: a organização de pessoas ou de bens, vale dizer, a vontade humana criadora; a observância das prescrições legais relativas à sua formação, ou seja, essa declaração de vontade deve obedecer a forma determinada por lei; e, a liceidade de seus propósitos ou fins, o que significa que este ente não poderá agir em desconformidade com o direito.
Em relação à natureza jurídica da pessoa jurídica existem vários posicionamentos doutrinários com o propósito de justificar e esclarecer sua existência e a razão da capacidade de direito, neste sentido surgiram diversas teorias que, apesar das discordâncias entre os autores, podem ser classificadas em quatro categorias: teoria da ficção legal e da doutrina; teoria da equiparação; teoria orgânica; e teoria da realidade das instituições jurídicas. (DINIZ, 1996).
A teoria da ficção legal, desenvolvida por Savigny, considera a pessoa jurídica uma mera criação legal, sua existência é explicada como invenção da lei, em raciocínio semelhante segue a teoria da ficção doutrinária, segundo a qual a pessoa jurídica só tem vida na inteligência dos juristas, é uma criação doutrinária. Para as correntes fictícias a aptidão para ser sujeito da relação jurídica é exclusiva do ser humano, tendo a lei ou a doutrina criado, artificialmente e através da mente humana, à propensão da pessoa jurídica de ser sujeito de direitos e obrigações.
A principal crítica às teorias da ficção, o que acarreta a sua não aceitação, é o fato do Estado ser uma pessoa jurídica, e considerá-lo uma ficção é afirmar que o direito que dele emana também o é.
A teoria da equiparação considera a pessoa jurídica como um patrimônio que deve ter o mesmo tratamento jurídico que as pessoas naturais. Esta teoria não pode ser admitida pelo ordenamento jurídico. Em conformidade com Maria Helena Diniz (1996), aceitar tal teoria é concordar que os bens são sujeitos de direitos e obrigações, o que leva a confusão entre pessoas e coisas.
Para a teoria orgânica a pessoa jurídica surge por exigência das forças sociais, é uma realidade sociológica com vida própria, coexiste às pessoas naturais com vontade autônoma e distinta da de seus membros, visando atingir uma finalidade social. Tal teoria não pode ser aceita tendo em vista que os grupos sociais não têm vida própria, esta é exclusiva dos seres humanos, posicionamento contrário a este é o mesmo que aceitar uma criação fictícia.
Caio Mario (2004) afirma que a pessoa jurídica é uma realidade no mundo jurídico, tem em si personalidade e vontade própria, é titular de seus próprios direitos. De acordo com este entendimento não há necessidade de criar artifícios para considerar a capacidade de direitos desses entes, encara-se a natureza da pessoa jurídica como realidade técnica. A própria personalidade humana deriva do direito, ressalta-se, por exemplo, que este já suprimiu seres humanos de personalidade (escravos), assim sendo, não se pode argumentar que essa capacidade e personalidade são fictícias pelo fato de resultarem do direito. Desse modo, evidencia-se a teoria da realidade das instituições jurídicas. Esta teoria é a que mais satisfaz a essência da pessoa jurídica, tendo em vista que a considera como uma realidade jurídica.
Maria Helena Diniz (1996, p.142) afirma que “a personalidade jurídica é um atributo que a ordem jurídica outorga a entes que o merecerem”.
1.1 TEORIA DA DISREGARD DOCTRINE
1.1.1 Noções Gerais
As sociedades empresárias são titulares de personalidade jurídica própria, estando sujeitas a direitos e obrigações independentes das de seus sócios. Em decorrência desta independência tem-se o princípio da autonomia patrimonial em relação aos seus instituidores.
O principal elemento do patrimônio da sociedade é o capital social, formado pela reunião das contribuições dos sócios (cotas) ao constituírem a sociedade. No entanto, o patrimônio social não é composto apenas pelo capital. Em consonância com Fran Martins (2001), a sociedade adquire instalações, bens móveis e imóveis, que podem inclusive sofrer valorização, e tem a faculdade de reservar lucros. Assim sendo, ao conjunto de todos esses elementos dá-se o nome de patrimônio.
Diante da autonomia patrimonial da pessoa jurídica, o uso indevido da sociedade pode fazer desta um instrumento de fraude ou abuso de direito contra terceiros. E contra estes atos de má-fé, precisou-se criar uma teoria que limitasse a autonomia da pessoa jurídica, protegendo desse modo os interesses daqueles que agindo de boa-fé estavam sendo lesados.
Nas palavras de Cristiano Chaves de Farias:
Com os crescentes abusos praticados por sócios sem escrúpulos, que utilizavam a estrutura autônoma e independente da pessoa jurídica para a prática de negócios fraudulentos e desvinculados da finalidade desta, afastando-se da responsabilidade, a jurisprudência e a doutrina começaram a perceber a necessidade de buscar mecanismos ágeis de atingir o patrimônio do sócio, em favor dos prejudicados de boa-fé, inibindo a utilização da pessoa jurídica como escudo para a prática de atos ilícitos ou abusos. (FARIAS, 2005, p. 299).
Foi com esta necessidade que surgiu a disregard doctrine, ou teoria da desconsideração da personalidade jurídica, o nome em inglês como ficou conhecida em boa parte do mundo, deve-se ao famoso caso Salomon v. Salomon & Co. ocorrido na Inglaterra, que constitui o precedente jurisprudencial desta teoria, datado de 1897.
Trata-se do caso do comerciante inglês Aaron Salomon. Este trabalhava no ramo de calçados e em 1892 fundou uma pessoa jurídica composta por ele e por mais seis sócios, quais sejam, seus cinco filhos e sua esposa. A sociedade foi constituída com um total de 20.007 ações nominais, cada sócio obteve apenas uma ação, exceto o próprio Salomon que ficou com as 20.001 ações que sobraram, vindo a integralizar 20.000 ações, com a transferência de um fundo de comércio que ele já possuía, individualmente, para a sociedade. Ocorre que o valor do fundo de comércio era superior ao valor das cotas integralizadas, neste sentido o sócio Salomon passou a ser credor da pessoa jurídica que havia constituído, inclusive dispondo de garantia privilegiada. Logo em seguida a pessoa jurídica entrou em insolvência e o credor privilegiado, o próprio Salomon, tentou se sobrepor aos demais credores quirografários, depois de algumas derrotas na Câmara dos Lordes, Salomon saiu vencedor. (FARIAS, 2005).
Se não o primeiro, o caso do empresário inglês Aaron Salomon, foi o episódio de maior repercussão que possibilitou o desenvolvimento da disregard doctrine.
A partir da década de 50, com a publicação do trabalho de Rolf Serick (em tese de doutorado defendida na Universidade de Tübingen, Alemanha), se intensificaram as discussões doutrinarias a respeito da teoria da desconsideração da pessoa jurídica - disregard doctrine. No Brasil esta teoria começou a ser desenvolvida no final dos anos 60 com os trabalhos de Rubens Requião em conferência proferida na Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná. Em todas as etapas de sua criação o objetivo peculiar desta teoria sempre foi coibir a realização de fraude e o abuso de direito através da sociedade empresária.
A respeito da conferência realizada pelo professor Rubens Requião, intitulada "abuso de direito e fraude através da personalidade jurídica", momento em que a disregard doctrine começa a ser discutida pela doutrina brasileira, explana Fábio Ulhoa Coelho:
Nela, a teoria é apresentada como a superação do conflito entre as soluções éticas, que questionam a autonomia patrimonial da pessoa jurídica para responsabilizar sempre os sócios, e as técnicas, que se apegam inflexivelmente ao primado da separação subjetiva das sociedades. (COELHO, 2003, p. 37).
Quando Rubens Requião realizou a citada conferência não havia, no Brasil, previsão legal para a teoria da desconsideração. Este motivo não foi suficiente para impedir a defesa da utilização da disregard doctrine, assim como a sua adequação ao direito pátrio. Requião argumentou que as fraudes e abusos realizados através da pessoa jurídica não poderiam ser corrigidos caso não adotada a teoria da desconsideração, ou melhor, deixar de aplicá-la seria o mesmo que amparar a fraude. (COELHO, 2003).
Esta doutrina aspira, nos casos em que houver fraude, abuso ou desvio de função, o afastamento temporário da personalidade jurídica da sociedade. Com isto, aqueles que de alguma forma foram lesados poderão ser indenizados perante o patrimônio dos sócios, que passam a ser responsabilizados pelos atos praticados por meio da pessoa jurídica.
Os primeiros indícios em defesa dos terceiros de boa-fé em relação às fraudes praticadas através das pessoas jurídicas, no direito pátrio, vieram com a promulgação da lei n. 4.591/64 (Lei do Condomínio) que na redação do parágrafo único de seu art. 66 permite que se alcance o responsável pelo empreendimento, imputando-lhe responsabilidade por danos causados pela incorporação.
Em seguida tem-se a Lei n. 5. 172, de 25 de Outubro de 1966, o Código Tributário Nacional, que em seu art. 135 prevê a responsabilidade dos sócios por créditos correspondentes a obrigações tributárias resultantes de atos praticados com excesso de poderes ou infração de lei através da pessoa jurídica.
Desde a década de 60, do século passado, a doutrina e a jurisprudência brasileira vêm adotando a disregard doctrine, contudo, esta teoria só foi disciplinada, expressamente, no sistema normativo nacional, a partir da Lei n. 8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor), estando presente também na lei antitrustes (lei nº. 8.884/94), na lei nº. 9.605/98 que implementou a proteção ao meio ambiente, e, mais recentemente, no Novo Código Civil.
Neste sentido, expressa o art. 50 do Código Civil brasileiro:
Em caso de abuso de personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica. (BRASIL, 2005, p. 28).
O grande avanço da norma estabelecida no art. 50 do Novo Código Civil é a instauração de uma regra geral para a aplicação da teoria da desconsideração da pessoa jurídica, não se fazendo mais necessário recorrer a certas leis esparsas em busca de uma solução para coibir determinados tipos de fraudes e abuso de direitos.
A desconsideração não visa desvirtuar o instituto da pessoa jurídica, ela é um mecanismo compatível com a sociedade empresarial, levando-se em conta que objetiva evitar que esta seja utilizada indevidamente, bem como proteger os direitos da coletividade. A importância da personalidade jurídica tem que ser a todo tempo ressaltada, tendo em vista os avanços econômicos, a geração de emprego, dentre outros benefícios sociais.
Portanto, é de suma importância que ao admitir a desconsideração, ao aplicar a disregard doctrine, o magistrado se atenha a todos estes fatores, e não venha a banalizar esta teoria aplicando-a em qualquer situação. A cautela e a prudência devem ser utilizadas na cognição do juiz para proceder à desconsideração somente diante dos requisitos legais, quais sejam, a fraude e o abuso de direito, visando com isto reparar o dano sofrido pelo terceiro de boa-fé.
Em ajuste com o entendimento de De Plácido e Silva (2005), o Código Civil Brasileiro definiu o abuso de direito como ato ilícito, uma vez que em seu art. 187 afirma que o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa fé ou pelos bons costumes está cometendo ato ilícito. A conduta humana, a existência de um direito subjetivo, o exercício desse direito de forma emulativa, a criação de um dano a outrem e a ofensa aos bons costumes e a boa-fé são requisitos do abuso de direito enumerados pelo citado autor.
A fraude compreende o engano malicioso, realizado através da má fé, com o intuito de causar prejuízos a terceiros bem intencionados. Valendo-se, mais uma vez, das palavras de De Plácido e Silva:
A fraude traz consigo o sentido do engano, não como se evidencia no dolo, em que se mostra a manobra fraudulenta para induzir outrem à prática de ato, de que lhe possa advir prejuízo, mas o engano oculto para furtar-se o fraudulento ao cumprimento do que é de sua obrigação ou para logro de terceiros. É a intenção de causar prejuízos a terceiros. (SILVA, 2005, p. 637).
1.1.2 Princípio da Autonomia Patrimonial
Em decorrência da aquisição da personalidade jurídica, tem-se a autonomia patrimonial, que é justamente a separação entre o patrimônio dos sócios e o da sociedade. Fran Martins (2001, p. 155) preceitua que “constituída a pessoa jurídica, passa ela a ter patrimônio próprio. Esse patrimônio é, na sua fase inicial, formado pela contribuição que cada sócio efetuou ou prometeu efetuar para a sociedade”.
O patrimônio do(s) sócio(s) não responde por dívida da sociedade, assim como a sociedade tem seu patrimônio resguardado no caso de dívida de algum de seus integrantes. Certifica-se então que o princípio da autonomia patrimonial é uma proteção tanto para os sócios como para a sociedade. Por não possuírem a devida personalidade jurídica, o princípio em estudo não se aplica às sociedades irregulares, neste caso tem-se a confusão entre o patrimônio da sociedade e dos seus membros, os quais respondem ilimitadamente pelas obrigações daquela. (REALI, 2005).
Como já afirmado anteriormente, a disregard doctrine, ou teoria da desconsideração da pessoa jurídica, não é uma teoria que se opõe a separação subjetiva entre a sociedade e a pessoa do sócio. É importante ressaltar que as condutas lesivas praticadas através da pessoa jurídica comprometem a função original da sociedade desvirtuando-a de seu objetivo contratual e, conseqüentemente, comprometendo-a, neste sentido, o instituto da desconsideração, dentre outras funções, visa preservar a integridade da sociedade empresária.
Se não houvesse critérios que possibilitassem a repressão de fraudes e abusos de direitos através da pessoa jurídica, esta correria o risco de perder a sua essência, ou melhor, sua finalidade, o objetivo para o qual os sócios se juntaram em torno de um contrato social simplesmente perderia sua autonomia. Na visão de Fábio Ulhoa (2003) esse critério é fornecido pela teoria da desconsideração que contribui para o aprimoramento da disciplina da pessoa jurídica.
Seguindo essa orientação constata-se que a disregard doctrine objetiva resguardar a finalidade da pessoa jurídica, não se trata de uma oposição ao princípio da autonomia, muito menos da personalização das sociedades empresárias. Na medida em que a teoria da desconsideração reprimi a fraude e o abuso de direito praticado através da pessoa jurídica ela passa a preservar este instituto.
A autonomia patrimonial da pessoa jurídica é considerada pela doutrina como um dos impulsores da economia moderna. Se não houvesse a separação entre os patrimônios do sócio e da sociedade ninguém se sujeitaria aos riscos oferecidos pela atual conjuntura econômica. Há uma incongruência em admitir que alguém investiria seu patrimônio pessoal em um negócio que não lhe garantisse, no mínimo, o retorno da aplicação.
O princípio da autonomia patrimonial também pode ser verificado na regra contida no art. 596 do Código de Processo Civil brasileiro que, assim dispõe:
Os bens particulares dos sócios não respondem pelas dívidas da sociedade senão nos casos previstos em lei; o sócio, demandado pelo pagamento da dívida, tem direito a exigir que sejam primeiro excutidos os bens da sociedade. (BRASIL, 2005, p.122)
O respeito ao princípio da personalização das sociedades empresárias, bem como a limitação da responsabilidade patrimonial dos sócios é essencial à manutenção da economia capitalista, tais preceitos não podem ser rejeitados sob qualquer justificativa, quando violados deve-se observar a exigência de tal medida, não se afastando de seu caráter excepcional e episódico. Seguindo essa linha de intelecção, Fábio Ulhoa adverte que a quebra da autonomia patrimonial da pessoa jurídica não pode servir de questionamento da subjetividade própria da sociedade. Nesta direção, afirma que:
Esse é o sentido da ressalva de Serick ao seu primeiro princípio e do segundo, em que insiste no descabimento da desconsideração quando não caracterizada especificamente a fraude na manipulação da forma da pessoa jurídica. Quer dizer, não se justifica o afastamento da autonomia da pessoa jurídica apenas porque um seu credor não pode satisfazer o crédito que titularizava. É indispensável tenha havido indevida utilização, a deturpação do instituto. (COELHO, 2003, p. 39).
Ronaldo Roberto Reali (2005) leciona que o maior atrativo que leva alguém a investir em determinado setor do mercado é o lucro. A separação patrimonial existente entre sócio e sociedade limita os riscos de qualquer atividade ou empreendimento que vise o lucro. Sendo assim, se o princípio da autonomia da pessoa jurídica for banalizado ocorrerá uma crise de insegurança jurídica que só trará malefícios à sociedade e ao mercado como um todo.
Em consonância com Márcio Souza Guimarães (2005), não há que se falar em despersonalização, mas sim desconsideração. A despersonalização acarreta no fim da personalidade, o que somente adviria com a extinção da sociedade.
Para justificar a teoria da desconsideração da pessoa jurídica, bem como sua aplicação no campo concreto, a doutrina brasileira apresenta duas maneiras diferentes em que esta deve ser aplicada, nesta direção tem-se a teoria maior e a teoria menor da desconsideração.
A teoria maior é uma teoria mais aperfeiçoada, elaborada a partir de decisões judiciais, por isso considerada pela doutrina como uma teoria de maior consistência e abstração, tendo em vista que só possibilita o levantamento do véu protetor da pessoa jurídica de maneira episódica e quando comprovada a fraude ou o abuso de direito. No que se refere a teoria menor, como entende Fábio Ulhoa (2003), tem-se uma teoria menos elaborada, que permite a desconsideração em qualquer hipótese de execução do patrimônio do sócio por obrigação social, ou seja, à simples insatisfação de crédito perante a sociedade pode acarretar no afastamento do princípio da autonomia da pessoa jurídica.
Por questões didáticas, as duas teorias supra citadas serão abordadas nos tópicos seguintes, porém, considerando a ambigüidade no campo do direito societário brasileiro que optou por diferentes formulações da teoria da desconsideração e admitindo que a teoria maior é uma teoria melhor trabalhada, quando não se faz referência expressa a teoria menor, neste trabalho, está se fazendo menção à teoria maior da desconsideração da personalidade jurídica.
1.1.3 Teoria Maior da Desconsideração
Rolf Serick buscando definir os critérios gerais que autorizam o afastamento da autonomia patrimonial das pessoas jurídicas formulou quatro princípios básicos da teoria da desconsideração, estes princípios consagraram-se como o sustentáculo para a teoria maior da desconsideração. Tais princípios, citados por Fábio Ulhoa Coelho, são:
[primeiro princípio] O juiz, diante de abuso da forma da pessoa jurídica, pode, para impedir a realização do ilícito, desconsiderar o princípio da separação entre sócio e pessoa jurídica [...] [segundo princípio] Não é possível desconsiderar a autonomia subjetiva da pessoa jurídica apenas porque o objetivo de uma norma ou a causa de um negócio não foram atendidos [...] [terceiro princípio] Aplicam-se à pessoa jurídicas normas sobre capacidade ou valor humano, se não houver contradição entre os objetivos destas e a função daquela. Em tal hipótese, para atendimento dos pressupostos da norma, levam-se em conta as pessoas físicas que agiram pela pessoa jurídica [...] [quarto princípio] Se as partes de um negócio jurídico não podem ser consideradas um único sujeito apenas em razão da forma da pessoa jurídica, cabe desconsiderá-la para aplicação de norma cujo o pressuposto seja diferenciação real entre aquelas partes. (COELHO, 2002, p. 36).
Como já afirmado, a teoria maior é considerada uma teoria melhor elaborada, tendo em vista que se fundamenta em requisitos sólidos, concretos. Esta teoria admite a desconsideração somente quando observado, no caso concreto, a utilização indevida do véu protetor da pessoa jurídica, como por exemplo, nos casos onde esta capa protetora é utilizada para esconder atos contaminados de fraude pela pessoa física, em regra o sócio, com a utilização da sociedade empresária.
Verifica-se então que a teoria ora analisada é uma teoria de maior consistência e abstração. Fábio Ulhoa Coelho (2003) diz que, pela teoria maior o juiz é autorizado a ignorar a autonomia patrimonial das pessoas jurídicas, como forma de coibir fraudes e abusos praticados através dela.
Este também é o entendimento de Cristiano Chaves (2005), segundo o qual a teoria maior defende que o juiz só poderá ignorar a autonomia patrimonial da pessoa jurídica, no caso concreto, episodicamente e como forma de combate a fraudes e abusos praticados através da sociedade empresária. "Esta tese diferencia, com nitidez, a teoria do disregard doctrine de outras figuras jurídicas que imponham a responsabilização pessoal do sócio (como a responsabilidade por ato de má gestão nas sociedades anônimas)". (FARIAS, 2005, p. 304).
Vale ressaltar que o princípio da personalização das sociedades empresárias, bem como a limitação da responsabilidade patrimonial dos sócios que lhe é inerente, é de grande importância para o desenvolvimento econômico. Por este motivo que a teoria maior defende a desconsideração somente em caráter episódico, excepcional e tendo havido a indevida utilização da pessoa jurídica. A teoria maior da desconsideração diverge da teoria menor justamente pelo fato daquela exigir esses requisitos.
A desconsideração da autonomia patrimonial de que goza a pessoa jurídica se dá obedecendo a dois critérios, o da eventualidade e o temporário. Isto porque não se pode desprezar a importância social e econômica resultante da independência da pessoa jurídica, bem como de seus bens, em relação aos dos sócios.
Quando se fala que a desconsideração se dará de maneira episódica significa dizer que a aplicação da disregard doctrine não retira a validade e eficácia de outros atos praticados pela pessoa jurídica, principalmente a sua constituição social. Ou seja, há a desconsideração da pessoa jurídica somente em relação aquele determinado caso onde foi constatado a fraude contra terceiros de boa-fé.
Diante do caso concreto o juiz pode ignorar a existência da pessoa jurídica, deixando assim de aplicar a regra de separação patrimonial entre sociedade e sócios, trata-se da teoria da desconsideração. Isto ocorre tendo em vista que se optar por reverenciar a autonomia da sociedade será impossível coibir as fraudes realizadas através dela. (COELHO, 2003).
Sendo assim, após o ressarcimento dos danos causados a terceiros, oriundos da indevida utilização da pessoa jurídica, esta, possuindo as condições necessárias, pode voltar a funcionar normalmente. Ao desconsiderar a personalidade da pessoa jurídica, o juiz não pode se afastar do caráter temporal, não podendo extingui-la em definitivo. Vale dizer, não implica na anulação ou desfazimento do ato constitutivo da pessoa jurídica, ressalvada hipóteses excepcionais. Na doutrina de Fábio Ulhoa Coelho:
Note-se, a decisão judicial que desconsidera a personalidade jurídica da sociedade não se desfaz o seu ato constitutivo, não o invalida, nem importa a sua dissolução. Trata, apenas e rigorosamente, de suspensão episódica da eficácia desse ato. (COELHO, 2003, p. 40).
Pablo Stolze e Rodolfo Pamplona (2002) fortalecem este posicionamento na medida em que entendem que os verdadeiros infratores responsáveis pelo ilícito executado através da pessoa jurídica são os sócios, e que em face de determinado caso particular deve haver o afastamento da personalidade da sociedade de natureza temporária, tópica e perdurando apenas até que os credores se satisfaçam no patrimônio pessoal dos sócios.
Os atos que constituem hipóteses para haver a desconsideração da pessoa jurídica (fraude ou abuso de direito) são, aparentemente, lícitos do ponto de vista legal. Passa-se a visualizar a ilicitude do ato somente quando este deixa de ser imputado à pessoa jurídica e passa a ser atribuído à pessoa física (o sócio ou outra pessoa), que de maneira fraudulenta utilizou a sociedade empresária com manobras destinadas a lesar direito de outrem.
Outro relevante ponto acerca da disregard doctrine diz respeito às formulações subjetiva e objetiva da teoria da desconsideração. De acordo com a formulação subjetiva, a fraude e o abuso de direito são os elementos autorizadores da desconsideração, analisa-se aqui o intuito da pessoa física em proceder determinada conduta lesiva em face de uma terceira pessoa utilizando-se do véu protetor da sociedade empresária. Já em consonância com a formulação objetiva não importa este intuito lesivo do sócio, bastando haver a confusão patrimonial. A importância dessa diferença está ligada à facilitação da prova em juízo (COELHO, 2003).
A teoria maior se relaciona com a formulação subjetiva. Diante do caso concreto, se presente a fraude ou o abuso de direito, estaria o juiz outorgado a aplicar a disregard doctrine ao seu livre arbítrio. Vale dizer, pela subjetividade inerente à teoria maior o juiz utilizará o seu livre convencimento para aplicar ou não a desconsideração. Nas palavras de Rubens Requião:
Ora, diante do abuso de direito e da fraude no uso da personalidade jurídica, o juiz brasileiro tem o direito de indagar, em seu livre convencimento, se há de consagrar a fraude ou o abuso de direito, ou se deva desprezar a personalidade jurídica, para, penetrando em seu âmago, alcançar as pessoas e bens que dentro dela se escondem para fins ilícitos ou abusivos. (REQUIÃO, 2002, p. 752).
Ulhoa (2003) assevera que a formulação subjetiva é mais ajustada à teoria da desconsideração, contudo a formulação objetiva deve auxiliar na facilitação da prova pelo autor.
Deve-se presumir a fraude na manipulação da autonomia patrimonial da pessoa jurídica se demonstrada a confusão entre os patrimônios dela e de um ou mais de seus integrantes, mas não se deve deixar de desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade, somente porque o demandado demonstrou ser inexistente qualquer tipo de confusão patrimonial, se caracterizada, por outro modo, a fraude. (COELHO, 2003, p. 44).
Como se verá a seguir a formulação objetiva, defendida por Fábio Konder Comparato, é ponto característico da teoria menor da desconsideração. A simples confusão patrimonial já é suficiente para aplicação desta regra.
1.1.4 Teoria Menor da Desconsideração
A teoria menor despreza uma análise sólida de um determinado caso concreto, fundada em requisitos pré-determinados, para acarretar a desconsideração da pessoa jurídica. É suficiente o fato de que a diferença patrimonial existente entre sócios e sociedade atrapalhe a satisfação dos credores, vale dizer, basta haver qualquer hipótese de comprometimento do patrimônio do sócio por obrigação da sociedade para afastar a autonomia patrimonial da pessoa jurídica. O simples prejuízo do credor já é o bastante para haver a incidência da disregard doctrine.
Fábio Ulhoa (2003) entende que a teoria menor da desconsideração, no que diz respeito às sociedades empresárias, significa a crise do princípio da autonomia patrimonial. Em consonância com esta teoria, se a pessoa jurídica não tem condições de cumprir com seus débitos e os sócios podem pagar essas dívidas, responsabilizam-se estes por obrigações daquela sem analisar se houve utilização irregular do instituto. É por esta razão que a teoria menor é considerada menos elaborada.
Esta teoria tem como precursor, no Brasil, Fabio Konder Comparato, que entende ser insuficiente a exigência de requisitos subjetivos para se ver superada a autonomia patrimonial da pessoa jurídica. Para Comparato (1983, p. 286), “a desconsideração da personalidade jurídica é operada como conseqüência de um desvio de função, ou disfunção, resultando, sem dúvida, as mais das vezes, de abuso ou fraude, mas que nem sempre constitui um ato ilícito”.
Os defensores da teoria menor alegam que não se pode vincular a aplicação da disregard doctrine à idéia de fraude ou abuso de direito, sob o risco de abandonar as hipóteses em que o sócio obtém proveitos da autonomia patrimonial da pessoa jurídica sem incorrer em qualquer ato ilícito.
Apesar da doutrina brasileira ter uma maior afinidade com a teoria maior da desconsideração, a legislação pátria inclina-se pela aplicação da formulação menor da disregard doctrine. Examinando o art. 28, § 5º, do Código de Defesa do Consumidor verifica-se que o superamento da autonomia patrimonial da pessoa jurídica independe de fraude ou abuso de direito, basta haver prejuízo ao consumidor para ensejar a possibilidade de desconsideração.
Pela análise dos dispositivos legais nacionais que disciplinam o tema, constata-se que a exigência para se admitir a desconsideração da pessoa jurídica se encontra no desvio de finalidade ou na confusão patrimonial, não dando maior relevo à conduta subjetiva dos sócios, assim sendo, o ordenamento jurídico brasileiro possui maior enquadramento com a formulação objetiva da teoria da desconsideração.
Ao admitir que a lei civil brasileira optou por adotar a teoria defendida por Fábio Konder Comparato, Cristiano Chaves de Farias (2005) afirma que basta a simples perícia na escrituração contábil ou nas contas bancárias da sociedade mercantil demonstrando que foram pagas dívidas pessoais do sócio, ou vice-versa, para que tenha ensejo a desconsideração.
É pacifico o entendimento doutrinário de que a aplicação da desconsideração (disregard doctrine) não pode ocorrer sob uma análise tão superficial, é necessário observar alguns requisitos, considerados como grandes exceções no que diz respeito ao funcionamento normal de uma sociedade empresária, como por exemplo a fraude e o abuso de direito praticado através da pessoa jurídica com o intuito de provocar prejuízo a terceiro de boa-fé. Se esses requisitos objetivos não forem exigidos para o emprego da desconsideração o que se terá é uma crise de insegurança jurídica, o respeito ao princípio da autonomia patrimonial é muito importante para o crescimento econômico de um país.
1.1.5 Desconsideração Inversa
Como já foi observado, a desconsideração da pessoa jurídica visa ignorar sua autonomia patrimonial para atingir o patrimônio de um ou mais sócios devido a má utilização da sociedade, seja através de fraude ou abuso de direito.
Há casos, porém, em que a fraude a terceiros se dá na via inversa, ou seja, a pessoa jurídica é utilizada para esconder o objeto da prática da má-fé, nestas hipóteses a intenção é responsabilizar a sociedade pelas obrigações do(s) sócio(s) e não o contrário, desencadeando assim na teoria inversa da desconsideração da pessoa jurídica. Em qualquer um dos casos a intenção é quebrar a autonomia patrimonial da pessoa jurídica sempre que houver fraude ou abuso de direito.
Márcio Souza Guimarães (2005) leciona que, devido ao progressivo grau de degradação moral do ser humano que utiliza-se de determinada estrutura para fugir de responsabilidades particulares tem-se a possibilidade de, visando a defesa de interesses legítimos, utilizar a disregard doctrine pela via inversa.
Trata-se de hipóteses em que a prática do ato fraudulento ocorre de maneira contrária daquelas em que o sócio se esconde atrás da sociedade, ou melhor, utiliza-se da estrutura da pessoa jurídica para praticar fraudes. Neste caso quem é ocultado é a própria pessoa jurídica, é nela onde os bens estão escondidos, passando o sócio a se apresentar em situação não condizente com a realidade fática.
Em regra, a fraude que esta modalidade de desconsideração visa reprimir é o desvio de bens, são hipóteses em que os sócios desviam seus bens particulares para determinada pessoa jurídica, que confiando na autonomia patrimonial daquela, pretende fraudar ou de alguma outra forma abusar do direito de terceiro. É neste ponto que surge a solução para fraudes executadas na meação do processo de separação ou de divórcio, também é comum haver este tipo de fraude na sucessão, quando o sujeito visa lesar determinado herdeiro em beneficio de outro.
Na realidade o que ocorre, nas hipóteses do processo de separação ou de divórcio, é que um dos cônjuges ou parceiros (as), com intuito de não fazer a justa divisão dos bens que constituem o patrimônio do casal, usa uma pessoa jurídica, da qual a outra parte não possui cotas, geralmente com auxilio de terceiros, para depositar (esconder) parte ou a integralidade do patrimônio em comum. Neste sentido, com intuito de coibir esta prática abusiva, é que se desenvolveu a disregard doctrine no juízo de família, que apesar de não haver disposição legal expressa, esta sendo difundida entre a doutrina e jurisprudência, tendo como precursor, no Brasil, Rolf Madaleno.
Na visão de Madaleno (2004) o fato da pessoa jurídica possuir personalidade própria e patrimônio distinto dos de seus sócios possibilitou que elas fossem utilizadas como anteparo da fraude. Esta situação foi tomando um rumo cada vez maior na medida em que, confiantes no princípio da autonomia patrimonial, as pessoas, principalmente na esfera das relações conjugais, desviavam os seus bens para sociedades empresarias com o intuito de que estes não fossem repartidos.
É de testemunhar quão difusa e producente a aplicação da despersonalização social no campo do Direito de Família, principalmente frente à diuturna constatação nas disputas matrimoniais (e também dentro da união estável) do cônjuge empresário esconder-se sob as vestes da sociedade para a qual faz despejar, senão todo, ao menos o rol mais significativo dos bens comuns. (MADALENO, 2004, p. 160).
Assim, verifica-se que, no Direito de Família a utilização da disregard doctrine dar-se-á, de hábito, na via inversa, desconsiderando o ato para alcançar bem da sociedade, viabilizando portanto o pagamento do cônjuge ou credor familiar.
Na eventualidade de um dos cônjuges ou companheiros adquirir determinado bem e registrá-lo em nome de uma sociedade sob seu comando, este bem não integrará a massa a ser partilhada. Neste caso, quando for rompido o vínculo do casamento ou da união estável, haverá uma fraude no que diz respeito a partilha de bens comuns. Por esta razão pode-se afirmar que a desconsideração inversa da pessoa jurídica defende os direitos de família. (COELHO, 2003).
Da análise da doutrina acerca do tema, bem como dos julgados que a acatam, não há discordâncias relevantes quanto aos motivos, fundamentos e aplicabilidade da disregard doctrine no Juízo de Família. E assim o é porque a comunidade acadêmica esta empenhada em reprimir os abusos de direito praticados através da pessoa jurídica, que grande valia tem à economia, contra a entidade familiar.
Cristiano Chaves (2005) atenta para o fato de que no casamento, na união estável, na obrigação alimentar, dentre outras relações familiares é comum que um sentimento de vingança apareça e faça com que as pessoas jurídicas sejam utilizadas de maneira fraudulenta visando prejudicar, por exemplo, o ex-cônjuge ou o ex-companheiro no momento da partilha do patrimônio.
Diante da explanação a respeito da desconsideração inversa da pessoa jurídica no juízo de família, restou decidido:
Separação Judicial. Reconvenção. Desconsideração da personalidade jurídica. Meação. O abuso de confiança na utilização do mandato, com desvio dos bens do patrimônio do casal, representa injúria grave do cônjuge, tornando-o culpado pela separação. Inexistindo prova da exagerada ingestão de bebida alcoólica, improcede a pretensão reconvencional. É possível a aplicação da desconsideração da personalidade jurídica, usada como instrumento de fraude ou abuso à meação do cônjuge promovente da ação, através de ação declaratória, para que estes bens sejam considerados comuns e comunicáveis entre os cônjuges, sendo objeto de partilha. A exclusão da meação da mulher em relação às dívidas contraídas unilateralmente pelo varão, só pode ser reconhecida em ação própria, com ciência dos credores. (BRASIL, 2005).
Apesar de ainda não ser uma prática tão comum, como deveria ser, mesmo porque pode-se dizer que é uma novidade, a desconsideração inversa da pessoa jurídica no Direito de Família esta cada vez mais bem elaborada, difundida, e sendo acolhida pelos magistrados, que diante das fraudes já analisadas não obstam a decidir pela quebra da autonomia patrimonial da pessoa jurídica, procedendo à sua desconsideração e restituindo a parte lesada no que lhe cabe de direito.
É importante registrar que em hipótese alguma o ex-cônjuge ou ex-companheiro lesado pode, como forma de restituição patrimonial, se integrar na sociedade, a esta cabe somente se responsabilizar, nos casos pertinentes, pelas obrigações dos sócios perante terceiros. Outra ressalva importante é que a dissolução ou extinção da sociedade empresária só é possível nos casos previstos em lei ou no seu estatuto social e, quando o bem pertencente à parte lesada perecer cabe a restituição através de perdas e danos.
1.1.6 Aspectos Processuais
De acordo com a regra do artigo 50 do Código Civil, o juiz só poderá desconsiderar a autonomia patrimonial da pessoa jurídica através de requerimento da parte interessada ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo. De qualquer forma, compete ao Ministério Público intervir em todas as causas concernentes ao estado da pessoa – preceito do artigo 82 do Código de Processo Civil.
A ação de desconsideração da pessoa jurídica visa a abstração de sua personalidade, demandá-la contra a própria sociedade empresária é uma incongruência. Os sócios devem ser os sujeitos passivos do processo, são estes que os credores desejam responsabilizar por obrigação da sociedade. A sociedade empresária é parte ilegítima, na hipótese de ser indicada como ré deve o processo ser extinto sem julgamento de mérito. Neste sentido, sustenta Fábio Ulhoa:
Quem pretende imputar a sócio ou sócios de uma sociedade empresária a responsabilidade por ato social, em virtude de fraude na manipulação da autonomia da pessoa jurídica, não deve demandar esta última, mas a pessoa ou as pessoas que quer ver responsabilizadas. (COELHO, 2003, p.55).
A relevância dos aspectos processuais consiste em saber como se deve proceder o Poder Judiciário em relação a aplicação da teoria da desconsideração da pessoa jurídica – disregard doctrine.
Um dos temas mais controversos sobre a disregard doctrine é o que envolve o momento processual adequado para a aplicação da desconsideração da pessoa jurídica. A questão é se a desconsideração deve ser determinada no meio do processo de execução, onde este restou frustrado em conseqüência da manipulação da sociedade empresária ou, se os sócios e responsáveis pela pessoa jurídica devem participar de um anterior processo de conhecimento, mesmo que seja como litisconsortes passivos sucessivos eventuais. Em relação a esta última hipótese tem-se o disposto no art. 472 do Código de Processo Civil brasileiro:
A sentença faz coisa julgada às partes entre as quais é dada, não beneficiando, nem prejudicando terceiros. Nas causas relativas ao estado de pessoa, se houverem sido citados no processo, em litisconsórcio necessário, todos os interessados, a sentença produz coisa julgada em relação a terceiros. (BRASIL, 2005, p. 100)
Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho (2002) entendem que, se o sócio ou administrador não tiver participado da lide, não poderá, em tese, ser responsabilizado posteriormente na execução da sentença.
Segundo a teoria maior os requisitos para que haja a desconsideração é a fraude ou o abuso de direito perpetrado através da autonomia patrimonial da pessoa jurídica, constituindo estas as únicas hipóteses em que se deve ignorar a personalização das sociedades empresárias com o intuito de coibir os ilícitos dissimulados. Por esta razão, Fábio Ulhoa (2003) afirma que, somente por meio de uma ação de conhecimento própria, interposta pelo credor da sociedade contra os sócios ou seus controladores, onde demonstra-se a presença do pressuposto fraudulento, que o magistrado pode desconsiderar a autonomia existente entre sócio e sociedade.
Pela teoria maior da disregard doctrine não é possível a determinação da desconsideração de uma sociedade empresária por mero despacho judicial proferido no bojo de um processo de execução. É preciso haver um prévio processo de conhecimento.
Deste modo, se o credor obteve em juízo a condenação da pessoa jurídica e, ao iniciar a execução ver o seu direito frustrado decorrido do uso fraudulento da personalização da sociedade, ele não tem título executivo contra o responsável pela ação praticada de má fé. Assim sendo, este deve ser acionado. No entendimento de Fábio Ulhoa (2003), o magistrado não pode, a pretexto de transferir para eventuais embargos de terceiro a discussão sobre a fraude, determinar a penhora de bens do sócio durante a execução.
Vale dizer, o autor assume o risco ao ajuizar a ação somente contra a pessoa jurídica nas circunstâncias em que os requisitos que dão azo à desconsideração já eram preexistentes. Se, por qualquer motivo, o autor tem medo de que a futura execução do processo de conhecimento reste fraudada, consequentemente frustrada, ele deve ajuizar a ação contra o(s) sócio(s) juntamente com a sociedade. Textualmente, nas lições de Fábio Ulhoa Coelho:
Se o autor teme eventual frustração ao direito que pleiteia contra uma sociedade empresária, em razão da manipulação fraudulenta da autonomia patrimonial no transcorrer do processo, ele não pode deixar de incluir, desde o início, no pólo passivo da relação processual, a pessoa ou as pessoas sobre cuja conduta incide o seu fundado temor. Nesse caso, o agente fraudador e a sociedade são litisconsortes. (COELHO, 2003, p. 55).
Em linha mais moderada, Pablo Stolze e Rodolfo Pamplona (2002) entendem que, se no momento do processo de conhecimento a pessoa jurídica estava em uma situação financeira confortável e, posteriormente, surgiram os fatos, de caráter subjetivo, que autorizam a aplicação da disregard doctrine é justo que possa ser determinado a desconsideração através de procedimento incidental na própria execução, ressaltando a importância de se garantir o contraditório e a ampla defesa.
De acordo com a teoria menor da desconsideração, o magistrado pode determinar a penhora dos bens do(s) sócio(s) através de um despacho no processo de execução, sendo possível a defesa por intermédio de embargos de terceiro. Para os defensores desta teoria, o momento ideal para a aplicação da disregard doctrine é imediatamente após provada a confusão patrimonial ou o ato abusivo. Segundo tal entendimento, ocorrendo uma dessas hipóteses, está o Poder Judiciário autorizado a responsabilizar os sócios por obrigações assumidas pela sociedade. Sobre este entendimento, destaca-se Cristiano Chaves de Farias:
Assim, é possível que o magistrado (provocado) determine, diretamente no processo de execução, a constrição de determinado bem de propriedade pessoal do sócio, desconsiderando a separação patrimonial, em decisão recorrível prolatada em ação cautelar incidental ou por mero incidente na execução, ensejando chance de defesa ao sócio. (FARIAS, 2005, p. 315).
A doutrina antagônica à teoria menor defende que, caso o sócio seja responsabilizado nestes moldes, os quais transferem a defesa para um possível embargos de terceiro, ele será afastado do direito a ampla defesa e ao devido processo legal, ambos garantidos constitucionalmente, tendo em vista que não participou do processo de conhecimento. Conduto, verifica-se certa dose de radicalismo neste posicionamento, ante a possibilidade de se assegurar, em tais casos, tanto o contraditório quanto a ampla defesa.
Ao criticar a aplicação processual da teoria menor, Fábio Ulhoa (2003) prega que é imprescindível a existência de um prévio processo de conhecimento, onde deve ser inserido no pólo passivo a pessoa que se pretende ver responsabilizada. Tal regra deve ser aplicada tanto pelos juizes que amparam a teoria maior, quanto pelos que defendem a teoria menor, segundo a qual basta haver a insolvência da sociedade empresária, ou seja, a mera insatisfação do crédito perante ela titularizado.
Sem dúvidas que a banalização do instituto da desconsideração da sociedade empresária pode acarretar uma crise de insegurança jurídica, ensejando grandes malefícios econômicos e sociais. Assim sendo, ordinariamente, não se deve admitir que a autonomia patrimonial da pessoa jurídica seja superada através de argüição incidental em processo de execução. O patrimônio do sócio só pode ser atingido, por obrigação assumida em nome da sociedade, se aquele participou do processo de conhecimento onde se formou o título judicial. Em regra, a disregard doctrine deve-se dar através de um processo de conhecimento próprio.
No entanto, é preciso ter cuidado para que o apego ao formalismo não deturpe o objeto da disregard doctrine. É possível que ao findar um processo de conhecimento autônomo, onde se pretende a superação da autonomia da pessoa jurídica, esta já não seja mais eficaz, ou seja, apesar da aplicação da desconsideração da sociedade empresária a lesão causada pelo seu mau uso já se tornou irreversível.
Em harmonia com a doutrina de Pablo Stolze e Rodolfo Pamplona (2002), se os requisitos da desconsideração surgiram depois de já instaurado o processo de conhecimento, é possível haver uma exceção, devendo ser garantido o contraditório e a ampla defesa.
Os casos que envolvem Direito de Família são exemplos em que não se pode exigir a existência de um processo de conhecimento próprio para a aplicação da disregard doctrine. Justificando a necessidade de procedimento mais simplificado para estas hipóteses, Cristiano Chaves (2005) diz, com propriedade, que o objeto destas disputas judiciais incidem sobre relações de ordem íntima, vale dizer, trata-se do estado psicológico e espiritual da pessoa humana.
Se for necessário haver a desconsideração da pessoa jurídica em processo onde se discute a meação dos bens do casal, ou onde se impõe prestação alimentar, ela se dará pelo caminho inverso, vale dizer, a sociedade empresária será responsabilizada por obrigação do sócio. Neste caso, se a quebra da autonomia patrimonial da pessoa jurídica ocorrer através de um processo de conhecimento separado é bem provável que, ao seu final, a aplicação da disregard doctrine tenha perdido sua essência, impossibilitando que a parte lesada na divisão do patrimônio seja restituída de seu direito.
De acordo com este entendimento a desconsideração da pessoa jurídica no processo em que se discute o direito a meação pode se dar de diversas maneiras. É possível que seja através de questão prejudicial na ação em que se discute a partilha de bens, como por exemplo, o divórcio, se a fraude é preexistente; por meio de despacho incidental no próprio processo de execução quando a fraude se deu depois da partilha; tem-se também a possibilidade de pedido cautelar, bem como as diversas medidas cautelares presentes no direito pátrio. Em todos os casos deve ser observado o princípio do contraditório e da ampla defesa.
Salomão Calixto (1998) exprime que a desconsideração da sociedade empresária não precisa ser proclamada em processo autônomo. Para este autor a disregard doctrine é um instrumento para a efetividade do processo executivo e também pode ser utilizado como substitutivo da falência. Assim sendo, enfatiza que:
No próprio processo de execução, não nomeando o devedor bens à penhora ou nomeando bens em quantidade insuficiente, ao invés de pedir a declaração de falência da sociedade, o credor pode e deve, em presença dos pressupostos que autorizam a aplicação do método de desconsideração, definidos acima, pedir diretamente a penhora em bens do sócio (ou sociedade, em caso de desconsideração inversa). (SALOMÃO FILHO, 1998, P.109).
Como, para a teoria menor, o pedido de desconsideração da personalidade jurídica trata de mero incidente processual, a jurisprudência vem admitindo que o seja formulado nos próprios autos da execução.
Cumpre enfatizar que com o advento da lei n. 11.235/2005, a qual deu continuidade às micro reformas que vem sofrendo o Processo Civil Brasileiro, tal discussão tornou-se irrelevante. Destarte, a sentença passou a ser objeto de simples cumprimento, não mais havendo processo autônomo de execução de título judicial.
Tais mudanças processuais reproduzem significativo impulso em relação ao verdadeiro resultado da jurisdição. A execução passou a ser uma fase da ação. Como explanado alhures, a desconsideração da pessoa jurídica como meio de lesar direitos de terceiros, em especial os oriundos de relações familiares, pode ser aplicada ao abrigo de qualquer meio processual admitido no ordenamento jurídico, inclusive em processos cautelares e incidentais.
Por esta forma, buscando organizar e ilustrar este estudo, o capítulo seguinte cuida de examinar o Direito de Família no contexto legal brasileiro enfocando, principalmente, as relações que dão ensejo a vínculos patrimoniais no âmbito familiar.