7 Conclusão:
O embate teórico travado entre Hart e Dworkin, se apresenta, sem sombra de dúvidas, como um marco hermenêutico da filosofia do direito do século XX. Nesse campo discursivo, ganha importância à análise do ordenamento jurídico sob o viés dos magistrados, dando contornos ao importante debate sobre a discricionariedade judicial, ao trazer o problema da textura aberta do direito.
Ao propor a existência de um ordenamento jurídico arquitetado pela união de regras primárias e secundárias, capazes de sobreviverem no espaço e no tempo, mesmo diante de alterações de governo, Hart evidencia uma nova visão do direito, inerente às sociedades complexas.
O papel importante desenvolvido pelas regras secundárias, de atribuição de poderes às regras primárias, ganha importância máxima com a aceitação de um sistema jurídico dirigido por uma regra secundária de reconhecimento, capaz de realizar um teste de validade no direito, ao funcionar como um filtro jurídico-normativo. Todavia, Hart deixa claro que essa regra de reconhecimento não consegue exercer um controle sobre todas as situações concretas apresentadas, uma vez que o direito possui uma textura aberta decorrente do problema da linguagem. Assim, nesse espaço desprovido de regulamentação, no qual existe uma verdadeira zona de penumbra normativa, o aplicador do direito se vê obrigado a fazer uso de um poder discricionário para que a situação inédita não fique sem regulamentação.
Conforme verificamos, Dworkin recusa-se a aceitar as proposituras de Hart e, com base numa teoria construtivista, propõe um novo modo de se vislumbrar o ordenamento jurídico. Para o filósofo estadunidense, a regra de reconhecimento, por ser um verdadeiro teste de pedigree, não seria capaz de reconhecer princípios, mas tão somente regras, já que o ordenamento jurídico na visão de um positivista seria constituído apenas por um emaranhado de regras jurídicas, aplicadas segundo o critério da subsunção.
As críticas em relação ao poder discricionário, opondo-se às afirmações de Hart de que a discricionariedade judicial se mostraria como fator inerente à textura aberta do direito, levaram Dworkin a buscar meios de se demonstrar que os princípios seriam a solução adequada à resolução desse problema. Todavia, ao apontar a existência de princípios como forma de combate ao poder discricionário dos magistrados, Dworkin não deixou evidenciado quais seriam os mecanismos utilizados na escolha desses princípios em caso de conflito. Se a ideia era sopesá-los, o filósofo não deixou claro quais seriam os critérios atotados na resolução dos casos difíceis, o que acabou por redundar em uma forma de discricionariedade no momento da escolha. Logo, Dworkin estaria assumindo uma forma de discricionariedade judicial, ao deixar em aberto possibilidades para que os magistrados julgassem qual seria o princípio mais adequado ao caso concreto.
A discricionariedade que surge para o juiz, segundo Hart, ocorre tão somente diante de situações não regulamentadas pela norma de reconhecimento, estando vedado ao juiz agir de forma arbitrária, devendo respeitar os limites impostos por padrões sociais aceitos como válidos. Por esse motivo, fica claro não haver na teoria desse positivista qualquer tendência à valorização de uma discricionariedade em sentido forte, pois, do contrário, não haveria que se falar em segurança jurídica. O fato de o magistrado legislar ex post facto não atribui a ele poderes desmedidos na criação do direito.
Para Dworkin, o maior erro de Hart foi possibilitar que decisões pudessem ser fundamentadas por elementos extrínsecos ao direito. Segundo o viés dworkiniano, uma decisão deve sempre estar conforme o direito, sob pena de se verificar o exercício de um poder discricionário. Assim, diante de casos difíceis, os juízes deveriam procurar respostas nos princípios contidos dentro do próprio ordenamento jurídico, buscando-se a melhor justificativa moral de acordo com o direito preexistente.
O papel dos juízes na resolução dos casos difíceis deveria ser exercido, conforme aduz Dworkin, nos moldes de Hércules, magistrado idealizado pelo filósofo, dotado de capacidades excepcionais pra reconstruir o direito vigente no caso concreto, buscando a melhor resposta possível amparada pelos princípios. Esse juiz deveria julgar nos moldes de um escritor, que ao escrever um romance em cadeia, elaboraria cada novo capítulo em consonância com os capítulos anteriores.
A abordagem do ordenamento jurídico realizada por Dworkin, ao metaforizar a solução dos casos difíceis na figura do Juiz Hércules, demonstra a visão idealizadora que o filósofo tem do direito. De outro lado, manifesta-se em Hart uma visão do direito puramente descritiva, apta a descrevê-lo sem que haja qualquer valoração.
A teoria construtivista de Dworkin propôs uma nova forma de se pensar o direito, condicionadora do papel desempenhado pelos magistrados dentro do ordenamento jurídico. Entretanto, a realidade desse sistema jurídico mostra-se expressivamente falha, pelo menos ao tentar solucionar o problema do poder discricionário, pois ainda que se tenha apresentado um modelo principiológico de resolução dos casos difíceis, apontando a necessidade de que princípios sejam sopesados, tal não se mostra capaz dar cabo à discricionariedade judicial, uma vez que na escolha entre princípios, seria inevitável que não houvesse por parte dos aplicadores do direito, emissão de juízos de valores. Essa capacidade de se proferir um julgamento completamente imparcial seria um atributo apenas do Juiz Hércules, que conforme mesmo assegura Dworkin, é uma idealização da figura perfeita de um magistrado.
REFERÊNCIAS
COLONTONIO, Carlos Ogawa. A questão da racionalidade jurídica em Hart e Dworkin. 2011. 135p. Dissertação (Mestrado em Filosofia) – Universidade de São Paulo, São Paulo.
DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Trad. Nelson Boeira. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
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HART, H. L. A. O conceito de Direito. Pós-escrito editado por Penélope A. Bulloch e Joseph Raz. Trad. de A. Ribeiro Mendes. 2.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2012.
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LAGES, Cíntia Garabini. A proposta de Ronald Dworkin em “O Império do Direito”. Revista da Faculdade Mineira de Direito. Belo Horizonte: PUC Minas. v. 4. n. 7 e 8, jan./jun. 2001.
PAULINI, Umberto. Breves notas sobre a polêmica que medeia as construções teóricas de H.L.A. Hart e Ronald Dworkin. Revista Eletrônica do CEJUR, v. 1, n. 1, ago./dez. 2006. Disponível em: <ojs.c3sl.ufpr.br/ojs2/index.php/cejur/article/view/14840/9961>. Acesso em: 24 de setembro 2012.
Notas
[1]A teoria construtivista defende a construção do direito através da interpretação, permitindo que o julgador se torne parte da história institucional, de modo a dar ao caso concreto, a melhor justificativa conforme princípios morais e políticas vigentes na comunidade.
[2] HART, Herbert. O conceito de direito (2012:105)
[3] HART, Herbert. O Conceito de Direito (2012: 179)
[4] DWORKIN, Ronald. O império do direito (2003: 63-64)
[5] DWORKIN, Ronald. O Conceito de Direito (2002:50-51)
[6] DWORKIN, Ronald. O Conceito de Direito (2002:51)
[7] DWORKIN, Ronald. O Conceito de Direito (2002:51)
[8] DWORKIN, Ronald. O Conceito de Direito (2002:49)
[9] DWORKIN, Ronald. O Conceito de Direito (2002:36)
[10] DWORKIN, Ronald. O Conceito de Direito (2002:36)
[11] DWORKIN, Ronald. O Conceito de Direito (2002:114)
ABSTRACT:The problems inherent in the use of language, by incorporating the normative universe, entail a Law’s open texture, opening possibilities for the judiciary to exercise a function legislative, providing an appropriate answer to the case. Therefore, the exercise of a judicial discretion is presented as inevitable mechanism used by judges in the absence of normative regulation in specific situations. In this sense, the present article search to present an analysis of the phenomenon of judicial discretion, focusing on clash of ideas sustained by Hart and Dworkin, aiming to demonstrate the antagonistic positions of these philosophers about the subject, as well as dispel some common misconceptions about the vision attributed to juridical positivism in the ambit of application of the Law.
KEYWORDS: Hart, Dworkin; judicial discretion; rules; principles