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A discricionariedade judicial à luz das teorias de Hart e Dworkin

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Agenda 01/03/2014 às 15:45

5 O poder discricionário segundo Dworkin:

Importante crítico do positivismo jurídico e das teorias utilitaristas do direito, Ronald Dworkin tem ocupado lugar singular na filosofia do direito contemporânea. Sua teoria denominada Construtivista, definida por ele como a “imposição de um propósito a um objeto ou prática, a fim de torná-los os melhores exemplos possíveis da forma ou do gênero aos quais se imaginam que pertençam”[4], utiliza de uma ordem principiológica hierarquizada e de testes últimos de validade para verificação do direito, ensejando dar cabo ao problema da discricionariedade judicial com a abolição do que ele denomina sistema bifásico do direito - constituído por uma fase convencional e outra discricionária - e ainda, pela participação do magistrado na construção da decisão judicial  conforme  princípios e políticas aceitos como válidos pela comunidade. Assim, focado em ideais puramente liberais, esse filósofo buscou demonstrar de forma crítica, a existência de uma discordância em relação às teses defendidas por alguns teóricos do direito, taxados comumente como positivistas. Dentro desse grupo, destaca-se a figura de Hart, cuja obra “O conceito de Direito”, tenha sido talvez, o principal alvo das censuras dworkinianas.

Dworkin parte do pressuposto de que a regra secundária de reconhecimento, estabelecida por Hart como critério último de validade de um ordenamento jurídico, seria um verdadeiro teste de pedigree, através do qual somente algumas regras, que se submetessem a um processo específico, seriam aceitas. Assim, para que uma regra pudesse passar a ter o status de jurídica, deveria satisfazer algumas condições impostas pela própria regra de reconhecimento.

Segundo Dworkin, Hart entendia que somente poderiam ser consideradas direito aquelas questões que passassem pelo crivo da regra de reconhecimento, o que, inevitavelmente, teria permitido com que importantes elementos jurídicos, considerados como padrões destinados a embasar decisões judiciais, ficassem fora do conceito de direito.

O teste de pedigree propiciado pela regra de reconhecimento, evidenciada sua mecanicidade, seria o responsável por estabelecer um sistema fechado de regras, que propiciaria a discricionariedade judicial como consequência lógica do exaurimento da regra de reconhecimento, ao se deparar com casos inéditos no ordenamento jurídico.

Essa ideia de um poder discricionário, existente para suprir um problema decorrente da textura aberta do direito, é taxada por Dworkin como irracional, juridicamente falando, dada a arbitrariedade a que se expõe o sistema jurídico. Sob esse aspecto, faz o filósofo a seguinte analogia: “tal como um espaço vazio no centro de uma rosca, o poder discricionário não existe a não ser como um espaço vazio, circundado por uma faixa de restrições”[5].

Ao reascender em sua obra a questão da discricionariedade judicial apontada por Hart, Dworkin chama a atenção para a existência de dois tipos de poder discricionário, sendo um em sentido fraco e outro em sentido forte. Em relação ao primeiro, o filósofo o desmembra em dois subtipos, empregando-se o primeiro subtipo (sentido fraco) “apenas para dizer que, por alguma razão, os padrões que uma autoridade pública deve aplicar não podem ser aplicados mecanicamente, mas exigem o uso da capacidade de julgar”[6]. Quanto ao segundo subtipo (sentido fraco), este seria usado “apenas para dizer que algum funcionário público tem a autoridade para tomar uma decisão em última instância e que esta não pode ser revista e cancelada por nenhum outro funcionário”[7]. Entretanto, no que tange ao segundo tipo (sentido forte), seria este empregado para dizer que, em certos assuntos, por não haver uma ordem dirigindo a decisão a ser tomada, não haveria limitações advindas de qualquer padrão proveniente de uma autoridade, o que daria à autoridade grande margem de escolha.

Na visão de Dworkin, ao apontar a existência de um poder discricionário no ordenamento jurídico, Hart o teria utilizado em seu sentido forte, uma vez que a emissão de juízos de valores para resolver o caso concreto, se mostraria como uma verdadeira prerrogativa dos juízes. Sob esse aspecto, os padrões de escolha de um magistrado, jamais estariam limitados por um direito preexiste.

Sobre o propósito de Dworkin, em apontar na teoria de Hart, a constatação de um poder discricionário forte, esclarece Carlos Colontonio:

“É esta a questão que Dworkin acredita que seja o ‘calcanhar de Aquiles’ da doutrina do poder discricionário. Acreditar que os casos jurídicos controversos são resolvidos com um poder discricionário em sentido forte, ilimitado em face dos parâmetros de direito, é afirmar que uma decisão tomada por uma autoridade, em uma situação de dúvida, é uma decisão que pode ser criticada pelos opositores, mas que nunca pode ser considerada errada, juridicamente falando”. (COLONTONIO, 2011, p. 67)

Assim, Dworkin, ao afirmar que a ideia de uma discricionariedade judicial tenha se infiltrado na comunidade jurídica[8], se propõe a condenar a existência de um poder discricionário em sentido forte, dentro do ordenamento jurídico.

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Para Dworkin, os padrões que fundamentam uma decisão não poderiam partir de um campo extrajurídico, devendo encontrar justificativas dentro do próprio campo do direito. Há, portanto, uma ideia de obrigação, determinada por regras e princípios jurídicos, que devem ser levadas em consideração pelos magistrados no ato decisório.

A ideia de inclusão de princípios no ordenamento jurídico se mostra como a solução encontrada por Dworkin para dar fim ao problema da discricionariedade judicial. Para o filósofo, a existência de um poder discricionário inerente às autoridades públicas, seria uma decorrência do caráter falho da regra de reconhecimento, que ao utilizar-se de um teste de pedigree, não conseguiria identificar princípios.


6 A solução de Dworkin ao problema:

Ao taxar o positivismo como um conjunto fechado de regras jurídicas, Dworkin afirma faltar a esse sistema “padrões que não funcionam como regras, mas operam diferentemente, como princípios, políticas e outros tipos de padrões”[9].

A ideia existente na teoria de Hart, de fornecer um único teste fundamental para o direito, verificado através da regra de reconhecimento, faria com que importantes padrões - diferentes de regras - fossem ignorados.

Em relação a esses padrões apontados por Dworkin, destaca-se o papel desempenhado pelos princípios e políticas, cuja diferenciação é demonstrada pelo filósofo da seguinte maneira:

“(...) Denomino ‘política’ aquele tipo de padrão que estabelece um objetivo a ser alcançado, em geral uma melhoria em algum aspecto econômico, político ou social da comunidade (ainda que certos objetivos sejam negativos pelo fato de estipularem que algum estado atual deve ser protegido contra mudanças adversas). Denomino ‘princípio’ um padrão que deve ser observado, não porque vá promover ou assegurar uma situação econômica, política ou social considerada desejável, mas porque é uma exigência de justiça ou equidade ou alguma outra dimensão da moralidade.” (DWORKIN, 2002, p.36)

Sob esse prisma, princípios seriam padrões pertencentes ao direito, com o escopo de embasar as decisões do magistrado, enquanto políticas seriam padrões não pertencentes ao direito, cujo conteúdo decorresse de um determinado contexto legislativo, e por isso, avocados nas decisões judiciais.

Para a análise do presente artigo, trataremos do termo “princípios” genericamente, uma vez que Dworkin utiliza-se do mesmo “para indicar o conjunto de padrões que não são regras”[10].

Ao efetuar a distinção entre regras e princípios, Dworkin assevera:

“A diferença entre princípios jurídicos e regras jurídicas é de natureza lógica. Os dois conjuntos de padrões apontam para decisões particulares acerca da obrigação jurídica em circunstâncias específicas, mas distinguem-se quanto à natureza da orientação que oferecem. As regras são aplicáveis à maneira do tudo-ou-nada. Dados os fatos que uma regra estipula, então ou a regra é valida, e neste caso a resposta que ela fornece deve ser aceita, ou não é válida, e neste caso em nada contribui para a decisão.” (DWORKIN, 2002, p. 39)

Dispõe ainda, ao tratar sobre os princípios:

“(...) Os princípios possuem uma dimensão que as regras não têm – a dimensão do peso ou importância. Quando os princípios se intercruzam, aquele que vai resolver o conflito tem que levar em conta a força relativa de cada um. Esta não pode ser, por certo, uma mensuração exata e o julgamento que determina que um princípio ou uma política particular é mais importante que outra frequentemente será objeto de controvérsia.” (DWORKIN, 2002, p. 42)

Vê-se, pois, que as regras são aplicadas pelos critérios do tudo ou nada e, havendo conflito entre elas, uma delas não pode ser válida. Por outro lado os princípios, ao entrarem em conflito, “interagem uns com os outros, de modo que cada princípio relevante para um princípio jurídico particular fornece uma razão em favor de uma determinada solução, mas não a estipula.”[11]

A dificuldade em identificar esses mencionados princípios como pertencentes ao ordenamento jurídico seria, portanto, o grande problema da teoria de Hart. Para Dworkin, o funcionamento do sistema estaria condicionado pelo papel dos princípios na justificação das decisões judiciais, se mostrando como forma de assegurar a justiça de decisões futuras.

Dworkin afirma que a dificuldade para se encontrar a resposta correta ao caso concreto, não seria justificativa idônea para que se permitisse a abertura do direito à arbitrariedade judicial. O dever do aplicador do direito é de encontrar a melhor decisão, frente a aquelas que lhe são apresentadas por um ordenamento jurídico dotado não apenas de regras jurídicas, mas também de princípios, identificados como um elemento implícito ao próprio direito.

Esse sistema apresentado por Dworkin, ao apontar a indispensabilidade dos princípios na resolução de casos difíceis, visa à obtenção de uma melhor resposta ao caso concreto. Conforme dispõe Carlos Colontonio:

“Esse modelo, da melhor resposta, é oferecido porque o autor do ‘Levando os Direitos a sério’ acredita que o modelo positivista, da discricionariedade diante da incerteza, não retrata a realidade constante da prática forense. Os juízes frequentemente se veem diante de questões controversas, em que não há uma regra certa que permita separar as alegações baseadas em direitos verdadeiros e as alegações com fundamentos espúrios, e, quase sempre, julgam a favor de uma posição em detrimento de outra posição segundo motivos de direito e não de escolha. Em outras palavras, os magistrados, mesmo diante da incerteza, não alegam que estão impedidos de encontrar a resposta verdadeira e, assim, escolhem discricionariamente um caminho. A alegação comum que se encontra nas sentenças dos casos difíceis é a de que, após muito avaliar todas as peculiaridades do caso e das normas, o juiz chegou a uma conclusão sobre qual é a verdadeira resposta do caso.” (COLONTONIO, 2011, p. 63)

Todavia, esse modelo da melhor resposta, não está condicionado unicamente à existência de princípios, visto que complexidade do sistema jurídico, segundo o filósofo, exigiria mais. No entendimento do mesmo autor:

“A tarefa de Dworkin, portanto, será mais complicada do que criar um critério de princípios que se assomará às regras de reconhecimento das regras. Deverá montar um modelo de direito que: (i) identifique como um juiz comprometido com suas funções descobre quais são as regras e princípios existentes em sua jurisdição; (ii) desvende como esse juiz decidirá caso os direitos e obrigações em jogo sejam controversas; e, (iii) determine como será tratada a decisão do magistrado no caso particular, já que Dworkin defende que há uma resposta correta dada pelo direito, mesmo em face da situação de que dois juízes, ambos bem preparados, podem chegar a decisões diversas sobre a mesma lide. O modelo criado com esses propósitos será chamado, no livro ‘Levando os direitos a sério’, de ‘Tese dos Direitos’ (The Rights Thesis).” (COLONTONIO, 2011, p.92)

Verifica-se, portanto, que nos moldes desse sistema descritivo-justificativo proposto por Dworkin, os juízes somente poderiam fundamentar suas decisões segundo padrões próprios do direito. Para tanto, as decisões deveriam ser fundamentadas com base na racionalidade e não na discricionariedade, de modo a se alcançar a equidade, característica essencial do direito.

A inexistência da discricionariedade judicial se mostra como algo totalmente possível na visão de Dworkin, por não existir no ordenamento jurídico falhas que possibilitem o exercício de um poder discricionário pelo juiz. Seria, portanto, o próprio ordenamento jurídico o responsável por dar cabo aos conflitos, tendo em vista a existência dentro do mesmo de regras e princípios. Assim, a resposta correta diante de um caso difícil surgiria dentro de um contexto interpretativo no qual princípios seriam avocados de forma a adequar a decisão conforme o melhor interesse das partes.

Na hipótese de se verificar uma colisão de princípios, na escolha da melhor justificativa ao caso concreto, o problema será resolvido na dimensão do peso. Destarte, havendo um choque entre princípios relevantes à tomada de decisão, o juiz estará obrigado a decidir não por discricionariedade própria e sim sopesando princípios da comunidade onde o caso difícil esteja em debate, optando-se por aquele de maior peso.

Para demonstrar a dinâmica da decisão judicial a partir dos meandros de sua teoria, Dworkin ilustra um modelo de juiz, denominado por ele de Hércules, que por sua onisciência, seria capaz de dar cabo aos casos difíceis e encontrar respostas corretas para todos os problemas.  Assim, havendo conflito entre princípios, a ser resolvido na dimensão do peso, o juiz Hércules realizaria uma apreciação moral da questão conforme o direito, de forma que seja tomada a melhor decisão possível para aplicação da lei ao caso concreto.

Em determinados momentos, porém, esse juiz Hércules, poderia se deparar com justificativas distintas para a resolução dos casos concretos. Nessas situações, Dworkin recomenda que se acolha a resposta que melhor reflita o direito histórico. Sobre esse aspecto da teoria, assim esclarece Cíntia Lages:

“Ao de­cidir um caso difícil Hércules sabe que os outros juízes deci­diram casos que, apesar de não guardarem as mesmas ca­racterísticas, tratam de situações afins. Deve, então, considerar as decisões históricas como parte de uma longa história que ele deve interpretar e continuar, de acordo com suas opiniões sobre o melhor andamento a ser dado à história em questão. Hércules adota o direito como integridade, uma vez que está convencido de que ele oferece tanto uma melhor adequação quanto uma melhor justificativa da prática jurídica como um todo.” (LAGES, 2001, p. 47).

Sob esse aspecto, o juiz Hércules, visando alcançar a integridade jurídica por meio da interpretação, resolveria os casos difíceis por meio da ponderação, levando-se em consideração a moral e a história, respeitando sempre os limites do poder legislativo. Nesse sistema jurídico em que ele atua, não existem lacunas, visto haver um emaranhado de princípios capazes de proporcionar uma justificação equânime para todos os casos apreciados, não havendo, portanto, qualquer espaço destinado ao exercício da discricionariedade judicial.

Sobre o autor
Charles Bahia

Advogado. Mestre em Teoria do Direito pela PUC Minas. Graduando em Filosofia pela UFMG.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BAHIA, Charles. A discricionariedade judicial à luz das teorias de Hart e Dworkin. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3895, 1 mar. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/26585. Acesso em: 24 nov. 2024.

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