1.1 Princípio da prevalência da lei ou legalidade-limite:[1] primado da lei como norma geral, abstrata e impessoal
Os textos constitucionais democráticos consagraram o princípio da legalidade como solução para o controle das atividades e do arbítrio do Estado, de maneira a assegurar a estabilidade e a garantia da liberdade individual. A doutrina majoritária decreta, pois, que, ao lado da função judicial, a estrutura organizatória estatal é composta por uma função legislativa, cuja titularidade reside quase que absoluta no Parlamento, e por uma função executiva voltada exclusivamente para a concreção da lei.
O que significa tal princípio? É o vetor fundamental, basilar da idéia de Estado de Direito: “quer-se o governo das leis, e não o dos homens; impera a rule of law, not of men”.[2] Trata-se, pois, de uma verdadeira “submissão e respeito à lei ou atuação dentro da esfera estabelecida pelo legislador”.[3] Em sentido amplo, refere-se à preferência da lei sobre todas as relações sociais que nela incidam, isto é, sobre toda a comunidade imediatamente atingida.
Canotilho afirma que a prevalência ou primazia da lei reflete-se sob três enfoques:
(1) a lei é o acto da vontade estadual juridicamente mais forte; (2) prevalece ou tem preferência sobre todos os outros actos do Estado, em especial sobre os actos do poder executivo (regulamentos, actos administrativos); (3) detém a posição de topo da tabela da hierarquia das normas, ou seja, desfruta de superioridade sobre todas as outras normas de ordem jurídica, salvo, como é óbvio, as constitucionais.
Na seqüência, finaliza o constitucionalista português que nenhum ato infralegal deve ofender a primazia da lei, caso contrário será considerado inválido. É nesse sentido que a supremacia legal traduz-se em duas dimensões: uma positiva, que se relaciona à exigência de observância ou de aplicação da lei, e outra negativa, que implica a proibição de desrespeito ou de violação da lei.[4]
Dietrich Jesch orienta-se da mesma forma ao apontar que por primazia legal entende-se
la eficácia derogatoria de todos los actos del Estado revestidos de la forma de ley, frente a todos los actos situados em um escalón más bajo de la jerarquía normativa. Otto Mayer, al cual de debe la expresión “prímacia”, la definía del siguiente modo: “la ley es inviolable. Esto quiere decir que la voluntad del Estado que se ha manifestado en esta forma no puede ser jurídicamente abrogada, modificada o invalidada por otro cause, y por otra parte, deroga las manifestaciones de voluntad del Estado ya existentes que se le oponen con otro contenido”.[5]
De tais essas considerações decorre que, para assegurar a preferência da lei e, portanto, sua eficácia e o respeito a ela – inclusive pelo próprio Estado –, a norma legal necessita revestir-se de caráter geral e abstrato e, por isso mesmo, impessoal: de um lado, seus preceitos vinculantes direcionam-se a um número indeterminado, indiscriminado de pessoas e, de outro, seu conteúdo não se refere a uma situação particular e não se esgota, pois, em uma conduta específica e limitada. Essas características próprias da prevalência da lei defendem os indivíduos “contra casuísmos, perseguições ou favoritismos, interditando a dispensa de tratamentos dispares às pessoas”.[6]
1.2 Princípio da reserva legal ou parlamentar ou legalidade-fundamento:[7] especialização do princípio da legalidade
A legalidade-fundamento, em linhas gerais, destina ao domínio legal um núcleo de matérias relevantes, preocupadas, nomeadamente, com a tutela da liberdade e propriedade dos indivíduos, de modo a afastar qualquer espaço para que a Administração atue de forma inaugural. Cabral de Moncada é preciso ao afirmar que o princípio da reserva de lei exprime que a legislação parlamentar sobrepõe-se a qualquer outra, em vista da especial legitimidade de que o Parlamento é credor, o que a torna impossível de ser transportada para outros órgãos do poder estatal.[8]
Essa reserva parlamentar refere-se, pois, a uma especial densidade normativa da lei. Ou seja, pertence exclusivamente à lei a determinação dos interesses públicos que constituem o fim da atividade administrativa, bem como a repartição de atribuições e de competências pelos entes e órgãos da Administração. Por conseguinte, tal reserva implica critério de regulação da normação legislativa, ou seja, da intensidade mínima postulada pela reserva de função (competência e fim) à intensidade máxima exigida pela reserva parlamentar (vinculação, no essencial, do conteúdo).[9]
Desse princípio resulta, então, que as competências das autoridades públicas, bem como “ciertos actos estatales de determinado contenido, sujetos a la ley, solo son conformes a Derecho cuando se dictan sobre la base de uma ley”,[10] de maneira que, para a regulamentação de certos assuntos, é vedado outro comando normativo a não ser o proveniente de um órgão representativo do povo.
Igual opinião é partilhada por Fernández Rodriguez para quem
el significado último de la reserva le ley es el de asegurar que la regulación de los ámbitos de libertad que corresponden a los ciudadanos dependa exclusivamente de la voluntad de sus representantes, por lo que tales ámbitos han de quedar exentos de la acción del Ejecutivo y, en consecuencia, de sus productos normativos, que son los reglamentos.[11]
Consigne-se ainda, tal como o princípio da primazia ou da preferência da lei, que a legalidade-fundamento assenta-se sob dois aspectos, quais sejam: (i) negativo – nas matérias reservadas à lei é vedada a interferência de outra fonte de Direito –; e (ii) positivo – nessas mesmas matérias, a própria lei deve estabelecer o respectivo regime jurídico, de modo que resta proibido declinar sua competência normativa a favor de outras fontes.[12]
Por último, é importante acrescentar que a reserva legal ou parlamentar não se exaure em sua dimensão material, substantiva ou de conteúdo, pois abrange, igualmente, o seu modo de revelação, a sua moldura formal. Trata-se de uma vertente do princípio da preferência da lei, sob a ótica formal, denominada princípio do congelamento do grau hierárquico ou da reserva de lei em sentido formal.[13] Assim é que, ao ser veiculada certa matéria por ato legislativo, o grau hierárquico dessa regulamentação fica congelado, de forma que somente outro ato legislativo de idêntica categoria normativa poderá interpretar, alterar, revogar ou integrar o regime legal anterior.[14]
1.2.1Reserva de lei absoluta ou leis de densidade normativa exaustiva e reserva de lei relativa ou leis de grande ou baixa densidade normativa[15]
A Constituição, de forma geral, permite a distinção das categorias de reserva legal nos seguintes termos: (i) do ponto de vista do órgão competente: quando o exercício da função legislativa para determinadas matérias cabe tão-somente ao Parlamento, de modo a resultar na indelegabilidade de tal função; (ii) do ponto de vista da natureza da matéria: matérias reservadas, por exemplo, à lei complementar e à lei ordinária, e por último, (iii) do ponto de vista do vínculo imposto ao legislador: reserva absoluta e relativa.[16]
A reserva legal pode, então, ser absoluta ou relativa. Aquela se refere propriamente à impossibilidade de a matéria ser disciplinada senão por lei formal editada pelo órgão representativo de forma indelegável, ou seja, sem qualquer possibilidade de intervenção de ato infralegal. Canotilho, com muita propriedade, assevera que essa “reserva de parlamento ou de densificação total é o conjunto de matérias ou de âmbitos materiais que devem ser objecto de regulação através de um acto legislativo editado pelo parlamento. Esta reserva legislativa de parlamento designa-se, por vezes, reserva de lei formal”.[17]
De outra parte, a reserva relativa admite a colaboração subordinada de atos normativos de outra natureza ou de grau inferior, [18] de modo que “el Ejecutivo puede ponerse em actividad em la medida em que se lo permita uma norma de apoderamiento. La amplitud y los límites de sus facultades vienen, por ello, determinados de manera decisiva por la interpretación de la norma de apoderamiento”.[19]
Nesse passo, deve-se reconhecer, desde logo, a possibilidade de desenvolver-se lei formal por ato infralegal, desde que sejam observados, é claro, os requisitos, standards contidos em seus preceitos normativos.[20] Nesse sentido, prossegue o jurista português, “nem sempre a reserva de lei significa que o parlamento deva, ele próprio, disciplinar densificamente determinadas matérias”. Trata-se da denominada reserva de densificação parcial, pois “a lei se limita a definir as bases ou o regime jurídico geral”.[21]
Aliás, Kelsen já destacava que uma norma pode não só comandar, como também admitir e, especialmente, conferir a competência ou o poder de agir a alguém ou a algum ente. A norma superior permite, assim, determinar qual será o órgão competente a produzir a norma inferior.[22]
É indispensável, pois, para a compreensão da atribuição de poderes normativos à Administração Pública, a distinção entre leis de densidade normativa exaustiva e leis de grande ou baixa densidade. Fala-se em reserva legal absoluta ou densidade normativa exaustiva quando se exige que o legislador esgote o tratamento da matéria no relato das normas, sem deixar espaço remanescente para a atuação normativa dos agentes públicos que aplicá-la-ão. Será, todavia, relativa a reserva legal quando se admitir a atuação subjetiva do aplicador da norma ao dar-lhe concreção.[23]
Nessa perspectiva, defende-se que a legalidade pode definir e atribuir, com normalidade, poderes à Administração. A ação administrativa, nessa situação, representa o exercício de tais poderes, exercício que criará, modificará, extinguirá, protegerá e exercerá relações jurídicas concretas.[24]
Sem embargo, portanto, é de se entender que, em determinados setores, especialmente naqueles em que o Estado intervém na ordem econômica, o princípio da legalidade assume a feição de princípio da preeminência da lei e não da reserva absoluta. Logo, nesse segmento, o papel reservado à Administração Pública é muito mais amplo, porquanto à lei caberá fixar tão-somente os padrões gerais delimitadores, e aos atos infralegislativos, como os regulamentos, a ultrapassar a simples operacionalização ou execução das normas legais, caberá o preenchimento de conteúdos normativos nela delineados.[25]
A propósito, o veículo autorizador da atribuição de poderes normativos às autoridades públicas é a lei-plano ou lei de bases ou lei-quadro, também chamada, modernamente, de lei estandartizada. Revelam-se tais normas comandos caracterizados por vetores ou por bases gerais de um determinado regime jurídico, de maneira que se confere à Administração Pública a responsabilidade pelo seu desenvolvimento. Examina-se, assim, uma distribuição de competência entre a Assembléia e o Estado.[26]
Consoante lição de Cabral de Moncada, o conceito de leis-quadro veio ao encontro da necessidade da nova realidade legislativa de intervenção do Estado, cujas diferenças de conteúdo normativo explicam-se pelas particularidades das matérias e pela dimensão dos valores que o legislador depara nessa área. Nessa medida, a nova noção de lei é alheia ao conteúdo normativo porque o Estado que age nesse domínio está movido por preocupações de eficácia e de rendimento que, naturalmente, fazem as suas exigências aos conteúdos das normas legislativas.
E prossegue.
O caminho a seguir seria, como se disse, o de reduzir a lei parlamentar (ou diploma equiparado) ao essencial das disciplinas, concebendo agora a essencialidade numa perspectiva vertical e não horizontal, ou seja, quanto à densidade a imprimir às disciplinas, deixando para os órgãos de complementarização à tarefa de desenvolvimento da lei.[27]
Representam, então, essas leis normas-objetivo ou normas-quadro, porquanto implicam a incidência de comandos normativos regulamentares em matérias de grande complexidade e suscetíveis de constantes mudanças. As autoridades públicas, dessa forma, têm muito poder de integração do conteúdo da vontade do legislador, visto que a lei de bases apenas estabelece parâmetros gerais da regulamentação a ser efetuada pela Administração Pública.[28]
Parece-nos, assim, que a expressão lei de bases ou, mais concretamente, a designação do conteúdo da legislação como um conteúdo de bases aponta para um critério óbvio: essa lei deverá conter os caminhos da nova ordenação, vale dizer, as diretrizes básicas da norma a elaborar, das quais esta será mero desenvolvimento daquela. Não se permite, como já foi assinalado, que a lei de bases conceda os poderes à Administração de maneira indeterminada ou genérica e muito menos em branco.[29]
Sobre o assunto, a respeito do Direito alemão, mas em lição análoga ao nosso Direito Público, o Tribunal Constitucional Federal da Alemanha já decidiu que
no se le da satisfacción solo com que exista um apoderamiento legal formal para el actuar de la Administración, sin que la ley norme en cuanto al contenido el actuar de la Administración, es decir, defina las condiciones bajo las cuales deba actuar la Administración y el contenido con el cual la misma debe obrar, y con ello a la vez delimitar y concretar el apoderamiento. El princípio de la legalidad de la Administración pierde su sentido político-constitucional y pierde su función de proteger la libertad y la propiedad del ciudadano frente a la arbitrariedade estatal, allí donde el legislador confiere a la Administración un apoderamiento general que en verdad sólo contiene una dispensa general, y concretamente de los derechos fundamentales.[30]
Aufere-se, pois, que o princípio da legalidade não implica, necessariamente, que cada ato administrativo corresponda a uma norma legal expressa a qual vincule a autoridade em todos os aspectos, pois a legalidade possui amplitudes diversas, de modo a admitir maior ou menor rigidez. É por tal razão que se distingue legalidade e reserva de lei formal: aquela permite que o legislador estatue de forma mais genérica e deixe maior discricionariedade à Administração Pública para regular a matéria; esta exige legislação mais detalhada e, portanto, com menor ou nenhum espaço de atuação normativa para o Administrador. Fala-se, nesse caso, em legalidade estrita, ou seja, é a Constituição que reserva a matéria à competência do legislador.[31]
1.2.2Reserva de lei material ou em sentido amplo e impróprio e reserva de lei formal ou em sentido restrito e próprio
A distinção entre lei formal e lei material ou substancial[32] é um “conceito desenvolvido no constitucionalismo para captar as relações de força e equilíbrio de poderes na estrutura monárquico-constitucional”.[33] Essa doutrina surgiu no fim do século XIX e é devida, sobretudo, ao Direito Público alemão, principalmente, a Paul Laband e Jellineck. Aquele afirma que “es ley em sentido material toda norma jurídica com carácter vinculante, de lo cual se deduce la identificación que él hace entre ley material, concepto de norma jurídica e incluso de derecho”. A partir desse conceito material, Laband aponta, então, que a lei possui, sempre e necessariamente, um conteúdo que afeta de alguma maneira a esfera jurídica do particular, seja sua liberdade, seja propriedade.[34]
De fato, Laband distingue duas categorias de normas: a primeira, regra de direito, objetiva determinar a condição jurídica dos indivíduos, em cuja esfera jurídica está, dessa forma, destinada a produzir efeitos; a segunda, que não é regra de direito, não cria qualquer direito ou obrigação, uma vez que só se refere ao funcionamento interno do aparelho administrativo. Essa segunda categoria, por não ter conteúdo jurídico, não pode ser tratada como lei material, ainda que tenha sido ditada em forma de lei.[35]
De outra parte, George Jellinek, chefe da escola do Positivismo jurídico-administrativo, conquanto mantenha o conceito próximo a Laband, em algumas questões se separa substancialmente daquele.
Así, por ejemplo, no considera que el presupuesto pueda ser um acto administrativo, como establece Laband para salir de la situación conflictiva creada sobre el tema entre la Dieta y el Gobierno, sino que debe ser promulgado por ley, puesto que la creación de un impuesto o la inclusión de una cláusula de ejecución deben ser objeto de una ley material.[36]
A lei, portanto, para Jellinek é sempre regra de direito.[37] Certo, pois, é que ambos consideram que a lei material é tratada como a proposição ou norma jurídica, de índole geral, abstrata e impessoal, independente da sua origem.[38] Nessa seqüência, são consideradas leis todos os atos do Estado dotados de normatividade jurídica, proviessem de onde proviessem. Já a lei em sentido formal é qualquer ato emanado do Poder Legislativo, no modo prescrito à tramitação legislativa, independente do seu conteúdo.[39]
Assim, a norma legal produzida por um Parlamento é lei formal. Já a lei que advém de qualquer fonte diversa de uma assembléia representativa é lei material. Esta, portanto, “pode emanar tanto dos órgãos dotados de competência legislativa como da administração pública, enquanto a lei formal emana, exclusivamente, de órgãos dotados de atribuição legiferante pela Constituição”.[40]
Ainda sobre a distinção entre lei formal e lei material, cabe destacar as lições do saudoso Hely Lopes Meirelles, para quem aquela é a norma geral e abstrata de conduta aprovada pelo Legislativo e sancionada pelo Executivo. A lei em sentido material, por sua vez, é toda norma editada pelo Poder Público, nomeadamente os decretos regulamentares expedidos pelo Executivo. Portanto, em outra nomenclatura, lei em sentido restrito e próprio é exclusivamente a norma legislativa e, em sentido amplo e impróprio, é toda imposição geral do Estado, provinda de qualquer órgão de seus poderes, sobre matéria de sua competência.[41]
Examina-se, também, no Direito Público, orientação doutrinária que identifica a lei material, diferentemente da lei formal, em torno da cláusula de liberdade e de propriedade. Ou seja, cabe lei material ou, ao menos, autorização de lei material, quando ocorra eventual intervenção na esfera jurídico-patrimonial do cidadão, pois essa lei é tratada como regra delimitadora da esfera das atividades das pessoas. Esse critério não tem, pois, qualquer relação com a generalidade da lei; ao contrário, preocupa-se unicamente com a modificação ou não da situação jurídica dos indivíduos. Desse modo, a título exemplificativo, as leis que regulam o regime dos funcionários públicos são apenas leis administrativas e não regras, leis jurídicas criadoras de direitos.[42]
Finalmente, vale observar o entendimento de San Tiago Dantas, para quem a distinção entre lei material e lei formal pode ser aplicada sob a ótica do princípio da igualdade. Assim, algumas normas legais, a despeito de terem a forma de lei, nem sempre o são por lhe faltarem requisitos substanciais deduzidos pela Constituição, que se referem ao princípio da igualdade. Leis, então, que fixam um tratamento concreto para um caso individual, só são constitucionais quando se limitarem a aplicar à espécie uma norma geral preexistente. Ou seja, a norma legislativa em causa, não sendo mais que um ato administrativo com forma de lei, deve ser apreciada como um ato do Poder Executivo e, se contiver mais do que a lei geral autoriza, fere o princípio da igualdade, de modo a tornar-se inconstitucional.[43]