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Análise sobre a viabilidade da restituição de tributos indiretos

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Agenda 13/02/2014 às 11:22

Embora o contribuinte de direito tenha legitimidade para pleitear a restituição do indébito tributário, dificilmente obterá êxito, tendo em vista os óbices criados pela Fazenda Pública e endossados pela atual jurisprudência.

1     INTRODUÇÃO

A finalidade primordial da existência do Estado é a prestação de serviços voltados a atender às necessidades básicas e essenciais de sua população. A maioria dos tributos – notadamente aqueles com função fiscal – é arrecadada justamente para que haja recursos financeiros que tornem o Estado apto a exercer suas atividades. Dessa forma, os tributos constituem a receita derivada do Estado, e, sem dúvida, representam a maior fonte de financiamento da atividade estatal.

A arrecadação dos tributos deve seguir o princípio da legalidade. Se, por algum motivo, os tributos forem pagos de forma indevida, fora dos ditames legais, e, assim, feito de uma maneira eivada de inconstitucionalidade, surge, para o sujeito passivo, o direito à restituição.

Assim como o Fisco tem o direito de cobrar o que lhe é devido, o contribuinte também tem o direito de reaver aquilo que foi pago equivocadamente. Não é aceitável que o Estado crie obstáculos à restituição de tributos, ferindo o princípio da isonomia.

É irrelevante que o contribuinte tenha pago o tributo espontaneamente ou mediante cobrança, uma vez que, no Direito Tributário, a vontade da parte não é considerada; apenas a lei pode determinar quando um tributo é devido, e, portanto, o direito à restituição de tributos indevidos deve ser respeitado.

Em especial, os tributos considerados indiretos, por apresentarem características peculiares, são alvo de constantes discussões doutrinárias, não havendo consenso quanto ao tratamento que lhes cabe no ordenamento jurídico brasileiro.

Corriqueiramente, a Fazenda Pública busca negar o direito do sujeito passivo à restituição, ignorando a lógica e o bom senso de que é não é correto locupletar-se a partir do erro de outrem. Conforme os argumentos utilizados pelo Fisco, notadamente em relação aos tributos indiretos, primeiro, o contribuinte de direito, que integra a relação obrigacional

tributária não pode pleitear a restituição porque, segundo a Fazenda, procedeu ao repasse do encargo e raramente tem a chance de provar que não o fez. Ao mesmo tempo, também alega que o contribuinte de fato não tem direito à repetição porque sequer é parte dessa relação jurídico-tributária. Como se não bastasse, o Fisco defende que, entre seu próprio enriquecimento sem causa e o do contribuinte, o primeiro é justificável, pois se converteria em benefício para toda a sociedade – conforme visto no início desse texto.

O capítulo inicial trata da fundamentação que respalda o direito à restituição dos tributos pagos indevidamente, com base na Constituição Federal e no Código Tributário Nacional, atribuindo destaque ao relevante suporte principiológico.

O capítulo seguinte cuida das definições e das distinções referentes a pontos indispensáveis para uma melhor compreensão do tema central desse trabalho monográfico. Objetiva-se, portanto, tecer esclarecimentos preliminares, para só então adentrar no cerne da matéria objeto desse estudo.

O último capítulo expõe a análise da viabilidade da restituição dos chamados “tributos indiretos”, assunto que dá título a essa monografia. Para isso, foram verificados os requisitos dispostos no artigo 166 do Código Tributário Nacional, bem como o entendimento consolidado nos Tribunais Superiores.


2 FUNDAMENTOS CONSTITUCIONAIS E LEGAIS DO DIREITO À REPETIÇÃO DE TRIBUTOS

A restituição de tributos pagos indevidamente tem fundamento na Constituição da República Federativa do Brasil (CRFB/88), na medida em que a Carta Magna dispõe, por exemplo, dos princípios da inafastabilidade da jurisdição (art. 5º, XXXV), da legalidade (arts. 5º, II e 150, I), da vedação ao locupletamento sem causa (art. 5º, caput), da equidade (art. 5º, caput e inciso I), assim como encontra, também, base em lei infraconstitucional, no caso, a Lei 5.172, de 25 de outubro de 1966, denominada de Código Tributário Nacional, como será analisado a seguir.

2.1 Direito à tutela jurisdicional – Artigo 5º, XXXV, da Constituição da República Federativa do Brasil (CRFB/88)

A Constituição Federal Brasileira de 1988, em seu artigo 5º, XXXV, estabelece que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”, tratando-se, claramente, do princípio da inafastabilidade da jurisdição, também chamado de direito de ação, princípio do livre acesso ao Judiciário, ou, segundo a dicção de Pontes de Miranda, princípio da ubiquidade da Justiça (LENZA, 2009).

José de Albuquerque Rocha (2002, p. 53) define o princípio do acesso à justiça como sendo “a possibilidade assegurada a todos pela Constituição Federal de acudir aos órgãos do Poder Judiciário para pedir a proteção jurisdicional do Estado”. Conforme ensinamento do autor, quando ocorre violação da ordem social, o direito deverá ser imposto, de modo a efetivar os valores que ele expressa.

Salvo pontuais exceções, a autotutela foi abolida da sociedade moderna brasileira. Consoante o ensinamento de Gonçalves (2010, p. 02), isso teve início a partir do fortalecimento do Estado, quando este assumiu, em caráter de monopólio, o poder-dever de resolver conflitos. Dessa forma, as partes não poderiam mais usar da própria força nem de métodos similares para solucionar oposições de interesses, ficando proibido o exercício arbitrário das próprias razões. Assim, o Estado passou a elaborar normas jurídicas, a fim de que fossem aplicadas ao caso concreto.

No mesmo sentido, Rocha (2002, p. 88) assinala que “a jurisdição é, justamente, a função estatal que tem a finalidade de garantir a eficácia do direito em última instância no caso concreto, inclusive recorrendo à força, se necessário”. Em sábias palavras, Pontes de Miranda (1979, t.I, p. XX) doutrina:

Se o Estado chamou a si a decisão das questões, a função de justiça, criou a todos os interessados a pretensão à tutela jurídica, a que corresponde o seu dever de prestar aos figurantes o que prometera. Seria absurdo que se visse no Estado o dever do Estado, a sua obrigação de resolver os litígios, e não se visse no autor, no réu e nos que podem intervir ou serem chamados o direito e a pretensão a que a entidade estatal faça aquilo que retirou aos que lutariam em justiça de mão própria.

De acordo com o entendimento de Cândido Rangel Dinamarco (2004, p. 128), um dos fatores que motivam o Estado a proibir que a sociedade pratique o exercício espontâneo da jurisdição é “a consciência do escopo social de pacificação mediante a eliminação de conflitos e insatisfações”. Além disso, o autor também ressalta a importância de “educar para a defesa de direitos próprios e respeito aos alheios”.

Conforme o magistério de Machado Segundo (2010, p. 216), “as normas jurídicas podem ter suas prescrições violadas, fazendo-se necessária a composição do conflito com a restauração do direito malferido”. De acordo com o autor, quando um direito subjetivo se torna exigível, surge uma pretensão do detentor do direito de vê-lo adimplido. Se não ocorrer o cumprimento dessa pretensão, nascerá um conflito. Gonçalves (2010, p. 03) conclui:

No cumprimento do dever de editar normas de conduta, o Estado inicialmente regrou os comportamentos que os indivíduos deveriam ter em sociedade. Em caso de desobediência a elas, o prejudicado poderia comparecer em juízo para reclamar do Estado-juiz a formulação de norma para o caso concreto, suscetível de sanção e hábil para compelir o renitente a cumprir a sua obrigação. E o Estado, que já regulava o comportamento dos indivíduos em sociedade, passou a editar normas e princípios regulamentadores do processo, por meio do qual se emite a regra concreta de conduta capaz de solucionar o conflito de interesses.

Analisando o tema, Lenza (2009, p. 699) afirma que as expressões “lesão” e “ameaça a direito”, contidas no inciso em análise, garantem livre acesso ao Judiciário para postular, respectivamente, a tutela repressiva e a preventiva, deixando evidente que, de fato, o Poder Judiciário, de maneira imparcial e independente, poderá apreciar qualquer situação que confronte as normas jurídicas vigentes. Alexandrino e Vicente Paulo (2008, p. 144) acrescentam que “(...) não só a lei está impedida de excluir determinadas matérias ou controvérsias da apreciação do Judiciário; a inafastabilidade de jurisdição, sendo garantia individual fundamental, está gravada como cláusula pétrea (CF, art. 60, § 4º, IV), insuscetível de abolição (...)”.

Tanto os direitos públicos subjetivos, delineados na Constituição Federal, quanto os direitos decorrentes de normas infraconstitucionais são resguardados pela tutela jurisdicional. Com base nisso, Carrazza (2010, p. 461-462) assevera que o contribuinte poderá, “a qualquer tempo, ir ao Judiciário para que este Poder decida, com imparcialidade, se as exigências do Fisco encontram, ou não, acústica na Constituição e nas leis”.

Relevante salientar que, apesar de todo o exposto, o direito à tutela jurisdicional estatal, consoante Gonçalves (2010, p. 30), “sofre limitações que lhe são naturais e restringem sua amplitude, mas nem por isso constituem ofensa ao princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional”. Para se obter provimento de mérito, é necessário que sejam preenchidas as condições da ação, quais sejam, legitimidade, possibilidade jurídica do pedido e interesse de agir, bem como sejam atendidos os pressupostos processuais. O autor esclarece, ainda, que “essas limitações não ofendem a garantia da ação, pois constituem restrições de ordem técnico-processual, necessárias para a própria preservação do sistema e o bom convívio das normas processuais”, sendo, portanto, plausíveis.

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Salvo casos excepcionais, como a hipótese prevista no art. 217, § 1º, da CRFB/88, referente à Justiça Desportiva, que condiciona a garantia da ação ao esgotamento das vias administrativas, qualquer outra restrição ou condição imposta pela lei que apresente óbice ao exercício do direito de acesso ao Judiciário será flagrantemente inconstitucional (GONÇALVES, 2010).

No Brasil, de modo geral, não há a denominada “instância administrativa de curso forçado”, portanto, não é necessário esgotar a via administrativa para que se possa buscar a tutela perante o Poder Judiciário. Entretanto, uma vez escolhida a via judicial, haverá renúncia tácita da via administrativa. Isso não representa uma afronta à garantia constitucional, mas sim, uma regra de economia processual (ALEXANDRINO, 2008).

Nesse sentido, Machado Segundo (2010, p. 217) elucida que:

No âmbito tributário, caso o conflito não seja equacionado na esfera administrativa, seja porque o administrado não a utilizou, seja porque não se satisfez com o resultado, sempre haverá a possibilidade de acesso ao Poder Judiciário, único competente para impor às partes uma solução definitiva para o conflito. (...) Quando o contribuinte obtém êxito ainda no processo administrativo não há propriamente a “imposição” desse êxito à Administração (como ocorre no Poder Judiciário), pois é a própria administração, através do órgão a tanto competente, que está reconhecendo o direito do administrado, fazendo, com esse reconhecimento, com que desapareça o conflito.

Carrazza (2010, p. 467) evidencia que, assim como o Estado tem o direito de instituir e cobrar tributos, “tem o dever de assegurar ao contribuinte a possibilidade de exercer o controle da juridicidade das imposições tributárias, sem prejuízo do direito ao amplo acesso ao Judiciário, assegurado pelo art. 5º, XXXV, da CF”.

Conforme orientação de Dinamarco (2004, p. 114), para que o acesso à justiça atinja sua plenitude, tornando-se mais célere e capaz de oferecer resultados mais coerentes e efetivos, é necessário “remover os males resistentes à universalização da tutela jurisdicional e aperfeiçoar internamente o sistema”, evitando que o processo se resuma a “um exercício improdutivo de lógica jurídica”. É inaceitável que o Estado crie barreiras intransponíveis ao acesso à tutela jurisdicional.

2.2 Princípios

O consagrado doutrinador Celso Antônio Bandeira de Mello (2007, p. 922-923), em seu magistério, leciona que

princípio é, por definição, mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas, compondo-lhes o espírito e servindo de critério para  sua exata compreensão e inteligência exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido harmônico.

 Conforme o ensinamento de Sacha Calmon (2008, p. 95), os princípios auxiliam na interpretação das leis, sobrepondo-se a estas. Salienta, ainda, que os princípios constitucionalizados tem aplicação obrigatória. Sua função não é a de estabelecer condutas, mas de orientar padrões, valores. Machado Segundo (2010, p. 13) acrescenta que os direcionamentos propostos pelos princípios devem ser seguidos “na medida do que for jurídica e factualmente possível, na elaboração e na aplicação de outros princípios, e especialmente das regras jurídicas”.

Para a melhor compreensão de todo o ordenamento jurídico ou mesmo de uma área específica do Direito, é necessário analisar e entender o conteúdo e o alcance dos princípios. Alexandre (2012, p. 79-80) ressalta que, enquanto os princípios, a depender do caso concreto, podem ser ponderados, as regras não são susceptíveis de sopesamento; ou elas são aplicadas, ou não. Por esse motivo, a atual doutrina considera que alguns dos chamados princípios constitucionais tributários, são, na verdade, regras. Machado Segundo (2010, p. 14) esclarece, por fim, que “essa é uma questão terminológica sem muita relevância, pois o que importa é que cada norma seja observada e aplicada conforme a sua estrutura lógica, pouco importando o nome que se lhe dê”.

 O Ministro Celso de Mello (apud Bonfim, 2004), salienta que

o respeito incondicional aos princípios constitucionais evidencia-se como dever inderrogável do Poder Público. A ofensa do Estado a esses valores – que desempenham, enquanto categorias fundamentais que são, um papel subordinante na própria configuração dos direitos individuais ou coletivos – introduz um perigoso fator de desequilíbrio sistêmico e rompe, por completo, a harmonia que deve presidir as relações, sempre tão estruturalmente, desiguais, entre as pessoas e o Poder.

2.2.1 Princípio da legalidade

Considerado um dos mais importantes princípios constitucionais, uma vez que “é informado pelos ideais de justiça e de segurança jurídica, valores que poderiam ser solapados se à administração pública fosse permitido, livremente, decidir quando, como e de quem cobrar tributos” (AMARO, 2009), o princípio da legalidade está positivado, em sua forma genérica, no artigo 5º, II, da Constituição Federal de 1988, ao dispor que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”.

Por sua vez, Paulo de Barros Carvalho (2000, p. 155) considera que, em relação ao Direito Tributário, esse princípio “ganha feição de maior severidade, como se nota na redação do art. 150, I: Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: I – exigir ou aumentar tributo sem lei que o estabeleça”.

No mesmo sentido, Paulsen (2011, p. 163), em seu magistério, doutrinou que:

A legalidade tributária, em verdade, é específica e de maior rigor que a legalidade geral. A legalidade tributária, estampada no art. 150, I, da CF e interpretada em consonância com outros artigos constitucionais que lhe revelam o sentido, como o art. 153, §1º, implica a reserva absoluta de lei, de modo que a instituição dos tributos se dê não apenas com base legal, mas diretamente através da lei. Veja-se, ainda, que a instituição por lei consta do conceito de tributo, no art. 3º do CTN.

Carrazza (2010, p. 258) refere-se ao princípio da legalidade como sendo “um dispositivo fundamental, que impede que o Estado aja com arbítrio em suas relações com o indivíduo (...)”, tratando-se, portanto, de uma cláusula pétrea. E, de fato, tamanha é sua importância que serve como fundamento à restituição do indébito tributário, no momento em que quantias forem pagas indevidamente, atingindo o patrimônio do contribuinte, em decorrência de uma tributação que não esteja em consonância com os ditames legais (MARQUEZI JUNIOR, 2013).

Cerqueira (2000, p. 261-262), em suas sábias palavras, professa:

Como reflexo disso, o particular tem o direito de ser tributado apenas nos termos de regras tributárias individuais e concretas válidas absolutamente; qualquer pagamento respaldado por norma válida apenas relativamente ofenderá ao Sistema Tributário Brasileiro, e em especial ao princípio da estrita legalidade tributário, e há de ser repetido.

Todo o direito positivado sofre influência direta do princípio da legalidade, uma vez que o principal objetivo do direito é normatizar condutas, e isso é feito a partir da criação tanto de direitos quanto de deveres. É a legalidade que determina os limites objetivos da normatização, buscando evitar que o Estado pratique arbitrariedades, e assim, resguardando a segurança (CARVALHO, 2000).

No mesmo sentido, Machado (2012, p. 59) leciona que “ainda que a lei não represente a vontade do povo, e por isto não se possa afirmar que o tributo é consentido por ter sido instituído em lei, ainda assim, tem-se que o ser instituído em lei garante maior grau de segurança nas relações jurídicas”. O mesmo autor acrescenta que a normatização amparada pelo princípio da legalidade implica numa “relação de tributação [que] não é uma relação simplesmente de poder, mas uma relação jurídica”.

Seabra Fagundes (apud Martins, 1997) enfatiza que a legalidade impõe limitações às atividades da Administração Pública, subordinando-as à ordem jurídica. E ressalta que não é suficiente, apenas, que se tenha sempre a lei como fonte, pois “é preciso, ainda, que se exerça segundo a orientação dela e dentro dos limites nela estabelecidos. Só assim o procedimento da Administração Pública é legítimo”.

Por fim, Hugo de Brito Machado (2006, p. 59) assevera que:

No Brasil, como, em geral, nos países que consagram a divisão dos Poderes do Estado, o princípio da legalidade constitui o mais importante limite aos governantes na atividade de tributação. Por isto mesmo, teóricos a serviço do Poder já cuidam de construir teses com o objetivo de amesquinhá-lo. Entre estas a que coloca a solidariedade como algo moderno e que no denominado Estado Social deveria se sobrepor à legalidade, colocada como algo inseparável do individualismo. O Poder busca, sempre, formas para contornar os limites que o Direito vai a muito custo construindo.

2.2.2 Princípio da isonomia

O princípio da isonomia ou da igualdade está genericamente expresso no início do caput do artigo 5º da Constituição Federal de 1988, ao enunciar que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza (...)”. Em reforço a esse princípio geral, especificamente para o Direito Tributário, a Carta Magna dispõe, ainda, no inciso II do art. 150, o seguinte:

Art. 150 - Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:

(...)

II - instituir tratamento desigual entre contribuintes que se encontrem em situação equivalente, proibida qualquer distinção em razão de ocupação profissional ou função por eles exercida, independentemente da denominação jurídica dos rendimentos, títulos ou direitos;

(...)

Trata-se, nesse caso, do princípio da isonomia tributária, que norteia o Direito Tributário (ALEXANDRINO, 2009). A respeito disso, Lacombe (2000, p. 16) doutrinou:

A isonomia é o princípio nuclear de todo o nosso sistema constitucional. É o princípio básico do regime democrático. Não se pode mesmo pretender ter uma compreensão precisa de Democracia se não tivermos um entendimento real do alcance do princípio da isonomia. Sem ele não há República, não há Federação, não há Democracia, não há Justiça. É a cláusula pétrea por excelência. Tudo o mais poderá ser alterado, mas a isonomia é intocável, bem como suas decorrências lógicas.

Explica Machado Segundo (2010, p. 19-20) que esse princípio apresenta um aspecto formal, que se refere à aplicação do Direito de maneira igualitária para todos, e outro substancial, também nomeado de aspecto material, que prega um tratamento diferenciado para situações que também sejam diferenciadas. Por sua vez, Machado (apud MACHADO SEGUNDO, 2010, p. 19-20), em atenção à importância do aspecto substancial do princípio da isonomia, menciona em sua obra que o aspecto formal, embora necessário, não define inteiramente o princípio em estudo, pois, como já explicava Aristóteles, e, posteriormente, Leon Duguit e Rui Barbosa, a verdadeira igualdade tem por base tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na medida de suas desigualdades.

Conforme ensinamento de Paulo Bonavides (2008, p. 376), o princípio da igualdade merece grande destaque, uma vez que representa “o centro medular do Estado social e de todos os direitos de sua ordem jurídica”.

O princípio da isonomia fica mesclado ao princípio da justiça no momento em que são feitos alguns questionamentos, como, por exemplo, qual o critério deve ser utilizado pelo legislador para fazer as diferenciações e qual a finalidade destas. É importante frisar que os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade devem ser sempre resguardados na avaliação de validade dessas discriminações (MACHADO SEGUNDO, 2010), pois, como bem lembrou Alexandrino (2008, p. 109), é inadmissível que “o parâmetro diferenciador seja arbitrário, desprovido de razoabilidade, ou deixe de atender a alguma relevante razão de interesse público. Em suma, o princípio da igualdade não veda tratamento discriminatório entre indivíduos, quando há razoabilidade para a discriminação”.

No mesmo sentido, Machado (2004, p. 51) leciona que:

As dificuldades no pertinente ao princípio da isonomia surgem quando se coloca a questão de saber se o legislador pode estabelecer hipóteses discriminatórias e qual o critério de discrime que pode validamente utilizar. Na verdade a lei sempre discrimina. Seu papel fundamental consiste precisamente na disciplina das desigualdades naturais existentes entre as pessoas. Alei, assim, forçosamente discrimina. O importante, portanto, é saber como será válida essa discriminação. Quais os critérios admissíveis, e quais os critérios que implicam lesão ao princípio da isonomia. A este propósito existem formulações doutrinárias interessantes, entre as quais se destaca aquela segundo a qual o critério de discrime deve ter um nexo plausível com a finalidade da norma.

Machado Segundo (2010, p. 20) aponta uma vinculação tríplice ao princípio da isonomia envolvendo o legislador, o administrador e o juiz, “os quais não podem permitir o surgimento de situações que favoreçam injustificadamente um contribuinte em detrimento dos demais, ou, o que é mais comum, beneficiem a Fazenda Pública em detrimento dos contribuintes em geral”. Celso Antônio Bandeira de Mello (p. 23, 1999), assevera que “a igualdade é princípio que visa a duplo objetivo, a saber: de um lado propiciar garantia individual (...) contra perseguições e, de outro, tolher favoritismos”.

Com relação à Fazenda Pública, Machado Segundo (2010, p. 20), em consonância com o aspecto material do princípio da isonomia, concorda, em parte, que esse Órgão merece tratamento diferenciado, justamente porque é diferente dos cidadãos, entretanto, ressalta que “o problema é o demasiado elastério que dão a ela, fazendo-a justificativa para toda sorte de abusos e injustificados privilégios”. E arremata:

É importante ter em mente que o “tratamento desigual para os desiguais” não é uma válvula de escape para arbitrariedades, mas sim, como visto acima, uma solução racional diretamente relacionada com um propósito legítimo. Por isso mesmo, é evidente que a condição “diferenciada” da Fazenda Pública não é suficiente para validar todos os privilégios que eventualmente se lhe concedem (...).

Para Xerez (p. 339, 2001), o princípio da isonomia restaria violado caso fosse admitido que o Estado permanecesse com quantias referentes a tributos pagos de forma indevida, uma vez que o contribuinte que efetuou esse pagamento ficaria em desvantagem quando comparado a outros contribuintes que não fizeram o mesmo.

2.2.3 Princípio da vedação ao locupletamento sem causa

Muitas vezes, o princípio da vedação ao locupletamento ou enriquecimento sem causa confunde-se com a própria exigência da equidade, referindo-se ao preceito latino que enuncia “suum cuique tribuere”, que significa “dar a cada qual o que lhe é devido” (HILDEBRAND, online).

Em outro giro, Marquezi Junior (2013, p. 92-93) aborda esse princípio como sendo uma consequência do direito à propriedade, uma vez que o tributo pago indevidamente compõe o patrimônio financeiro de quem o pagou, e esclarece que “não é possível que as pessoas que compõem a Federação, sejam elas físicas ou jurídicas, privadas ou públicas, enriqueçam de forma não amparada pelo ordenamento vigente ou ao menos não vedada pelo ordenamento, quando tratamos dos particulares”.

O mesmo autor salienta que “uma pilastra importantíssima do sistema constitucional pátrio reside no direito de propriedade, previsto também como cláusula pétrea do sistema, prescrito na cabeça do artigo 5º e reforçado no seu inciso XXII da Carta Magna”. Afirma, ainda, que, assim como os demais direitos previstos na Constituição Federal, o direito à propriedade não é pleno, sendo suscetível de restrições por outros direitos e princípios constitucionais.

Marquezi Junior (2013, p. 92-93) destaca que a tributação é um dos meios existentes para atingir o direito à propriedade, uma vez que torna possível a “transferência de riqueza do administrado para o Estado”. Seguindo esse pensamento, tem-se que, caso a propriedade seja atingida por uma incidência tributária eivada de ilegalidade, haverá o direito à restituição dos valores pagos indevidamente, verificando-se, portanto, uma relação interligada dos princípios da legalidade e da propriedade, convergindo para a proibição do enriquecimento imotivado. Em seu magistério, o autor enfatiza que “a propriedade somente pode ser atingida, nas formas previstas pela Constituição Federal e, quando estamos diante da tributação (forma prevista para atingir a propriedade), esta deve respeitar a legalidade”.

Marçal Justen Filho (apud Marquezi Junior, 2013) concluiu que, “se a Constituição assegura o direito de propriedade, não se compadece com tal garantia a previsão de uma atividade tributária que possa destruí-lo”.

Para Celso Ribeiro Bastos (apud Mattos, 2001) os termos “propriedade” e “bens econômicos” são sinônimos:

A propriedade tornou-se, portanto, o anteparo constitucional entre o domínio privado e o público. Neste ponto reside a essência da proteção constitucional: é impedir que o Estado, por medida genérica ou abstrata, evite a apropriação particular dos bens econômicos ou, já tendo esta ocorrido, venha a sacrificá-la mediante um processo de confisco.

No mesmo sentido, Alexandre (2012, p. 407), argumenta que “não é justo que alguém obtenha um aumento patrimonial sem que tenha concorrido para tanto, sendo apenas beneficiário de erro de outrem”, e, portanto, o princípio da vedação ao enriquecimento injustificado fundamenta o direito à restituição de tributos pagos indevidamente.

Segundo Marquezi Junior, as condições trazidas pelo artigo 166 do CTN para a restituição de tributos pagos indevidamente constituem um mecanismo criado pelo ordenamento jurídico “para evitar que o enriquecimento sem causa ocorra, justamente porque ele é vedado pelo sistema”, e, assim, resguardar o direito à propriedade, sendo essa sua função teleológica ou finalística.

Marcelo Cerqueira (2000, p. 405), em sua obra intitulada “Repetição do indébito tributário”, leciona que o artigo 166 do Código Tributário Nacional não pode ser interpretado apenas literalmente, desvinculado do restante do ordenamento jurídico. Consoante seu ensinamento:

Havendo pagamento de tributo em desconformidade com o ordenamento jurídico, por imperativo legal (CTN, art. 165) e constitucional (princípio da estrita legalidade tributária), fundamentos de validade imediato e remoto do direito à repetição do indébito, o montante indevidamente recolhido aos cofres públicos há de ser restituído, e restituído ao próprio contribuinte, ou seja, ao sujeito passivo da obrigação tributária.

Ainda em defesa das condições impostas pelo artigo 166 do CTN como sendo um meio de evitar o enriquecimento desprovido de causa, Marquezi Junior (2013, p. 94) afirma que o mencionado dispositivo legal não apresenta nenhuma inconstitucionalidade, “pois se mostra como um mecanismo hábil a evitar que aqueles que não tiveram sua propriedade tolhida angariem, por meio da repetição, patrimônio de outrem”, apontando para a mesma intenção verificada ao se proibir o enriquecimento sem causa.

Importante salientar que o princípio da vedação ao locupletamento sem causa também encontra respaldo no princípio da moralidade, consagrado no artigo 37, caput, da Constituição Federal de 1988, e assim, ambos fundamentam o direito à restituição do indébito tributário.

Nas palavras de Troianelli (2001, p. 121) acerca do tema, “é certo que o respeito do Estado pela legalidade e moralidade deve sobrepor-se à sua necessidade de caixa, uma vez que aquele é finalidade do Estado e esta é mero meio do qual o Estado se utiliza para atingir seus fins”. Para o autor, o princípio da moralidade apresenta repercussões diferentes para o contribuinte e para o Estado:

Enquanto a moralidade é para o contribuinte, sob o aspecto jurídico positivo constitucional, questão de consciência, é para o Estado imperativo jurídico. Assim, embora o enriquecimento injustificado por parte do contribuinte possa ser imoral, não será, necessariamente, ilícito. Já o enriquecimento injustificado por parte do Estado será, além de imoral, necessariamente ilícito, pois constitucionalmente vedado.

Verifica-se, portanto, que a atuação da Administração Pública deve ter esteio na ética defendida pelo princípio da moralidade, sendo-lhe proibida a criação de meios que dificultem ou impeçam os cidadãos de exercer seus direitos (XEREZ, 2001).

2.3 Hipóteses legais para a restituição de tributos – Artigo 165 do Código Tributário Nacional

Conforme analisado acima, a Constituição Federal de 1988 enuncia uma série de princípios que alicerçam o direito de pleitear a restituição do indébito tributário. Cerqueira (2000, p. 405) orienta que, ao contrário desses princípios constitucionais, que fundamentam esse direito de modo remoto ou mediato, o artigo 165 da Lei 5.172, de 25 de outubro de 1966 – Código Tributário Nacional – traz, em seu bojo, o fundamento de validade imediato da repetição dos tributos pagos indevidamente.

Art. 165 - O sujeito passivo tem direito, independentemente de prévio protesto, à restituição total ou parcial do tributo, seja qual for a modalidade do seu pagamento, ressalvado o disposto no § 4º do artigo 162, nos seguintes casos:

I - cobrança ou pagamento espontâneo de tributo indevido ou maior que o devido em face da legislação tributária aplicável, ou da natureza ou circunstâncias materiais do fato gerador efetivamente ocorrido;

II - erro na edificação do sujeito passivo, na determinação da alíquota aplicável, no cálculo do montante do débito ou na elaboração ou conferência de qualquer documento relativo ao pagamento;

III - reforma, anulação, revogação ou rescisão de decisão condenatória.

Troianelli (2001, p. 120), lembra que “embora o direito à restituição do indébito encontre-se assegurado, no âmbito infraconstitucional, pelo artigo 165 do CTN, o disposto neste artigo decorre imediatamente da observância dos princípios constitucionais (...)”. Assim, seguindo os ditames da Carta Magna, o Código Tributário Nacional elenca as hipóteses – que serão analisadas em capítulo posterior – a partir das quais nascerá o direito à restituição.

A rigidez do sistema constitucional brasileiro limitou a atuação da legislação derivada também no que se refere às normas de tributação (MARQUES; GONÇALVES, 2001). Os referidos autores enfatizam o ensinamento de Kelsen acerca da “estrutura escalonada do ordenamento jurídico”, a partir da qual

uma norma busca seu fundamento de validade em outra norma jurídica, da qual é derivada. Essa segunda norma, por sua vez, deriva de outra norma de grau hierárquico ainda mais elevado, e assim sucessivamente, encontrando-se no ápice da “pirâmide normativa” a Constituição, fundamento último de validade do sistema positivo. (...) Acima dela – a Constituição – vislumbrar-se-ia apenas a norma hipotética fundamental, ficção jurídica que opera como pressuposto lógico necessário à interrupção do processo de imputação.

É válido ressaltar que, embora a Lei 5.172 seja de 1966, e, à época, aprovada como lei ordinária, foi recepcionada pela Constituição Federal de 1988 com nível de lei complementar. Nesse sentido, Paulo de Barros Carvalho (2000, p. 59-60) esclareceu:

Não excede recordar que a Lei n. 5.172/66 – o Código Tributário Nacional – foi aprovada como lei ordinária da União, visto que naquele tempo a lei complementar não apresentava o caráter ontológico-formal que só foi estabelecido com o advento da Constituição de 1967. Todavia, com as mutações ocorridas no ordenamento anterior, a citada lei adquiriu eficácia de lei complementar, pelo motivo de ferir matéria reservada, exclusivamente, a esse tipo de ato legislativo. E, com tal índole, foi recepcionada pela Constituição Federal de 1988.

Mariz de Oliveira (2001, p. 356) enfatiza que, apesar de o fundamento imediato do direito à restituição de tributos ser encontrado no CTN, é na Constituição Federal que está o fundamento último desse direito, e, assim, “um tributo pode requerer restituição por uma causa imediata que represente uma ruptura de preceito constitucional, sem ter havido violação de lei ordinária, ou a causa imediata pode ser a violação direta de uma norma infraconstitucional”.

No mesmo sentido, Mörschbächer (2001, p. 254) destaca que o Código Tributário Nacional, ao tratar da repetição do indébito em artigos específicos, não concedeu novos direitos ao contribuinte, uma vez que estes já foram originados da própria Constituição Federal de 1988. O intuito desses dispositivos seria, tão-somente, cumprir as funções que cabem à lei complementar, conforme preceitua o inciso III, do artigo 146, da Carta Magna, referindo-se a “estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária”.  E, em seu magistério, ainda acrescenta:

Fê-lo, sem dúvidas, no intuito e na incumbência de traçar interpretações e procedimento o mais possível uniformes em todo o território nacional, considerando, especialmente, a existência de três entidades políticas distintas e, mesmo dentro destas, o grande número de Estados e o infinito número de Municípios, com isto procurando pôr a salvo os cidadãos contra inúmeros e muitas vezes abusivos entendimentos diferentes com respeito à mesma matéria.

Sobre a autora
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GADELHA, Maria Alice Sousa. Análise sobre a viabilidade da restituição de tributos indiretos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3879, 13 fev. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/26705. Acesso em: 5 nov. 2024.

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