8. DA AÇÃO CONTROLADA
8.1. O novo conceito legal de Ação Controlada
A própria Lei 12.850/13 conceitua a Ação Controlada: “art. 8º - Consiste a ação controlada em retardar a intervenção policial ou administrativa relativa à ação praticada por organização criminosa ou a ela vinculada, desde que mantida sob observação e acompanhamento para que a medida legal se concretize no momento mais eficaz à formação de provas e obtenção de informações”.
A principal alteração da conceituação legal reside na inclusão dos órgãos administrativos como legitimados para realizar a Ação Controlada, conhecida pela Doutrina também como Flagrante Postergado ou Diferido. Desta forma, incluiu o novel estatuto os agentes integrantes da Agência Brasileira de Inteligência, fiscais das receitas federais e estaduais, entre outros. Não é mais, por conseguinte, ato exclusivo das instituições policiais.
8.2. O fim da Ação Controlada Descontrolada
Não obstante a recenticidade da Lei 12.850/13, o fim ou não da chamada Ação Controlada Descontrolada (nome dado pela Doutrina) trata-se de uma das questões mais controversas ocasionadas pelo novo Diploma. A Lei anterior (Lei 9.034/95) já tratava do instituto da Ação Controlada, porém, apenas timidamente o conceituava, razão pela qual a Doutrina afirmava de forma uníssona que para sua aplicação não se fazia necessária uma autorização judicial. Desta forma, o flagrante postergado aplicado às Organizações Criminosas, ao contrário do que ocorria na Lei 11.343/06 (Lei de Drogas), era descontrolado, desprovido de limitação jurisdicional, ficando a cargo da Autoridade Policial realizar a operação e só posteriormente comunicar o fato ao Magistrado.
Com efeito, o §1º do art. 8º da nova Lei, alterando esse cenário, trouxe o seguinte texto: “O retardamento da intervenção policial ou administrativa será previamente comunicado ao Juiz competente que, se for o caso, estabelecerá os seus limites e comunicará ao Ministério Público” (grifos nossos). Destarte, antes de agir o Delegado de Polícia deverá, agora, comunicar sua pretensão e os motivos que ensejaram essa escolha no caso concreto, justificando, portanto, o diferimento do flagrante ao órgão jurisdicional competente.
De acordo com o texto legal, o Magistrado, conforme o caso, estabelecerá os limites da ação, podendo inclusive, no nosso entendimento, recusá-la, caso entenda que não exista necessidade da postergação ou não haja proporcionalidade da medida. Com isso, questiona-se: não poderia o Magistrado desautorizar a Ação Controlada? Não dependeria o Delegado de Polícia, portanto, de uma autorização, ainda que tácita, do Juiz? São esses os questionamentos que já causam furor na Doutrina.
Há quem defenda que, embora a Lei traga o vocábulo “comunicação”, na verdade o legislador referiu-se a uma espécie de “autorização”, de “controle” jurisdicional, seguindo a mesma linha da Lei de Drogas de 2006. Assim, o Delegado, ao comunicar e justificar seu anseio ao Juiz, dependeria de uma concordância deste, que pode limitar a ação parcialmente ou em seu todo.
Para Rogério Sanches, contudo, não há necessidade de uma autorização judicial: “Questão tormentosa se refere à necessidade de prévio mandado judicial para que seja autorizado o retardamento da ação. A revogada Lei nº 9.034/95 (lei das organizações criminosas), quando tratava singelamente da matéria em seu art. 2º, inc. II, não exigia a prévia autorização judicial. Era o entendimento da jurisprudência. Já a lei de drogas (Lei nº 11.343/2006), como se depreende do teor do caput de seu art. 53, é expressa ao exigir o mandado judicial para a diligência”[12]. Adiante, explica o ilustre professor que quando a Lei 12.850/13 exige autorização judicial nas diligências, como ocorre na Infiltração de Agentes, ela traz expressamente esta obrigatoriedade.
Sem dúvida, será um dos temas que gerará debates na Doutrina e nos Tribunais Superiores dentro de breve. Na nossa ótica, seja qual for a corrente adotada, estamos diante do fim da Ação Descontrolada, como consequência da obrigatoriedade de comunicação prévia e da possibilidade de limitação pelo Juiz.
9. DA COLABORAÇÃO PREMIADA
9.1. Introdução
O instituto da delação premiada foi inserido no ordenamento jurídico brasileiro no ano de 1990, quando da edição da Lei Federal nº 8.072, a chamada Lei dos Crimes Hediondos. Trata-se de instrumento de política criminal importado do Direito Italiano que tem por objetivo precípuo combater o pacto do silêncio absoluto que predomina diante das organizações criminosas.
Preliminarmente, impende assinalar que, apesar de ser um eficaz instrumento à persecução penal, o procedimento carecia de regulamentação que garantisse o devido processo legal e, principalmente, a segurança jurídica e pessoal ao delator. Por oportuno, com o advento da Lei 12.850/13, a medida foi precisamente regulamentada, adquirindo contornos normativos claros, de modo a garantir maior eficácia e exequibilidade.
Nas palavras do emérito Guilherme de Souza Nucci: “A delação premiada significa a possibilidade de se reduzir a pena do criminoso que entregar o(s) comparsa(s). É o ‘dedurismo’ oficializado, que, apesar de moralmente criticável, deve ser incentivado em face do aumento contínuo do crime organizado. É um mal necessário, pois trata-se da forma mais eficaz de se quebrar a espinha dorsal das quadrilhas, permitindo que um de seus membros possa se arrepender, entregando a atividade dos demais e proporcionando ao Estado resultados positivos no combate à criminalidade”[13].
9.2. Análise comparativa da Delação Premiada no Ordenamento Jurídico Brasileiro
A novel lei não apenas proporciona uma grande evolução ao combate das organizações criminosas, como também revoluciona ao alterar o nomen juris da medida para Colaboração Premiada. No ordenamento jurídico brasileiro, o instrumento é conhecido como Delação Premiada e não é exclusivo ao combate das organizações criminosas, permeando diversos dispositivos legais, dentre os quais: Código Penal (arts. e 159, §4º, e 288, p.u.), Lei do Crime Organizado – nº 9.034/05 (art. 6º), Lei dos Crimes contra o Sistema Financeiro Nacional – nº 7.492/86 (art. 25, §2º), Lei dos Crimes de Lavagem de Capitais – nº 9.613/88 (art. 1º, §5º), Lei dos Crimes contra a Ordem Tributária e Econômica – nº 8.137/90 (art. 16, p.u.), Lei de Proteção a vítimas e testemunhas – nº 9.807/99 (art. 14), Nova Lei de Drogas – nº 11.343/06 (art. 41), e, mais recentemente, na Lei que trata do Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência – nº 12.529/2011 (art. 86). Nesse sentido, em caráter didático, colacionaremos cada hipótese para melhor análise:
A) Lei 7.492/86 (Crimes Financeiros): “Art. 25. São penalmente responsáveis, nos termos desta lei, o controlador e os administradores de instituição financeira, assim considerados os diretores, gerentes (Vetado). §1º Equiparam-se aos administradores de instituição financeira (Vetado) o interventor, o liquidante ou o síndico. §2º Nos crimes previstos nesta Lei, cometidos em quadrilha ou co-autoria, o co-autor ou partícipe que através de confissão espontânea revelar à autoridade policial ou judicial toda a trama delituosa terá a sua pena reduzida de um a dois terços”.
B) Lei 8.072/90 (Crimes Hediondos): “Art. 8º Será de três a seis anos de reclusão a pena prevista no art. 288 do Código Penal, quando se tratar de crimes hediondos, prática da tortura, tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins ou terrorismo. Parágrafo único. O participante e o associado que denunciar à autoridade o bando ou quadrilha, possibilitando seu desmantelamento, terá a pena reduzida de um a dois terços”.
C) Lei 8.137/90 (Crimes Tributários): “Art. 16. Qualquer pessoa poderá provocar a iniciativa do Ministério Público nos crimes descritos nesta lei, fornecendo-lhe por escrito informações sobre o fato e a autoria, bem como indicando o tempo, o lugar e os elementos de convicção. Parágrafo único. Nos crimes previstos nesta Lei, cometidos em quadrilha ou co-autoria, o co-autor ou partícipe que através de confissão espontânea revelar à autoridade policial ou judicial toda a trama delituosa terá a sua pena reduzida de um a dois terços”.
D) Lei 9.269/96 (Altera o §4º do art. 159 do CPB): “(Extorsão mediante sequestro) Art. 159 - Seqüestrar pessoa com o fim de obter, para si ou para outrem, qualquer vantagem, como condição ou preço do resgate: (...) §4° Se o crime é cometido em concurso, o concorrente que o denunciar à autoridade, facilitando a libertação do seqüestrado, terá sua pena reduzida de um a dois terços".
E) Lei 9.613/98 (Lavagem de Capitais e ativos): “Art.1. (...) §5º A pena poderá ser reduzida de um a dois terços e ser cumprida em regime aberto ou semiaberto, facultando-se ao Juiz deixar de aplicá-la ou substituí-la, a qualquer tempo, por pena restritiva de direitos, se o autor, coautor ou partícipe colaborar espontaneamente com as autoridades, prestando esclarecimentos que conduzam à apuração das infrações penais, à identificação dos autores, coautores e partícipes, ou à localização dos bens, direitos ou valores objeto do crime”.
F) Lei 11.343/06 (Tráfico ilícito de entorpecentes): “Art. 41. O indiciado ou acusado que colaborar voluntariamente com a investigação policial e o processo criminal na identificação dos demais co-autores ou partícipes do crime e na recuperação total ou parcial do produto do crime, no caso de condenação, terá pena reduzida de um terço a dois terços”.
G) Lei 9.807/99 (Proteção a testemunhas e réus colaboradores): “(CAPÍTULO II DA PROTEÇÃO AOS RÉUS COLABORADORES) Art. 13. Poderá o Juiz, de ofício ou a requerimento das partes, conceder o perdão judicial e a conseqüente extinção da punibilidade ao acusado que, sendo primário, tenha colaborado efetiva e voluntariamente com a investigação e o processo criminal, desde que dessa colaboração tenha resultado: I - a identificação dos demais co-autores ou partícipes da ação criminosa; II - a localização da vítima com a sua integridade física preservada; III - a recuperação total ou parcial do produto do crime. Parágrafo único. A concessão do perdão judicial levará em conta a personalidade do beneficiado e a natureza, circunstâncias, gravidade e repercussão social do fato criminoso”; “Art. 14. O indiciado ou acusado que colaborar voluntariamente com a investigação policial e o processo criminal na identificação dos demais co-autores ou partícipes do crime, na localização da vítima com vida e na recuperação total ou parcial do produto do crime, no caso de condenação, terá pena reduzida de um a dois terços”.
H) Lei 9.034/95 (Antiga Lei de Organização Criminosa): “Art. 6º Nos crimes praticados em organização criminosa, a pena será reduzida de um a dois terços, quando a colaboração espontânea do agente levar ao esclarecimento de infrações penais e sua autoria”.
9.3. Colaboração Premiada na Nova Lei de Organizações Criminosas
O mecanismo de colaboração premiada estatuído na Lei 12.850/13 apresenta grandes alterações ao que era previsto na revogada Lei 9.034/05, trazendo requisitos objetivos e subjetivos à concessão do benefício processual. Quanto aos requisitos objetivos, a lei expõe que a delação deve resultar em: I - a identificação dos demais coautores e partícipes da organização criminosa e das infrações penais por eles praticadas; II - a revelação da estrutura hierárquica e da divisão de tarefas da organização criminosa; III - a prevenção de infrações penais decorrentes das atividades da organização criminosa; IV - a recuperação total ou parcial do produto ou do proveito das infrações penais praticadas pela organização criminosa; V - a localização de eventual vítima com a sua integridade física preservada. Ademais, o Ministério Público poderá deixar de oferecer denúncia se o colaborador não for o líder da organização criminosa ou for o primeiro a prestar efetiva colaboração, desde que alcançados os resultados objetivos retro citados. Imperioso destacar que não estamos diante de requisitos cumulativos, ou seja, basta que a delação atinja um dos resultados previstos na norma para fins de aplicabilidade do instituto.
Quanto aos requisitos subjetivos, a lei explicita que, em qualquer caso, a concessão do benefício levará em conta a personalidade do colaborador, a natureza, as circunstâncias, a gravidade e a repercussão social do fato criminoso e a eficácia da colaboração. Nessa seara, em seu brilhante artigo sobre a novel lei, Eugênio Pacelli posiciona-se com louvor: “No particular, o legislador brasileiro parece ter um fetiche com a personalidade do agente! Ora, não há tecnologia ou ciência suficientemente desenvolvida, ou cujo conhecimento técnico seja seguro quanto aos vários e possíveis diagnósticos acerca da personalidade de quem quer que seja! Certamente não se trata de questão jurídica, o que, já por aí, tornaria o Juiz refém de laudos médicos, psicológicos ou psiquiatras”[14].
No que concerne à natureza jurídica da colaboração premiada, a nova lei se reveste de causas de diminuição e substituição de pena e perdão judicial, como se vê: “Art. 4º O Juiz poderá, a requerimento das partes, conceder o perdão judicial, reduzir em até 2/3 (dois terços) a pena privativa de liberdade ou substituí-la por restritiva de direitos daquele que tenha colaborado efetiva e voluntariamente com a investigação e com o processo criminal, desde que dessa colaboração advenha um ou mais dos seguintes resultados”.
O Princípio da Irretroatividade da norma penal é previsto no artigo 5º, inciso XL, da Constituição Federal, contudo, com uma importante ressalva: “a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu”. Em termos comparativos, pode-se constatar que a L. 12.850/13 apresenta-se como lexmellius, ou seja, norma que apresenta contornos mais benéficos ao réu ao prever a possibilidade de aplicação de perdão judicial. Assim, o novel diploma legal poderá retroagir a crimes ocorridos no passado - Teoria da Atividade – a fim de perquirir o Direito Subjetivo Constitucional do réu em ter aplicada a norma mais favorável, ainda que superveniente, seguindo o Princípio da Extratividade da norma penal.
Nesse contexto, o ilustre Eugênio Pacelli aduz que estamos diante de norma mais favorável e que deve ser estendida às demais hipóteses de delação premiada previstas em nosso ordenamento jurídico. Conquanto o brilhantismo do referido autor, à luz do Princípio da Especialidade e Princípio da Reserva Legal, entendemos que as consequências jurídicas da novel colaboração premiada somente são aplicáveis às organizações criminosas, respeitando a especificidade das demais previsões do instituto.
Outro ponto relevante da alteração é a exigência da colaboração voluntária, ao revés do que era requerido pela antiga norma, que exigia colaboração espontânea. Como se sabe, são conceitos díspares, situação em que colaboração espontânea é aquela que não pode sofrer qualquer influência externa, partindo de motivação interna do agente; enquanto a voluntária aceita influências externas. Destarte, acertadamente veio a inovação legislativa, pois, segundo a antiga lei, mero aconselhamento por parte de terceiros seria suficiente para refutar a concessão da benesse processual.
Em caráter revolucionário, permite-se a suspensão do prazo para oferecimento da denúncia e da prescrição por até 6 (seis) meses, prorrogáveis por igual período, até que sejam cumpridas as medidas de colaboração. Parece-nos que o legislador, nesse ponto, entende a complexidade de investigações envolvendo organizações criminosas e proporciona uma ampliação dos direitos do Estado a fim de garantir maior eficácia da persecução penal.
Ademais, a L. 12.850/13 traz o que chamamos de “Colaboração Posterior”, hipótese em que, se a colaboração for posterior à sentença, a pena poderá ser reduzida até a metade ou será admitida a progressão de regime ainda que ausentes os requisitos objetivos. Como se vê, o instituto da colaboração tem cabimento em sede de inquérito policial, fase processual e de execução da pena. Todavia, para concessão do benefício, o réu deverá apresentar condições subjetivas positivas, pois a lei somente traz exceção ao requisito objetivo.
9.4. Do requerimento e representação da medida de colaboração premiada
No que tange ao requerimento e representação da medida, considerando a relevância da colaboração prestada, o Ministério Público, a qualquer tempo, e o Delegado de Polícia, nos autos do inquérito policial, com a manifestação do Ministério Público, poderão requerer ou representar ao Juiz pela concessão de perdão judicial ao colaborador. Havendo discordância entre a opinio juris do Ministério Público e a convicção do Magistrado, aplica-se o Princípio da Devolução, de modo que a divergência deverá ser encaminhada para o Procurador Geral de Justiça para fins de aplicação do que dispõe o art. 28 do Código de Processo Penal. Por óbvio, não se aplica o referido procedimento quando a divergência ocorre entre a autoridade policial e o Ministério Público, hipótese em que o juiz deverá analisar a concessão da medida representada pelo Delegado de Polícia, mesmo que o Ministério Público seja desfavorável.
O dispositivo retro citado ratifica a independência técnico-jurídica da autoridade policial preconizada na Lei 12.830/13, situação em que a decisão sobre o cabimento da medida será realizada posteriormente pelo juiz. Sobre essa temática, é de grande relevância para a sociedade que não deixemos brigas institucionais – como a que houve com a PEC 37 - deturparem a hermenêutica que deve ser extraída do novo diploma legal, pois uma persecução penal hígida e eficaz exige a cooperação do Ministério Público em ampla simbiose com a Polícia Judiciária.
Convém notar que a norma torna o Juiz equidistante ao acordo de colaboração premiada a fim de preservar a imparcialidade. Assim, infere-se que o Juiz não poderá participar da formalização do acordo, sendo responsável apenas pela sua homologação, desde que preenchidos os requisitos da Lei.
Não obstante a norma seja recente, já há vozes na doutrina assinalando a inconstitucionalidade do dispositivo sob alegação de que o diploma está concedendo capacidade postulatória ao Delegado de Polícia. Data maximavenia, a tese não merece prosperar. A nova norma tão somente concede à autoridade policial a possibilidade de realizar o acordo e representar pela concessão da colaboração premiada que, a posteriori será avaliada pelo Juiz. Essa exegese parte da interpretação lógico-sistemática de todo ordenamento jurídico, pautando-se na capacidade que o Delegado possui em representar pelas demais medidas cautelares do ordenamento jurídico. Ademais, no Brasil, ao contrário de alguns países europeus, o Delegado de Polícia não atua sob delegação do Ministério Público, possuindo, assim, autonomia técnico-jurídica para atuar, com discricionariedade, na persecução penal pré-processual.
Outrossim, por amor incondicional ao debate, importante colacionar a tese de inconstitucionalidade da representação do Delegado de Polícia quanto ao pedido de concessão da delação premiada emitida pelo emérito Eugênio Pacelli: “A Constituição da República comete à polícia, inquinada de judiciária, funções exclusivamente investigatórias (art. 144, §1º, IV, e §4º). E, mais, remete e comete ao Ministério Público a defesa da ordem jurídica (art. 127) e a promoção privativa da ação penal (art. 129, I). Ora, a atribuição privativa da ação penal pública significa a titularidade acerca do juízo de valoração jurídico-penal dos fatos que tenham ou possam ter qualificação criminal. Não se trata, evidentemente, e apenas, da simples capacidade para agir, no sentido de poder ajuizar a ação penal, mas, muito além, decidir acerca do caráter criminoso do fato e da viabilidade de sua persecução em juízo (exame das condições da ação penal). Em uma palavra: é o Ministério Público e somente ele a parte ativa no processo penal de natureza pública (ações públicas). E o que fez a Lei 12.850/13? Dispôs que o Delegado de Polícia, nos autos do inquérito policial, com a manifestação do Ministério Público, poderá representar ao Juiz pela concessão de perdão judicial ao colaborador (art. 4º, §2º)!!! Naturalmente, o mesmo dispositivo defere semelhante capacidade e legitimidade também ao Ministério Público! O desatino não poderia ir tão longe…”[15].
Respeitosamente, a medida pleiteada pela autoridade policial possui inequívoca natureza investigativa, compatibilizando-se com a exegese do art. 144, §1º, IV, e §4º da Constituição Federal. Nesse diapasão, a colaboração proporcionará ao Delegado diligenciar com maior precisão através das informações adquiridas pelo delator e, principalmente, culminará em eficaz colheita probatória e grande instrumento formador da justa causa. Ademais, a tese retro citada não encontra amparo legal e conceitual, visto que o Ministério Público – órgão de controle externo das atividades investigativas – poderá se manifestar acerca da representação da autoridade policial. Assim, em consonância com a sistemática processual, pode-se constatar que a titularidade da ação penal do Ministério Público não fora, de forma alguma, suprimida pelo novel diploma normativo. Se assim o fosse, a autoridade policial careceria da legitimidade em representar por todas as demais medidas cautelares disciplinadas em nosso ordenamento jurídico.
Dando continuidade ao tema, o pedido de homologação do acordo será sigilosamente distribuído, contendo apenas informações que não possam identificar o colaborador e o seu objeto. Convém notar que a Lei 12.850/13 compatibiliza-se com o entendimento sufragado pela Súmula Vinculante 14, pois, segundo expressa previsão legal, o pedido de concessão da colaboração criminosa será sigiloso, de modo a garantir a higidez probatória. Destarte, sob a inteligência da referida jurisprudência constitucional, nem mesmo o advogado do suposto autor do crime poderá ter acesso ao referido pedido, uma vez que o conhecimento do acordo pode não só prejudicar a colheita probatória como colocar em risco a integridade do delator.
O acesso aos autos será restrito ao Juiz, ao Ministério Público e ao Delegado de Polícia, como forma de garantir o êxito das investigações, assegurando-se ao defensor, no interesse do representado, amplo acesso aos elementos de prova que digam respeito ao exercício do direito de defesa, devidamente precedido de autorização judicial, ressalvados os referentes às diligências em andamento.
O acordo de colaboração premiada deixa de ser sigiloso assim que recebida a denúncia, observados os direitos do colaborador em: I - usufruir das medidas de proteção previstas na legislação específica; II - ter nome, qualificação, imagem e demais informações pessoais preservados; III - ser conduzido, em juízo, separadamente dos demais coautores e partícipes; IV - participar das audiências sem contato visual com os outros acusados; V - não ter sua identidade revelada pelos meios de comunicação, nem ser fotografado ou filmado, sem sua prévia autorização por escrito; VI - cumprir pena em estabelecimento penal diverso dos demais corréus ou condenados.
9.5. O acordo de colaboração
Realizado o acordo, o respectivo termo, acompanhado das declarações do colaborador e de cópia da investigação, será remetido ao Juiz para homologação, o qual deverá verificar sua regularidade, legalidade e voluntariedade, podendo, para este fim, sigilosamente, ouvir o colaborador na presença de seu defensor. Caso a proposta não atenda aos requisitos legais, o Juiz poderá recusar homologação à proposta ou adequá-la ao caso concreto. Não se pode olvidar que o colaborador assina o termo de cooperação antes de iniciar a colaboração e, supervenientemente, no momento da sentença, o Juiz apreciará os termos do acordo homologado e sua eficácia processual.
O termo de acordo da colaboração premiada deverá ser feito por escrito e conter: I - o relato da colaboração e seus possíveis resultados; II - as condições da proposta do Ministério Público ou do Delegado de Polícia; III - a declaração de aceitação do colaborador e de seu defensor; IV - as assinaturas do representante do Ministério Público ou do Delegado de Polícia, do colaborador e de seu defensor; V - a especificação das medidas de proteção ao colaborador e à sua família, quando necessário. Por conseguinte, as informações pormenorizadas da colaboração serão dirigidas diretamente ao Juiz a que recair a distribuição, que decidirá no prazo de 48 (quarenta e oito) horas.
Outrossim, a norma prevê a possibilidade de retratação do acordo de colaboração, hipótese em que as provas autoincriminatórias produzidas pelo colaborador não poderão ser utilizadas exclusivamente em seu desfavor. Trata-se de exegese do nemotenetur se detegere, tutelando o direito do réu em quedar-se inerte, de modo a não produzir provas contra si mesmo. In casu, enquanto em colaboração, o delator está protegido por estar comungando com o interesse estatal, de modo que as provas produzidas não poderão ser utilizadas em seu desfavor se decidir não mais cooperar. Nada mais justo, pois, mesmo que opte por cessar a medida colaborativa, há grande possibilidade do agente já ter auxiliado de forma satisfatória em termos de diligência ou mesmo em âmbito processual, para fins de formação da convicção do Juiz quanto a todo o complexo estrutural da organização criminosa.
Corroborando com a sistemática constitucional, em todos os atos de negociação, confirmação e execução da colaboração, o colaborador deverá estar assistido por defensor. Assim, nos depoimentos que prestar, o colaborador renunciará, na presença de seu defensor, ao direito ao silêncio e estará sujeito ao compromisso legal de dizer a verdade.
Quanto à validade probatória da colaboração premiada, a lei é clara e afirma que nenhuma sentença condenatória será proferida com fundamento apenas nas declarações de agente colaborador. Como se vê, a própria norma mitiga de certa forma o valor processual da colaboração premiada, sendo necessário que ela esteja colimada com demais aparatos probatórios para fins de ulterior condenação.