O modelo dominante de pesquisa em Direito e alguns aspectos da prática profissional jurídica: a pinguinização insistente.
A pesquisa em Direito no Brasil, nos últimos 30 anos, passou por um inegável avanço, ainda que bastante timidamente. Por outro lado, as outras ciências humanas atingiram patamares de excelência internacionais no campo da pesquisa científica. O atraso do Direito em relação às demais ciências humanas pode estar ligado ao isolamento da disciplina em relação às outras áreas e à confusão resultante da dicotomia entre prática profissional e pesquisa acadêmica.
Entre os anos 80 e 90 do final do século passado, o ensino do Direito esteve muito mais voltado para a profissionalização, ligando-se diretamente à prática e não à pesquisa. Este fenômeno, denominado por Marcos Nobre (2005) como “visão estreita do direito”, começa a ser alvo de questionamentos somente a partir dos anos 90, quando passa a ser visto, efetivamente como um problema e, como tal, passível de uma tentativa de solução.
Se por um lado a pesquisa científica das Ciências Humanas alcançou avanços surpreendentes, por outro, o Direito não parece ter vivenciado esta experiência com a mesma intensidade. Os estudos na área do Direito se mantêm apoiados em manuais de 20 ou 40 anos atrás, o que pode ser considerado um dos fatores de seu atraso. Avanços na área da pesquisa científica do Direito houve sim, mas não como ocorreram com as Ciências Humanas em geral.
Um dos objetivos do professor Marcos Nobre (2005) ao chamar a nossa atenção para esta visão estreita do Direito é exatamente romper com esse modelo hoje dominante da pesquisa nessa área. Além disso, é necessário identificar as causas da extrema distinção que há, no mundo jurídico brasileiro, entre prática, teoria e ensino.
O ensino jurídico, como já vimos, é acrítico e dogmático, fundado em uma teoria não menos dogmática e acrítica, em que pese a existência de uma produção acadêmica diferenciada aqui ou ali. Em geral, ensina-se aos alunos que o mundo se regula pelos manuais de Direito e não o contrário. (NOBRE, 2005, p.29) A prática jurídica, por sua vez, tem sua origem nesse mesmo contexto do ensino e da teoria, mas toma uma direção peculiar, como bem exemplifica a forma de se elaborar uma petição inicial ou uma peça de defesa. Nesta, o jurista recolhe o material (teses, princípios, doutrinas, decisões, etc.) que corrobore seu objetivo na lide, com interesses e estratégia advocatícia definidos, descartando sumariamente aquilo que é contrário. Não há uma preocupação real com os fatos ou mesmo com o direito em jogo. O que importa é encontrar o texto autorizador, que abrirá as portas daquela pretensão. É um notável trabalho de recorte e colagem de idéias até se construir um todo “lógico” que permita alcançar o convencimento daquele que dirá o direito: o juiz. Este, da mesma forma, buscará apenas os argumentos já existentes (leis, doutrinas, jurisprudência, etc.), autorizadores, para a sua decisão, desconsiderando, na maioria das vezes, a existência de uma sociedade complexa e desconhecendo sua capacidade criativa de direitos, sendo um mero reprodutor técnico daquilo que já foi decidido ou elaborado dogmaticamente. Desta forma, não é o aplicador do Direito que se abre para o fenômeno diante do qual se encontra, mas a exigência de se confirmar a sabedoria da Lei, que abarca tudo, que regula até o irregulável, é que força a trazer para a dogmática a especulação que, de secundária, olhando-se a finalidade, se torna relevante. (NOBRE, 2005, p. 79)
Nas faculdades de Direito, há alunos iniciantes que rejeitam a forma dogmática de se ensinar. Mas passado o primeiro ano, estes alunos já estarão adaptados à idéia de que o mundo se regula pelos manuais. (NOBRE, 2005) É o início da pinguinização. Na prática profissional, nas mais variadas formas de se exercer o conhecimento jurídico, os pinguins iniciados na graduação chegam aos altos postos da organização dos pinguins e reforçam a idéia de que para se alcançar o sucesso, é necessário pinguinizar-se. A pinguinização vai, pouco a pouco, atingindo a todos aqueles que lidam com as questões mais fundamentais da vida humana, logo da sociedade, que são o direito e a justiça. Quem ousaria ser pavão numa organização tão crente em si mesma e tão poderosa? O que fica para a sociedade neste caso é a resposta do juiz-pinguim, na vã tentativa de convencer o jurisdicionado de que sua decisão é justa: “é assim, porque é assim que tem que ser” (dogma!). E quem não é pinguim sai insatisfeito e infeliz...
Outra forma de prática profissional discutida por Marcos Nobre é o parecer jurídico que, não muito diferentemente de uma petição inicial ou de uma peça de defesa, recolhe o material doutrinário, jurisprudencial e os devidos títulos legais unicamente em função da tese a ser defendida; não procura no conjunto do material um padrão de racionalidade e inteligibilidade, para depois formular sua tese explicativa. A resposta, num parecer, já está dada de antemão. É um tipo de investigação científica que já possui uma resposta antes de perguntar ao material. Apenas seleciona-se o material que interessa para defender o que já se sabia. (NOBRE, 2005, p. 31 e 32)
No âmbito acadêmico do Direito, as produções monográficas de conclusão de curso na graduação, as dissertações de mestrado e as teses de doutorado, salvo raras exceções, são grandes paráfrases da dogmática jurídica pinguinizante. Isso inclui a maioria dos livros vendidos nas livrarias jurídicas brasileiras. O professor Tercio Sampaio Ferraz Jr, da Faculdade de Direito da USP, afirma que, no Brasil, comumente vemos um autor reproduzindo um saber. Muitas vezes compra-se um livro com 40% de reprodução de texto legal e o resto aparece em reprodução parafrásica.[11] Isto significa dizer que 100% de uma obra da área do Direito pode ser aquilo que já foi dito, dito de outra maneira. O exercício da paráfrase, então, será o ingrediente indispensável para a manutenção da chamada visão estreita do Direito. Dizendo aquilo que já foi dito com outras palavras estaremos sendo pavões, ou qualquer outra ave, reproduzindo o modo de ser e de viver dos pinguins. Ou seja, é a pinguinização insistente.
Considerando-se essas observações do modo de pesquisar em Direito e das práticas profissionais reprodutoras de padrões e hábitos inquestionáveis e imutáveis, com base nos argumentos de Marcos Nobre, podemos dizer que o modelo dominante de pesquisa em Direito no Brasil é partir sempre de uma resposta dada, para só então elaborar uma investigação corroboradora daquela resposta que se obtém previamente. Isso obviamente se deve ao fato de ser a dogmática o núcleo da investigação científica no âmbito do Direito. É necessário romper com essa lógica para que se tenha pesquisa em Direito. Essa mesma necessidade deve valer para as questões da prática profissional jurídica, a fim de se evitar essa insistente e aparentemente inabalável pinguinização. É necessário, ainda, romper de fato esse muro com as outras disciplinas das Ciências Humanas.
Por fim, de acordo com os argumentos de Manuel Atienza, e corroborando o que Marcos Nobre aponta como necessidade para a mudança, é preciso que os juristas e as faculdades de Direito se abram para as outras ciências sociais. Trata-se de uma necessidade teórica na medida em que não é possível fazer ciência do Direito sem contar com disciplinas como a sociologia, a antropologia, a história, a psicologia, etc. Mas também é o caso de uma necessidade prática, na medida em que a função do jurista é uma função (e o Direito uma realidade) social.
Conclusão
Não pretendemos, neste breve estudo, discutir a questão da produção do conhecimento jurídico apontando erros ou dando pretensas soluções para as grandes questões que povoam o universo jurídico brasileiro, desde a formação acadêmica dos profissionais na graduação até os mais avançados níveis, tanto no âmbito acadêmico quanto nas carreiras pelas quais podem passar esses profissionais. Oxalá consigamos, sim, acender uma centelha de reflexão acerca da possibilidade de reconhecimento da necessidade de uma mudança, ainda que gradativa, quanto ao currículo e o modo de fazer e de pensar o Direito.
Nossa conclusão ao realizar este estudo passou por alguns questionamentos iniciais: Por que o Direito, incluído na área das Ciências Humanas, não acompanhou o desenvolvimento, especialmente em pesquisa, das outras disciplinas? Por que só a partir da última década do século passado começamos a colocar em xeque o modo tradicional e dogmático da produção do conhecimento jurídico? Por que ainda hoje há quem não admita qualquer alteração curricular na formação dos juristas ou na maneira “estreita” de se produzir conhecimento?
Questionamentos na área do Direito exigem respostas. O cientista do Direito não se permite apenas colocar questões, suspendendo seu juízo, para deixá-las em aberto. Ele se sente vinculado na colocação dos problemas a uma proposta de solução possível e viável.
A metodologia e a pesquisa podem proporcionar meios de incentivar uma Ciência do Direito explicativa, mantendo com vigor a distinção entre técnica e ciência. Esta última deve ser desvinculada da obrigatoriedade de unicamente apresentar propostas de solução. “É possível realizar reconstruções dogmáticas que não tenham compromisso com soluções e com a decidibilidade, mas que procurem unicamente compreender o estatuto de determinado instituto na prática jurisprudencial, que iria para primeiro plano.” (NOBRE, 2005, p. 36)
Estamos entre pavões e pinguins. Os pavões são aqueles autores que insistem em remar na contramão da dogmática jurídica, buscando meios possíveis de fazer do Direito uma área mais aberta ao diálogo franco com as demais áreas do conhecimento. São aqueles juízes criativos que sabem o valor de uma decisão para cada caso concreto e buscam assegurar e preservar direitos que valorizam a pessoa humana, ainda que tenha que retirar seu terno de pinguim e dar passos mais largos, contrariando os diretores da organização dos pinguins. São aqueles advogados que conhecem o valor de uma boa teoria pois, segundo Manuel Atienza, não há nada mais prático que a boa teoria, uma teoria prática e crítica, não aquela que aceita simplesmente o estabelecido. Já os pinguins são aqueles teóricos do Direito explícita e comodamente dogmáticos. São aqueles que reproduzem tecnicamente saberes em seus estudos, limitando-se a parafrasear os autores autorizados a opinar sobre determinados assuntos. São todos aqueles que preferem se pinguinizar e passar todos os seus anos de vida profissional dentro de um terno de pinguim e dando passinhos curtos, pois é assim que tem de ser.
Marcos Nobre conclui seu texto apresentando duas experiências distintas dos estudantes franceses e alemães que vão aos LLM[12] norte-americanos. Ambos têm a oportunidade viver ricas experiências nas Universidades dos EUA. Os alemães retornam ao seu país e dão continuidade aos estudos de pesquisa, ingressando na carreira acadêmica. Os franceses, ao retornarem ao seu país, instalam-se nos escritórios norte-americanos que dominam a advocacia francesa. A consequência disso: na Alemanha há uma produção acadêmica de maior qualidade que a francesa, mais rica e mais crítica. Já na França, as pressões por mudanças no formalismo do ensino do Direito não logram êxito, pois os profissionais mais bem preparados vão para os escritórios norte-americanos, num franco processo de pinguinização. Curiosamente, chamam de pinguins aos estudantes das colônias francesas na África, que vão à França para se formar em Direito e depois reproduzir em seus países o direito do colonizador, acriticamente.
Ainda na linha das comparações que direcionam nossas conclusões, lembramos das palavras do professor Ribas na nossa 14ª. sessão, quando fizemos um estudo crítico de uma tese de doutorado da área do Direito[13]. O autor da tese estudada por nós, dogmático, fez o circuito Elizabeth Arden: Roma – Paris – Londres. Para inovar, devemos fazer o circuito Henna: Bombain – Karashi.[14] Ou seja: mudar o circuito é buscar novas formas de produção do conhecimento em Direito, não puramente dogmáticas, correndo-se os devidos riscos.
Mudar o circuito é romper o muro com as outras disciplinas das Ciências Humanas. (NOBRE, 2005) Mudar o circuito é fazer com que juristas e as faculdades de Direito reconheçam a necessidade de se abrir para as outras ciências sociais. (ATIENZA, 1978) Mudar o circuito é promover uma marcha contra a pinguinização dos juristas e das faculdades de Direito. (WARAT, 2006) Mudar o circuito é ousar ser pavão na terra dos pinguins.
Por fim, ficam as possibilidades de escolha: Ser pavão ou ser pinguim? Seguir o exemplo alemão ou o exemplo francês? Fazer o circuito Elizabeth Arden ou o circuito Henna?