2. O acórdão foi proferido com vistas à revisão da jurisprudência. Vejamos o seguinte trecho do voto (sem grifos no original):
O Supremo Tribunal Federal, ao apreciar a questão, firmou orientação no sentido de que, em respeito ao princípio da não cumulatividade, expresso no art. 153, § 3º, inc. II, da Constituição Federal, não incide IPI nesta hipótese, pois, em se tratando de pessoa física, não empresária, é inviável a compensação do valor do tributo devido com créditos de uma operação anterior.
A propósito, colaciono os seguintes precedentes:
AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO. IPI. IMPORTAÇÃO DE VEÍCULO AUTOMOTOR. PESSOA FÍSICA. USO PRÓPRIO.
1. Não incide o IPI em importação de veículo automotor, para uso próprio, por pessoa física. Aplicabilidade do princípio da não-cumulatividade. Precedente. Agravo regimental a que se nega provimento.
(STF, RE nº 501.773/SP, Relator Ministro Eros Grau, 2ª Turma, DJe de 14-08-2008)
CONSTITUCIONAL. TRIBUTÁRIO. IPI. IMPORTAÇÃO: PESSSOA FÍSICA NÃO COMERCIANTE OU EMPRESÁRIO: PRINCÍPIO DA NÃO-CUMULATIVIDADE: CF, art. 153, § 3º, II. NÃO-INCIDÊNCIA DO IPI.
I. - Veículo importado por pessoa física que não é comerciante nem empresário, destinado ao uso próprio: não-incidência do IPI: aplicabilidade do princípio da não-cumulatividade: CF, art. 153, § 3º, II. Precedentes do STF relativamente ao ICMS, anteriormente à EC 33/2001: RE 203.075/DF, Min. Maurício Corrêa, Plenário, 'DJ' de 29.10.1999; RE 191.346/RS, Min. Carlos Velloso, 2ª Turma, 'DJ' de 20.11.1998; RE 298.630/SP, Min. Moreira Alves, 1ª Turma, 'DJ' de 09.11.2001. II. - RE conhecido e provido. Agravo não provido.
(STF, AgR RE nº 255.682/RS, Relator Ministro Carlos Velloso, 2ª Turma, DJ de 10-02-2006)
Contudo, em face das ulteriores ponderações trazidas pelo Ministério Público Federal e pela Procuradoria da Fazenda Nacional, esta 2ª Turma, inicialmente apenas pelo Des. Federal Rômulo Pizzolatti, e, mais recentemente, pela Des. Federal Luciane Amaral Corrêa Münch, houve por bem rever o entendimento outrora sedimentado para admitir a incidência do IPI na operação de importação de veículo por pessoa física, para uso próprio.
Melhor analisando a questão, e considerando que a matéria não foi examinada pelo egrégio STF pela sistemática da repercussão geral, revejo meu posicionamento atual, retornando ao meu primitivo entendimento, qual seja, pela legitimidade da incidência do IPI na operação ora discutida.
3. Em seu recurso extraordinário, a parte recorrente argumenta, basicamente, com a não-cumulatividade do IPI.
4. Está nas mãos da Suprema Corte, neste momento, essa temática tão polêmica e que pode ter consequências desastrosas para a tributação e para o mercado interno. Vejamos.
II – DA INCIDÊNCIA DO IPI
II.1 – Do contribuinte e do fato gerador do Imposto de Produtos Industrializados
5. O Imposto sobre produtos industrializados possui previsão constitucional no art. 153, IV, da Constituição Federal. Os fatos geradores são definidos pelo art. 46 do Código Tributário Nacional, que assim estabeleceu, com base no art. 146, III, a, da Constituição Federal:
Art. 46. O imposto, de competência da União, sobre produtos industrializados tem como fato gerador:
I - o seu desembaraço aduaneiro, quando de procedência estrangeira;
II - a sua saída dos estabelecimentos a que se refere o parágrafo único do artigo 51;
III - a sua arrematação, quando apreendido ou abandonado e levado a leilão.
Parágrafo único. Para os efeitos deste imposto, considera-se industrializado o produto que tenha sido submetido a qualquer operação que lhe modifique a natureza ou a finalidade, ou o aperfeiçoe para o consumo.
6. Os contribuintes do tributo são definidos pelo art. 51 do mesmo Codex:
Art. 51. Contribuinte do imposto é:
I - o importador ou quem a lei a ele equiparar;
II - o industrial ou quem a lei a ele equiparar;
III - o comerciante de produtos sujeitos ao imposto, que os forneça aos contribuintes definidos no inciso anterior;
IV - o arrematante de produtos apreendidos ou abandonados, levados a leilão.
Parágrafo único. Para os efeitos deste imposto, considera-se contribuinte autônomo qualquer estabelecimento de importador, industrial, comerciante ou arrematante.
7. Da leitura dos dispositivos é possível perceber que o fato gerador do tributo é o ingresso de produtos estrangeiros no país, independentemente de quem seja o importador. O tipo de importador não interfere no fato gerador, tanto que foi inserida a expressão “ou quem a lei a ele equiparar”, demonstrando que pouco importa que seja pessoa física ou pessoa jurídica de fins civis ou comerciais. O que importa é o impacto do ingresso do produto no país, o que ocorre em qualquer tipo de importação.
8. Desde a sua origem, o IPI já era devido na hipótese de ingresso de produto no país, independentemente de sua destinação. Segundo a Lei nº 4.502/1964, instituidora do tributo, o IPI é devido, “sejam quais forem as finalidades a que se destine o produto ou o título jurídico a que se faça a importação ou de que decorra a saída do estabelecimento produtor” (art. 2o). A destinação, portanto, não era um fator relevante em tal tributação.
9. Ao tratar do contribuinte, esta norma estabelecia que se equiparavam a estabelecimento produtor “os importadores e os arrematantes de produtos de procedência estrangeira” (art. 4º).
10. Por fim, demonstrando a irrelevância do preenchimento de condições especiais por parte do contribuinte, estabelecia que eram irrelevantes para a exclusão da responsabilidade tributária, “a inabitualidade no exercício da atividade ou na prática dos atos que deem origem, à tributação ou à imposição da pena” (art. 40).
11. Esta perspectiva histórica demonstra que desde a origem o IPI não era um tributo que distinguia, para efeito de incidência, a pessoa do importador ou a destinação do produto. Atualmente, a incidência segue a mesma lógica, já que o pressuposto para a incidência do tributo é de que o bem importado seja um produto industrializado e passe a integrar o circuito econômico do consumo. E nem poderia deixar de ser, já que o IPI incide em virtude da industrialização do produto, independente da atividade exercida pelo importador.
12. Se assim funciona em relação a todos os produtos que importamos, na condição de consumidores finais, por que haveria de ser diferente em relação aos automóveis? Não há razão lógica para tanto.
13. Por tal razão o Regulamento do Imposto de Produtos Industrializados – RIPI 2010 (Decreto nº 7.212/2010) estabelece:
“CAPÍTULO II
DOS CONTRIBUINTES E RESPONSÁVEIS
Contribuintes
Art. 24. São obrigados ao pagamento do imposto como contribuinte:
I - o importador, em relação ao fato gerador decorrente do desembaraço aduaneiro de produto de procedência estrangeira (Lei no 4.502, de 1964, art. 35, inciso I, alínea “b”);
(...)”
Irrelevância dos Aspectos Jurídicos
Art. 39. O imposto é devido sejam quais forem as finalidades a que se destine o produto ou o título jurídico a que se faça a importação ou de que decorra a saída do estabelecimento produtor (Lei nº 4.502, de 1964, art. 2º, § 2º).”
14. O Superior Tribunal de Justiça, em recentes julgamentos, vem aplicando tal posicionamento. Apenas a título de exemplo, citamos o seguinte julgado:
PROCESSUAL CIVIL E TRIBUTÁRIO. ART. 535 DO CPC. ALEGAÇÃO GENÉRICA. PREQUESTIONAMENTO. SÚMULA 211/STJ. DIVERGÊNCIA JURISPRUDENCIAL. COTEJO ANALÍTICO. NÃO CONFIGURADO. IPI. PRODUTO INDUSTRIALIZADO DE PROCEDÊNCIA ESTRANGEIRA. IMPORTAÇÃO. SOCIEDADE CIVIL PRESTADORA DE SERVIÇO MÉDICO. IRRELEVÂNCIA DA FINALIDADE A QUE SE DESTINA O PRODUTO.
1. Não se conhece do recurso especial pela alegada violação do artigo 535 do CPC nos casos em que a arguição é genérica, por incidir a Súmula 24/STF, assim redigida: "É inadmissível o recurso extraordinário, quando a deficiência na fundamentação não permitir a exata compreensão da controvérsia".
2. A ausência de prequestionamento no tocante à suposta contrariedade aos artigos arts. 49, 108, § 1º, 110 do Código Tributário Nacional, e 3º, V, da Lei Complementar 87/96 impõe a incidência da Súmula 211/STJ.
3. O disposto no art. 12, § 2º, da Lei Complementar 87/96 não têm o condão de infirmar o acórdão recorrido, cujo alicerce consiste na incompetência da Justiça Federal para conhecer ou reconhecer a exoneração do ICMS. Incidência da Súmula 284/STF.
4. Não enseja conhecimento o recurso interposto com fundamento na alínea "c" do permissivo constitucional quando não realizado o necessário cotejo analítico, consoante previsão do art. 255, § 2º, do RISTJ.
5. Em consonância com as normas constitucionais dos arts. 146, III, "a", c/c 153, IV, da Constituição da República, o art. 46 do Código Tributário Nacional define as hipóteses de incidência do IPI.
6. A legislação complementar não exorbita o âmbito constitucional do imposto ao prever a incidência do IPI no desembaraço aduaneiro, quando o produto for de procedência estrangeira, como também ao atribuir à figura do importador, não industrial, a qualidade de contribuinte (arts. 51, I, do CTN, e 23, I, do Decreto 2.637/98), já que foi preservado o critério material da existência de operação relativa a "produto industrializado". Precedente da Primeira Turma: REsp 216.217/SP, Rel. Min. José Delgado.
7. Da mesma forma, são irrelevantes "as finalidades a que se destine o produto ou o título jurídico a que se faça a importação ou de que decorra a saída do estabelecimento produtor (Lei nº 4.502, de 1964, art. 2º, § 2º)" (Decreto 2.637/98, art. 36).
8. O IPI tem caráter fortemente extrafiscal, constituindo instrumento de política econômica; logo, a tributação no caso em tela surge como mecanismo de proteção ao fisco contra fraudes e instrumento de preservação da isonomia e equidade no comércio internacional.
9. Recurso especial conhecido em parte e não provido.
(REsp 794.352/RJ, Relator Ministro Castro Meira, Segunda Turma, sessão de 17/12/2009)
15. Feita essa análise, percebe-se que o importador do automóvel em questão promoveu a entrada do bem em território nacional, sendo contribuinte de IPI por sujeição passiva direta (contribuinte), configurando como responsável pela produção do fato gerador.
II.2 – Distinção entre o IPI-Importador e o Imposto de Importação. Inexistência de dupla incidência.
16. Não existe incidência acumulada de tributos, dado que o Imposto sobre Produtos Industrializados e o Imposto de Importação possuem hipóteses de incidência e bases de cálculo distintas, sendo ambos previstos na Constituição.
17. Não havendo bis in idem, não haveria qualquer óbice à incidência do IPI em uma importação, mesmo sendo para uso próprio, já que não há isenção legalmente prevista. Cumpre lembrar que são interpretadas restritivamente as isenções e renúncias de receita em nosso sistema tributário.
18. A Constituição Federal, nos termos do seu art. 153, § 3º, III, estabelece que não incide o IPI “sobre produtos industrializados destinados ao exterior”. Como se vê, não há qualquer referência à importação. Se fosse intenção do constituinte, teria excluído também as importações, o que não ocorreu.
19. Basta aplicar a lógica inversa. Os produtos industrializados destinados ao exterior não sobrem a incidência do IPI para que tenham competitividade em relação aos produtos industrializados produzidos no parque industrial do país estrangeiro. Então, a Constituição, em situação de claro silêncio eloquente, deixou de excluir o IPI das importações para que os produtos de nosso parque industrial não fiquem em desvantagem em relação aos produtos importados. Em outras palavras, sendo excluído apenas o IPI do produto exportado, incide esse tributo no produto importado, tudo dentro de uma lógica de concorrência equilibrada entre os mercados interno e externo.
20. Por diversas vezes ouve-se dizer que o IPI-importação se confundiria com o Imposto de Importação. Tais defensores alegam que não seria da natureza do IPI incidir sobre as importações, dado que já existiria tributo destinado a incidir sobre o desembaraço aduaneiro.
21. Tal argumento, porém, é, no mínimo, falacioso[1], se analisarmos a falácia como uma falha do pensamento lógico, longe do tom pejorativo que a expressão ganhou ao longo do tempo. Isso, porque o IPI-importação é cobrado no momento do desembaraço aduaneiro, mas não em virtude desse desembaraço aduaneiro. O IPI-importação é exigido em virtude da industrialização do produto, sendo apenas cobrado no momento da importação. Em síntese, ele é cobrado quando da importação, mas não por causa da importação.
22. A cobrança no momento do desembaraço aduaneiro se dá porque, por questões de soberania, não poderia a República Federativa do Brasil exigir o tributo no momento exato de sua submissão ao processo de industrialização, que ocorreu em país estrangeiro. Trata-se, portanto, de uma cobrança postergada do IPI, tal qual ocorre em diversos outros tributos.
23. Vejamos o caso do Imposto de Renda - IR. Se ao fazer a declaração do IR o software da Secretaria da Receita Federal do Brasil identifica tributo a pagar, o contribuinte recebe um boleto bancário (DARF) para recolher essa diferença. Não podemos afirmar, porém, que o ato de preencher a declaração de imposto de renda tenha sido tributado. A hipótese de incidência foi uma renda auferida ao longo do ano anterior, que apenas agora foi constatada e, portanto, cobrada a posteriori.
24. Voltando à hipótese do IPI-importação, a hipótese de incidência foi a industrialização do produto, mas a cobrança somente ocorreu no momento do desembaraço aduaneiro. Dessa forma, fica incontroverso que o IPI-importação não invade a seara dos tributos aduaneiros, porque ele não incide sobre o desembaraço aduaneiro, mas apenas no momento do desembaraço aduaneiro.
II.3 – Do respeito aos princípios da não-cumulatividade e da capacidade contributiva.
25. Estabelece o art. 153, § 3º, II, que o IPI “será não-cumulativo, compensando-se o que for devido em cada operação com o montante cobrado nas anteriores”. Sendo assim, nos termos do art. 49 do Código Tributário Nacional, o IPI, sendo não-cumulativo, deve resultar do montante devido a partir da diferença a maior, em determinado período, entre o imposto referente aos produtos saídos do estabelecimento e o pago relativamente aos produtos nele ingressos. Como se vê, trata-se de um sistema de compensação de imposto sobre imposto, mediante apuração periódica do IPI, garantindo que o tributo a ser pago nas próximas fases do processo produtivo seja deduzido do valor já pago nas anteriores.
26. Busca-se, então, desonerar o custo final do produto, abolindo a tributação em cascata, que é nociva por interferir na cadeia produtiva.
27. Como demonstrado nos itens anteriores, o IPI incide sobre o produto estrangeiro importado por pessoas físicas ou jurídicas, independente de sua aplicação posterior – uso próprio do importador ou revenda. Se o produto importado for destinado ao processo produtivo do contribuinte ou à revenda, o IPI recolhido do desembaraço gerará crédito, que poderá ser utilizado para compensar o imposto devido na saída do produto. Porém, mesmo em tais casos, não há desoneração do pagamento do IPI devido pela importação, pois a não-cumulatividade veda o pagamento repetido, mas não o pagamento do imposto em si.
28. Dessa maneira, o fato de não haver tributo a compensar na operação posterior, já que se trata de consumidor final, não importa em não-incidência de tributo na primeira e única operação. Não há que se distinguir, portanto, a importação para uso próprio ou a importação para revenda ou para novo processo de industrialização no país. Em todas as hipóteses o tributo incide pelo fato de se tratar de produto industrializado e será compensando nos casos em que houver nova fase de incidência do tributo.
29. Também não há que se falar que a importação para uso próprio desqualifica o produto, deixando de se tratar de “mercadoria”. Isso, porque o conceito de mercadoria é analisado a partir da condição do alienante, e não do adquirente do bem[2]. Para o alienante as mercadorias exportadas para o Brasil são destinadas à mercancia. Dessa forma, quando ingressam no Brasil encontram na figura do importador, pessoa física ou jurídica, um substituto tributário[3] daquele alienante que não pode ser abrangido pela legislação brasileira.
30. Como foi dito, a não-cumulatividade evita a incidência em duplicidade (incidência em cascata). Dessa forma, não se beneficiará o contribuinte que estiver no final da cadeia. Essa é a sistemática em qualquer tributo não-cumulativo.
31. Se, com base na não-cumulatividade, o consumidor final fosse desonerado, deveríamos extinguir os tributos não-cumulativos, já que, partindo-se do pressuposto de que sempre haverá um consumidor no final da cadeia produtiva, todos os valores anteriormente recolhidos seriam devolvidos. Para ser mais direto, se os consumidores finais dos tributos não cumulativos tivessem o direito de se desonerar, a tributação nas fases posteriores teria sido feita apenas para gerar custos na administração tributária, já que o valor seria devolvido ao final, não gerando qualquer receita. Teríamos um tributo inócuo para a finalidade arrecadatória.
32. A conclusão acima é teratológica, já que, obviamente, em algum momento o valor do tributo vai recair sobre um responsável econômico pela quantia a ser recolhida ao Estado.
33. A situação do consumidor final que é importador direto, que possui apenas uma etapa de incidência, deve ser a mesma daquele consumidor que compra o automóvel no Brasil em uma concessionária/importadora. Ambos arcam com o ônus econômico do IPI, sem fazer compensação, já que não há fase posterior. Aqui entra em jogo o princípio da capacidade contributiva, já que o importador, substituto tributário, possui a mesma capacidade que o consumidor interno possui de arcar com o tributo na etapa final. Sobre a incidência da capacidade contributiva, citamos o brilhante trecho do voto transcrito nos Embargos Infringentes nº 5049386-28.2011.404.7000/PR, TRF 4ª Região, que pedimos licença para transcrever:
Em segundo lugar, o IPI, em caso de bem importado, não foi pago pelo vendedor, pelo fato de ele estar no exterior. Não tendo sido pago pelo vendedor, deverá logicamente ser pago pelo importador, tal como previsto no Código Tributário Nacional (art. 51, I), podendo este creditar-se do que pagou a esse título - se for comerciante ou industrial, caso em que aplicável o princípio constitucional da não-cumulatividade. A entender-se diferentemente, terá sido ofendido em cheio o princípio constitucional da capacidade contributiva (CF, art. 145, §1º), inexplicavelmente desconsiderado pelas decisões do Supremo Tribunal Federal. Segundo Marco Aurélio Greco, esse princípio geral do sistema tributário nacional serve para a compreensão do alcance da lei tributária, para além daquilo que ela obviamente alcança. Nas suas palavras,
Com o tempo, a discussão sobre o princípio da capacidade contributiva evoluiu e chegou-se a uma segunda feição, que é a feição positiva do princípio da capacidade contributiva. De acordo com esta ótica, se existe capacidade contributiva a lei tributária tem de alcançá-la até onde ela for detectada; ou seja, o princípio funciona como um vetor do alcance da legislação. Em outras palavras, a lei tributária alcança o que ela obviamente prevê, mas alcança não apenas isto, alcançando, também, aquilo que resulta da sua conjugação positiva com o princípio da capacidade contributiva (GRECO, Marco Aurélio. Planejamento fiscal e interpretação da lei tributária. São Paulo: Dialética, 1998, p. 45).
De fato, o princípio constitucional da capacidade contributiva afasta quaisquer exegeses que, por falta de percepção da totalidade do sistema jurídico, venham a desconsiderar determinada classe de contribuinte - no caso, a pessoa física que importa bem industrializado para uso próprio -, a pretexto de aplicação do princípio da não-cumulatividade. Ora, com mais forte razão do que aquele que adquire bem nacional industrializado, aquele que adquire bem importado para uso próprio está sujeito ao pagamento do IPI, por evidenciar maior capacidade contributiva.
II.4 – Dos reflexos econômicos da desoneração do importador consumidor final e o caráter extrafiscal do IPI.
34. A desoneração, sem qualquer previsão legal, do consumidor final que pratica a importação direta está gerando uma situação de desvantagem para o consumidor que adquire o produto em loja comercial no Brasil.
35. Vamos imaginar dois consumidores que desejam importar um Chevrolet Camaro SS 6.2 V8 16V 406 cv. Em rápida pesquisa na tabela FIPE[4]verificamos que o preço do valor em uma concessionária no Brasil é de R$ 200.266,00 (duzentos mil, duzentos e sessenta e seis reais).
36. Diversas “empresas”, porém, prometem a intermediação da importação direta, garantindo a desoneração do IPI por meio da impetração de mandado de segurança. Nos seus sítios eletrônicos[5]o mesmo automóvel é oferecido por um valor em torno de RS 140.000,00 (cento e quarenta mil reais).
37. Como podemos perceber, o preço é tão inferior que estamos diante de uma prática anticoncorrencial gerada pelas decisões concessivas de segurança, hoje prometidas por essas “assessorias de importação”.
38. Como verificamos, o consumidor final brasileiro que desejar comprar seu automóvel em uma concessionária pagará um preço 42% (quarenta e dois por cento) superior em relação àquele que comprar o automóvel diretamente do exterior. É claro que parte dessa diferença se deve ao lucro necessário ao custeio da empresa concessionária/importadora instalada no Brasil. A parte mais significativa, porém, diz respeito à exclusão do IPI-importação.
39. Uma rápida análise da situação desses consumidores finais mostrará que não deveria existir qualquer distinção. Ambos, como estão no final da cadeia produtiva, deveriam arcar com o IPI importação, sem que isso signifique violação ao princípio da não-cumulatividade. A prevalecer o posicionamento contrário à incidência do tributo, porém, apenas o consumidor que adquire seu automóvel no Brasil arcará com o ônus econômico do IPI. Essa situação configuraria nítida ofensa ao princípio da isonomia (art. 150, II, da CF), tributando de forma diversa os contribuintes que se encontram na mesma situação, impedindo a gradação dos impostos segundo a capacidade econômica dos contribuintes.
40. A situação atual, na qual liminares são deferidas para excluir o IPI em tais hipóteses, levará à extinção do importante segmento das empresas importadoras no Brasil, que serão forçadas a se transformarem em simples intermediadoras de importações diretas para se beneficiarem dessa verdadeira isenção criada sem qualquer previsão legal.
41. E uma perspectiva ainda pior se configura no cenário nacional. Cabe lembrar que no caso de carros importados estamos tratando de produtos industrializados que não possuem paralelo no Brasil, na maioria das vezes. Se, no futuro, tratarmos de importação de bens com paralelo na indústria nacional, a impossibilidade de cobrança de IPI-importação do consumidor final levará à falência das indústrias brasileiras.
42. Um exemplo disso são as demandas judiciais que atualmente são ajuizadas no sentido de estender tal jurisprudência aos bens importados para constituição de ativo fixo de pessoas jurídicas, como as clínicas de diagnóstico por imagem.
43. E não é possível descartar o risco de uma extensão jurisprudencial desse entendimento à importação de outros bens, que não sejam automóveis. Na rede mundial de computadores é possível encontrar centenas de empresas que promovem a importação direta de qualquer produto industrializado diretamente de países estrangeiros, como a República Popular da China. A prevalecer a tese dos contribuintes, tais produtos não pagarão qualquer valor de IPI.
44. A concretização do cenário acima seria desastrosa para a indústria nacional, já que o IPI possui caráter extrafiscal, o que faz com que ele configure como um instrumento da política econômica, protegendo o fisco contra fraudes e preservando o equilíbrio no comércio internacional. A exclusão do IPI sobre uma importação gera um desequilíbrio, desfavorecendo o produto nacional.
II.5 – Da reversão jurisprudencial recente no Tribunal Regional Federal da 4ª Região
45. Neste tópico reside uma informação importante. O Tribunal Regional Federal da 4ª Região, verificando a evolução do texto constitucional, alterou seu entendimento, que antes era no sentido da não-incidência do tributo. Vejamos como a Primeira Seção do Tribunal unificou os entendimentos daquela Corte, em decisão unânime, no julgamento dos Embargos Infringentes nº 5049386-28.2011.404.7000/PR, Relatora a Juíza Vânia Hack de Almeida.
TRIBUTÁRIO. IPI. IMPORTAÇÃO DE VEÍCULO POR PESSOA FÍSICA, NÃO COMERCIANTE OU EMPRESÁRIA, PARA USO PRÓPRIO. SUPERADO ENTENDIMENTO ANTERIOR À EC 33/01. PRINCÍPIO DA NÃO CUMULATIVIDADE. NÃO APLICAÇÃO.
1. A incidência de IPI nos casos de importação de veículo por pessoa física, não comerciante ou empresária, para uso próprio, decorre da aplicação dos arts. 51, I, e 46, I, ambos do CTN.
2. As decisões dos Tribunais Superiores, anteriores à EC 33/01, aplicavam por analogia entendimento já superado (a partir desta EC) em relação ao ICMS.
3. O principal argumento daquelas decisões, o princípio da não cumulatividade, mostra-se equivocado, na medida em que tal técnica de tributação visa a impedir que as incidências sucessivas, nas diversas operações da cadeia econômica de um produto, implicassem ônus tributário muito elevado, em consequência de múltipla tributação sobre a mesma base econômica, o que não ocorre no caso.
4. Igualmente não prospera a tese de afastar a incidência do IPI no caso de bem importado para utilização própria (seja por pessoa natural, seja por pessoa jurídica) por não se tratar de 'mercadoria'. Tal qualificação é entendida sob o ponto de vista do alienante, nunca do adquirente do bem. No caso do IPI, o contribuinte no Brasil, ao importar, coloca-se como 'substituto tributário' do comerciante situado no exterior, que não pode ser alcançado pelas leis brasileiras.
46. Tal julgamento ocorreu em 14 de janeiro de 2013 e demonstra com perfeição a necessidade de superação do entendimento anterior, formado sob a égide da EC nº 33/2001, em equiparação ao que se aplicava ao ICMS.
II.6 – Do ineditismo da matéria no Supremo Tribunal Federal.
47. No Supremo Tribunal Federal, o entendimento jurisprudencial aplicado aos casos de importação de automóvel para uso próprio decorreu de aplicação analógica do tratamento dado ao ICMS. Tanto o é, que o assunto não foi tratado pelo Plenário da Casa de forma específica. Vejamos, por exemplo, o que decidido no RE nº 255.682-AgR/RS, Relator Ministro Carlos Velloso, Segunda Turma, 29/11/2005:
EMENTA: CONSTITUCIONAL. TRIBUTÁRIO. IPI. IMPORTAÇÃO: PESSSOA FÍSICA NÃO COMERCIANTE OU EMPRESÁRIO: PRINCÍPIO DA NÃO-CUMULATIVIDADE: CF, art. 153, § 3º, II. NÃO-INCIDÊNCIA DO IPI.
I. - Veículo importado por pessoa física que não é comerciante nem empresário, destinado ao uso próprio: não-incidência do IPI: aplicabilidade do princípio da não-cumulatividade: CF, art. 153, § 3º,
II. Precedentes do STF relativamente ao ICMS, anteriormente à EC 33/2001: RE 203.075/DF, Min. Maurício Corrêa, Plenário, "DJ" de 29.10.1999; RE 191.346/RS, Min. Carlos Velloso, 2ª Turma, "DJ" de 20.11.1998; RE 298.630/SP, Min. Moreira Alves, 1ª Turma, "DJ" de 09.11.2001.
II. - RE conhecido e provido. Agravo não provido. (grifo nosso)
48. O STF entendeu que a não-cumulatividade do ICMS, conforme a redação anterior à EC nº 33, também se aplicaria ao IPI. Durante a vigência da redação anterior, entendia-se que o ICMS não podia incidir sobre a importação de bem para uso próprio.
49. A referida emenda, porém, alterou o art. 155, § 2º, IX, a, da Constituição Federal, determinando a incidência de ICMS “sobre a entrada de bem ou mercadoria importados do exterior por pessoa física ou jurídica, ainda que não seja contribuinte habitual do imposto, qualquer que seja a sua finalidade, assim como sobre o serviço prestado no exterior, cabendo o imposto ao Estado onde estiver situado o domicílio ou o estabelecimento do destinatário da mercadoria, bem ou serviço”.
50. Na vigência da nova redação do texto constitucional, o ICMS passou a incidir nas importações para uso próprio, superando-se o enunciado da Súmula 660-STF. Como a entendimento jurisprudencial sobre o IPI foi firmado em analogia ao ICMS, deve ser revisto o posicionamento a partir da EC nº 33/2001, tal qual procedeu o TRF 4ª Região em janeiro deste ano.
51. A lógica aqui é muito simples. Se inicialmente a jurisprudência do ICMS foi aplicada ao IPI por se entender que ambos devem ter o mesmo tratamento em relação à não-cumulatividade, não há razão para agora, quando a não-cumulatividade em relação ao ICMS sofreu alteração, deixar-se de aplicar tal entendimento ao IPI. Nesse sentido o seguinte trecho de voto citado nos Embargos Infringentes nº 5049386-28.2011.404.7000/PR, recentemente julgado pelo TRF 4ª Região:
Não é texto de fácil interpretação o acórdão do Pleno do STF, que julgou o RE nº 203.075-DF, rel. p/ acórdão Min. Maurício Corrêa, o qual serve de paradigma às decisões posteriores das turmas, seja em se tratando de ICMS, seja de IPI. Com efeito, o acórdão recorrido, do TJDF, entendeu que em se tratando de veículo importado por pessoa não-comerciante para uso próprio, há 'ausência de fato gerador', e o STF 'não conheceu' do RE. Dos onze ministros presentes à sessão, dois ficaram vencidos (o relator, Ilmar Galvão, e Nelson Jobim), e não há referência ao voto de três ministros (Celso de Mello, Sydney Sanches e Octavio Gallotti), concluindo-se apenas, pelo extrato da ata, que compuseram a maioria. Os ministros que explicitaram seu voto (seis), apresentaram argumentos diversos. O relator p/acórdão, Min. Maurício Corrêa, entendeu que a Constituição elegeu como contribuinte do ICMS apenas quem exerce atos de comércio de forma constante e possui estabelecimento, o que não seria o caso da pessoa física que importa bem para uso próprio, além de não atender-se, nesse caso, o princípio constitucional da não-cumulatividade. Foi acompanhado pelo ministros Marco Aurélio, Néri da Silveira e Carlos Velloso. Já os ministros Sepúlveda Pertence e Moreira Alves entenderam que não haveria determinação do sujeito ativo do ICMS (estado a quem caberia o tributo), em caso de importador pessoa física não-comerciante, não tendo ele 'estabelecimento'.
Já a extensão dessa orientação, tirada em caso de ICMS, a casos de IPI, baseou-se tão somente no fato de que ambos os tributos devem atender ao princípio constitucional da não-cumulatividade. Ora, ainda que os dois tributos estejam submetidos a um mesmo princípio, isso não significa que eles sejam idênticos, nem, muito menos, que devam receber tratamento idêntico. Ainda assim, ao que tudo indica o STF optou por dar-lhes tratamento uniforme, desconsiderando alguns aspectos e dando relevância ao princípio da não-cumulatividade. Como intérprete último da Constituição (que é aberta, e não fechada), o STF pode adotar opções políticas que não são dadas aos juízes e tribunais ordinários.
Ocorre que a extensão ao caso do IPI da superada (pela EC nº 33, de 2001) orientação do STF em relação ao ICMS não tem, atualmente, como sustentar-se, por isso que, se era intenção do STF com tal extensão dar tratamento uniforme a dois tributos submetidos igualmente ao princípio constitucional da não-cumulatividade, agora essa uniformidade está definitivamente quebrada: o ICMS será devido por força da nova redação dada pela EC nº 33, de 2001, à alínea 'a' do inciso IX do §2º do art. 155 da Constituição, enquanto o IPI não será devido por força da 'extensão' a ele da antiga orientação atinente ao ICMS. (grifo nosso)
52. Como se vê, a matéria está a demandar reapreciação urgente por parte do Pretório Excelso, o que esperamos ocorra em breve.
III - CONCLUSÃO
53. Ante o exposto, é possível concluir que:
a) Não existe distinção, para efeito de incidência do IPI, quanto ao tipo de pessoa que realiza a importação do produto industrializado;
b) Não ocorre dupla incidência em relação ao Imposto de Importação, que possui hipótese de incidência e base de cálculo totalmente distintas;
c) O princípio da não-cumulatividade é totalmente respeitado, na medida em que não ocorre tributação em cascata. O consumidor final, ao adquirir a mercadoria, age como substituto tributário do alienante situado no exterior;
d) O princípio da capacidade contributiva impõe que o importador também venha a arcar com o ônus econômico que o adquirente do produto nacional ou nacionalizado suporta. Pensar de forma diferente ofenderia o princípio da isonomia tributária;
e) O caráter extrafiscal do IPI torna imprescindível a sua incidência sobre o desembaraço aduaneiro, sob pena de se criar desvantagem para a indústria nacional;
f) A aplicação da não-cumulatividade ao IPI decorreu de aplicação analógica do entendimento relativo ao ICMS, motivo pelo qual deve acompanhar a evolução ocorrida após a edição da EC nº 33/2001.
54. Essas as razões pelas quais concluímos ser totalmente adequada ao ordenamento jurídico pátrio a manutenção da incidência do Imposto sobre Produtos Industrializados sobre a importação de automóveis, seja por pessoa física ou jurídica, independentemente da destinação do bem.
Notas
[1]Verifica-se a incidência da falácia lógica denominada “falsa causa”, que consiste em afirmar que dois eventos ocorrem juntos porque estão relacionados (ex. João acertou na loteria quando se converteu à religião, portanto, João acertou na loteria porque se converteu à religião). Usando a lógica jurídica, podemos ainda atribuir tal argumento à falácia chamada pela filosofia de “depois disso, por causa disso”, que decorre em dizer que se um fato ocorreu após o outro, eles são relacionados dentro de uma relação de causalidade (ex. O sol nasceu depois que o galo cantou, portanto, o sol nasceu porque o galo cantou).
[2]Nesse sentido o que decidido no TRF4ª Região, Apelação/Reexame Necessário nº 5006876-55.2011.404.7208/SC, Rel. Des. Luciane Amaral Corrêa Münch, 2ª Turma, j. 03/09/2012.
[3]Sobre a condição de substituto tributário, descaracterizando o IPI como tributo indireto, vide TRF4ª Região, Apelação/Reexame Necessário nº 5008418-19.2012.404.7000/PR, Rel. Des. Otávio Roberto Pamplona, 2ª Turma, j. 03/09/2012.
[4]http://www.fipe.org.br/web/index.asp?aspx=/web/indices/veiculos/introducao.aspx, acessado em 18 de janeiro de 2013.
[5]http://www.importacarro.com.br/; http://www.eurekaimports.com.br/#!carros/vstc21=investimento/vstc11=camaro-2lt; http://www.primetoys.com.br/sobre/;