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Liberdade de imprensa e privacidade: princípios em colisão

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Agenda 19/03/2014 às 17:55

CAPÍTULO II- LIBERDADE DE IMPRENSA

A publicação de notícias na imprensa sobre investigações e suspeitas que envolvem figuras públicas ou não — todas de interesse público — é constante na imprensa (televisão, jornais, revistas, rádio, sites, blogs, etc...). Antes de explanar sobre a liberdade de imprensa, é importante e relevante mostrar como alguns autores definem os requisitos básicos para que um fato se torne noticiável para a sociedade, sob o ponto de vista jornalístico. Primeiramente, vejamos como o dicionário Houaiss define a palavra notícia:

“Notícia

1 informação a respeito de acontecimento novo, de mudanças recentes em alguma situação, ou do estado em que se encontra algo; nova, novidade, ‘tenho boas n. para lhe contar’; ‘você teve alguma n. sobre a promoção dele?’.

2 conhecimento do paradeiro ou da situação de alguém ‘não teve mais n. do amigo’.

3 recordação, lembrança ‘não conseguia eliminar da mente a n. do acidente’

4 nota, apontamento ‘os inspetores tomaram n. das deficiências da instituição’

5 escrito sintético sobre um assunto qualquer

6 nota histórica; biografia

7 jor relato de fatos e acontecimentos, recentes ou atuais, ocorridos no país ou no mundo, veiculado em jornal, televisão, revista etc.

8 p.ext. jor o assunto focalizado nesse relato”.[43]

Há também algumas definições clássicas e tradicionais que, embora sejam superficiais para pontuar os conceitos de notícias na atualidade, são suficientes para este Trabalho de Conclusão de Curso. Vejamos alguns deles:

a) “Se um cachorro morde um homem, não é notícia; mas se um homem morde um cachorro, aí, então, a notícia é sensacional.”(Amus Cummings);

b) “É algo que não se sabia ontem.” (Turner Catledge);

c) “É um pedaço do social que volta ao social.” (Bernard Voyenne);

d) “É uma compilação de fatos e eventos de interesse ou importância para os leitores do jornal que a publica.” (Neil MacNeil);

e) “É tudo o que o público necessita saber; tudo aquilo que o público deseja falar; quanto mais comentário suscite, maior é seu valor; é a inteligência exata e oportuna dos acontecimentos, descobrimentos, opiniões e assuntos de todas as categorias que interessam aos leitores; são os fatos essenciais de tudo o que aconteceu, acontecimento ou idéia que tem interesse humano.”(Colliers Weekly)

f) “Informação atual, verdadeira, carregada de interesse humano e capaz de despertar a atenção e a curiosidade de grande número de pessoas".[44]

Os conceitos de notícia podem ser amplos no mundo todo. Entretanto, os requisitos em qualquer lugar são os mesmos para caracterizar uma notícia. Vejamos o que diz Luis Gustavo Grandinetti Castanho de Carvalho sobre o assunto:

“Antonio Scalisi, depois de examinar a jurisprudência italiana, concluiu que a informação jornalística é legítima se preencher três requisitos: o interesse social da notícia, a verdade do fato narrado e a continência da narração. Finalmente, é continente a narrativa quando a exposição do fato e sua valorização não integram os extremos de uma agressão moral, mas é expressão de uma harmônica fusão do dado objetivo de percepção e do pensamento de quem recebe, além de um justo temperamento do momento histórico e do momento crítico da notícia”.[45]

As notícias, além das críticas, são alguns dos principais alvos dos processos que chegam aos tribunais. Geralmente, os personagens retratados fazem pedidos de indenizações ou a retirada de notícias do ar no caso de sites e travam o confronto entre dois direitos fundamentais garantidos constitucionalmente — acesso à informação e a inviolabilidade dos direitos da personalidade. De um lado, está o veículo de comunicação que defende seu direito de informar e criticar quem quer que seja. De outro, estão os personagens retratados nas publicações que, geralmente, invocam a violação da privacidade para justificar os pedidos feitos nas ações contra os sites.

Neste contexto de batalhas judiciais travadas por personagens de notícias, é importante ressaltar que a liberdade de expressão é um dos direitos fundamentais garantidos na Constituição Federal de 1988. Jornalistas encontram amparo dessa liberdade, semente plantada durante a Revolução Francesa, em 1789, em dispositivos da Carta. O conceito de liberdade de expressão teve sua base inicial nos movimentos revolucionários do século XVIII. Naquele momento, o contexto social já sinalizava a necessidade de expressão de pensamentos.

No Brasil, o art. 5º, IV, da Constituição, prevê que é “livre a manifestação de pensamento, sendo vedado o anonimato”. O inciso XIV, também do art. 5º, diz que “é assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional”.

Além disso, o art. 220, da Constituição, afirma que “a manifestação de pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição”. É importante destacar, ainda, os parágrafos 1º e 2º do art. 220. O primeiro diz que “nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social, observado o disposto no art. 5º, IV, V, X, XIII e XIV”. O segundo afirma que “é vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística”.

As liberdades - liberdade de expressão, liberdade de informação, liberdade de consciências, religião e culto, liberdade de criação cultural e liberdade de associação - geralmente são caracterizadas, segundo Canotilho, como posições fundamentais subjetivas de natureza defensiva. Diz ele:

Neste sentido, as liberdades identificam-se com direitos e acções negativas (...). Resulta logo do enunciado constitucional que, distinguindo-se entre direitos, liberdades e garantias, tem de haver algum traço específico, típico das posições subjectivas identificadas como liberdades. Esse traço específico é o da alternativa de comportamentos, ou seja, a possibilidade de escolha de um comportamento.[46]

É importante ressaltar, também, que o Supremo Tribunal Federal tem se manifestado reiteradas vezes a favor da liberdade de expressão e de pensamento. Há inúmeros julgados com manifestações neste sentido. Em julho deste ano, por exemplo, o ministro Ricardo Lewandowski concedeu liminar na Reclamação 16.074, com base neste direito constitucional. O ministro suspendeu os efeitos da decisão da 27ª Vara Cível de São Paulo, que impediu a publicação de informações sobre um homem qualificado pelo site Consultor Jurídico como uma “figura pública e muito conhecida no mundo jurídico por ter sido condenado 239 vezes por litigância de má-fé”.[47]

Além disso, o site havia sido intimado judicialmente a remover todas as publicações relacionadas ao condenado. Lewandowski concedeu a liminar ao site com base no fato de que “a decisão reclamada parece ter ofendido a decisão emanada do Supremo Tribunal Federal, nos autos da ADPF 130/DF, de relatoria do ministro Ayres Britto”, conforme a defesa do site — que também argumentou que não poderia haver obstáculos à liberdade de expressão e de imprensa.[48]

Na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental mencionada, o STF decidiu que a Lei de Imprensa não foi recepcionada pela Constituição de 1988. O outro fundamento usado por Lewandowski foi a Reclamação 15.243. Nesta RCL, o ministro Celso de Mello afirmou que o exercício da liberdade de imprensa “não é uma concessão das autoridades” e sim “um direito inalienável do povo”.[49]

O decano do Supremo ressaltou, na ocasião, que o exercício concreto, pelos profissionais da imprensa, da liberdade de expressão, “assegura ao jornalista o direito de expender crítica, ainda que desfavorável e em tom contundente, contra quaisquer pessoas ou autoridades”.

Para ele, em uma sociedade democrática, “nenhuma autoridade, mesmo a autoridade judiciária, pode estabelecer padrões de conduta cuja observância implique restrição aos meios de divulgação do pensamento”.[50]

É preciso lembrar que em debates, tanto acadêmicos quanto jurídicos e políticos, a liberdade de expressão tem sido sempre lembrada, ao longo dos anos, como sinônimo de democracia no Brasil como bem tem demonstrado o ministro Celso de Mello em seus julgados. Vale também salientar que a liberdade de expressão engloba a liberdade de informação, mas é necessário fazer uma distinção entre elas. Apesar da ligação existente entre liberdade de expressão e liberdade de informação, a diferença entre uma e outra é importante no contexto deste Trabalho de Conclusão de Curso.

A liberdade de expressão engloba fatos, opiniões, juízo de valor, crenças e pensamentos do jornalista sobre determinado assunto. De acordo com Gilmar Mendes, a liberdade de expressão abarca “toda opinião, convicção, comentário, avaliação ou julgamento sobre qualquer assunto ou sobre qualquer pessoa, envolvendo tema de interesse público, ou não, de importância e de valor, ou não (...)”.[51]

Por outro lado, a característica mais forte da liberdade de informação é a sua base em notícias e fatos verdadeiros ou ao menos revestidos de veracidade. Pela leitura da obra de José Afonso da Silva, é possível concluir que a liberdade de informação é bem ampla e não se limita a liberdade do jornalista ou até mesmo do dono da empresa de comunicação. “A liberdade destes é reflexa no sentido de que ela só existe e se justifica na medida do direito dos indivíduos a uma informação correta e imparcial”.[52]

Barroso, com base na doutrina brasileira, faz também distinção entre liberdade de informação e de expressão. A primeira, para ele, abrange a comunicação de fatos e o direito difuso de ser informado. A segunda serve, de acordo com Barroso, para tutelar ideias, opiniões, juízos de valor e qualquer manifestação de pensamento humano. [53]

Luís Gustavo Grandinetti Castanho de Carvalho trata as diferenças da seguinte forma:

“Todos os doutrinadores citados, mesmo os que, em maioria, adotam uma disciplina comum entre expressão e informação, deparam-se com, pelo menos, uma distinção importante entre os dois institutos: a veracidade e a imparcialidade da informação. E é, justamente, em razão dessa distinção fundamental que se deve pensar em um direito de informação que seja distinto em sua natureza da liberdade de expressão”.[54]

Apesar da distinção entre ambas, é necessário lembrar que a Constituição de 1988 trata da liberdade de informação, liberdade de expressão e liberdade de imprensa em seus dispositivos já mencionados. E também da livre manifestação de pensamento. A diferenciação entre liberdade de expressão e liberdade de informação é, no entanto, relevante apenas para especificar mais adiante o ponto de discussão no contexto deste Trabalho de Conclusão de Curso.

É importante ressaltar que o ministro Celso de Mello é um dos maiores

defensores da liberdade de expressão de forma geral. O seu posicionamento sobre a liberdade de expressão é marcante pela veemência com a qual a defende. Um dos exemplos desse posicionamento aconteceu no julgamento histórico da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 187). Na ocasião, o STF decidiu, por unanimidade, que eram legítimas as manifestações públicas a favor da descriminalização da droga, que ficaram conhecidas como marchas da maconha. Vejamos um trecho do que Celso de Mello disse em um dos seus votos sobre este direito fundamental:

“Tenho sempre enfatizado, nesta Corte, Senhor Presidente, que nada se revela mais nocivo e mais perigoso do que a pretensão do Estado de reprimir a liberdade de expressão, mesmo que se objetive, com apoio nesse direito fundamental, expor ideias ou formular propostas que a maioria da coletividade repudie, pois, nesse tema, guardo a convicção de que o pensamento há de ser livre, sempre livre, permanentemente livre, essencialmente livre.

Torna-se extremamente importante reconhecer, desde logo, que, sob a égide da vigente Constituição da República, intensificou-se, em face de seu inquestionável sentido de fundamentalidade, a liberdade de manifestação do pensamento. Ninguém desconhece que, no contexto de uma sociedade fundada em bases democráticas, mostra-se intolerável a repressão estatal ao pensamento. Não custa insistir, neste ponto, na asserção de que a Constituição da República revelou hostilidade extrema a quaisquer práticas estatais tendentes a restringir ou a reprimir o legítimo exercício da liberdade de expressão e de comunicação de ideias e de pensamento. Essa repulsa constitucional bem traduziu o compromisso da Assembleia Nacional Constituinte de dar expansão às liberdades do pensamento. Estas são expressivas prerrogativas constitucionais cujo integral e efetivo respeito, pelo Estado, qualifica-se como pressuposto essencial e necessário à prática do regime democrático. A livre expressão e manifestação de ideias, pensamentos e convicções não pode e não deve ser impedida pelo Poder Público nem submetida a ilícitas interferências do Estado. Não deixo de reconhecer, Senhor Presidente, que os valores que informam a ordem democrática, dando-lhe o indispensável suporte axiológico, revelam-se conflitantes com toda e qualquer pretensão estatal que vise a nulificar ou a coarctar a hegemonia essencial de que se revestem, em nosso sistema constitucional, as liberdades do pensamento. O regime constitucional vigente no Brasil privilegia, de modo particularmente expressivo, o quadro em que se desenvolvem as liberdades do pensamento. Esta é uma realidade normativa, política e jurídica que não pode ser desconsiderada pelo Supremo Tribunal Federal.

A liberdade de expressão representa, dentro desse contexto, uma projeção significativa do direito, que a todos assiste, de manifestar, sem qualquer possibilidade de intervenção estatal “a priori”, as suas convicções, expondo as suas ideias e fazendo veicular as suas mensagens doutrinárias, ainda que impopulares, contrárias ao pensamento dominante ou representativas de concepções peculiares a  grupos minoritários. É preciso reconhecer que a vedação dos comportamentos estatais que afetam tão gravemente a livre expressão e comunicação de ideias significou um notável avanço nas relações entre a sociedade civil e o Estado.

Nenhum diktat, emanado do Estado, pode ser aceito ou tolerado, na medida em que venha a comprometer o pleno exercício da liberdade de expressão. A Constituição, ao subtrair, da interferência do Poder Público, o processo de comunicação e de livre expressão das ideias, ainda que estas sejam rejeitadas por grupos majoritários, mostrou-se atenta à grave advertência de que o Estado não pode dispor de poder algum sobre a palavra, sobre as ideias e sobre os modos de sua manifestação”.[55]

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Além de Celso de Mello e dos outros julgadores, no STF, o ministro Marco Aurélio também se manifestou sobre a liberdade de expressão de forma contundente, neste mesmo julgamento, sobre o assunto. Disse o ministro:

“Ora, a liberdade de expressão não pode ser tida apenas como um direito a falar aquilo que as pessoas querem ouvir, ou ao menos aquilo que lhes é indiferente. Definitivamente, não. Liberdade de expressão existe precisamente para proteger as manifestações que incomodam agentes públicos e privados, que são capazes de gerar reflexões e modificar opiniões. Impedir o livre trânsito de ideias é, portanto, ir de encontro ao conteúdo básico da liberdade de expressão”.[56]

2.1 – LIMITES DA LIBERDADE DE EXPRESSÃO E DE INFORMAÇÃO

No imaginário da imprensa, a liberdade de expressão e de informação são direitos assegurados constitucionalmente e, por isso, não podem ser limitados de forma alguma. Apesar das liberdades de expressão, de pensamento e de informação serem invocadas frequentemente quase como sinônimo de sociedade livre e democrática, alguns doutrinadores entendem que a liberdade de expressão tem limites previstos na própria Constituição Federal de 1988. É o caso do ministro Gilmar Mendes.

A interpretação que Gilmar Mendes faz do parágrafo 1º, do art. 220, da Carta, mostra como funciona essa limitação. O parágrafo 1º deste artigo diz que “nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social” com a ressalva de que devem ser observados o art. 5º, IV, V, XIII e XIV. Assim, conclui o ministro, “admite interferência legislativa para proibir o anonimato (IV), para impor o direito de resposta e a indenização por danos morais e patrimoniais e à imagem (V), para preservar a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas (X), para exigir qualificação profissional dos que se dedicam aos meios de comunicação (XIII) e para que se assegure a todos o direito de acesso à informação (XIV)”.[57]

O ministro destaca, ainda, a verdade como um dos limites à liberdade de expressão. Somente a informação verdadeira está protegida constitucionalmente? Gilmar Mendes cita este questionamento que existe a respeito do assunto. Para responder a indagação, ele menciona o pensamento de Konrad Hesse de que a informação falsa não estaria protegida pela Constituição. É importante ressaltar, dentro desta linha de pensamento, que a função do jornalismo é a busca constante pela verdade dos fatos.[58]

Gilmar Mendes assevera que o respeito à honra de terceiros é mais um limite para a liberdade de imprensa assim como o respeito à dignidade pessoal e respeito aos valores da família.[59] Para o ministro, a dignidade da pessoa é respeitada quando “o indivíduo é tratado como sujeito com valor intrínseco, posto acima de todas as coisas criadas e em patamar de igualdade de direitos com os seus semelhantes”.[60] E o desrespeito ocorre, na visão do ministro, quando a pessoa é simplesmente tratada como objeto para a satisfação de algum interesse imediato.

Os direitos à intimidade e à vida privada também são invocados pelo ministro como limitação para a liberdade de comunicação social. Ele menciona o inciso X, do art. 5º, da Constituição que prevê a inviolabilidade da intimidade, vida privada, honra e imagem das pessoas. Em casos de violação à privacidade, Gilmar Mendes e José Afonso da Silva apontam o direito à indenização, previsto constitucionalmente, para quem buscar o Judiciário.

Além da  Constituição,  o  art.  186,  do  Código  Civil,[61] fixa  regras  de responsabilidade civil em caso de violação de direito que causa danos. E o art. 927, do Código Civil,[62] estabelece o dever de indenizar pelo dano causado. Barroso lembra que “excepcionalmente” doutrina permite a proibição de fatos verdadeiros que firam a honra individual.[63]

A proibição nestes casos, segundo Barroso, envolvem circunstâncias de caráter privado e sem repercussão social e interesse público. Entretanto, na visão do ministro, este não é o caso da divulgação de fatos criminosos ou outros procedimentos criminais porque há interesse público no caso. De acordo com ele, a alegação de ofensa à honra deve ser afastada nos casos em que os fatos criminosos divulgados são verdadeiros e foram obtidos licitamente.

Com base na doutrina do penalista Claus Roxin, Barroso afirma que estes fatos não são referentes somente à esfera íntima da pessoa. E mais: que há interesse público na divulgação dos fatos até para mostrar que a lei penal está sendo aplicada com a função “de servir de desestímulo aos potenciais infratores”.[64]

Barroso comenta, em seu artigo, o caso Lebach, como ficou conhecido na Alemanha, em 1973, um assassinato. Na ocasião, o Tribunal Constitucional Federal alemão analisou se um programa de televisão poderia exibir um documentário sobre o homicídio que teve repercussão anos antes. Um dos condenados estava em fase final de cumprimento de pena e, por isso, entrou na Justiça. Ele usou dois argumentos:

“A veiculação do programa iria atingir a sua honra e seria obstáculo para a ressocialização. A primeira instância e o tribunal revisor não acataram os argumentos. O fundamento foi o de que o envolvimento no delito o tornou personagem da história alemã — o que justificaria a divulgação de interesse público. Para estes tribunais, este interesse público prevaleceria inclusive sobre a pretensão de ressocialização. O condenado recorreu ao Tribunal Constitucional, com o argumento de violação da dignidade da pessoa humana, que englobaria o direito à reinserção na sociedade. O Tribunal Constitucional alemão, então, reformou o entendimento anterior. Concedeu liminar para impedir a veiculação do programa caso houvesse menção expressa do condenado”.[65]

Barroso entende que dificilmente uma decisão como esta seria compatível com a Constituição de 1988 no Brasil. Segundo ele, o precedente desse tipo de interdição prévia para que um programa seja veiculado não assombra o imaginário político alemão como acontece no Brasil, que já conviveu com a ditadura militar.

Apesar disso, Barroso lembra que a liberdade de informação, de expressão e a liberdade de imprensa não são direitos absolutos e são limitadas pela própria

Constituição brasileira como pensa também Gilmar Mendes. Há quem defenda uma espécie de controle judicial em determinadas situações para evitar danos irreparáveis. Vejamos o que pensa Gustavo Tepedino sobre o papel da imprensa:

“Não pode ela, levianamente, divulgar suspeitas sobre pessoas, sem um mínimo controle judicial. Muitos inocentes, mercê da irresistível vocação de certas autoridades para o ‘show biz’, tornam-se irremediavelmente condenados, perante o público, diante de mera suspeita delituosa. O direito à informação não pode sobrepujar a discrição a respeito de inquéritos que, se divulgados, causam danos irreparáveis ao acusado. Provada sua inocência, ninguém mais se interessa pela notícia, e sua reputação fica definitivamente abalada”.[66]

2.2 — DIREITO AO ESQUECIMENTO

O direito ao esquecimento é previsto na legislação penal brasileira para proteger pessoas que foram condenadas e cumpriram suas penas. O art. 93, do Código Penal,[67] prevê o direito do condenado à reabilitação depois do cumprimento da pena ou a extinção da punibilidade. O art. 748, do Código de Processo Penal, prevê que as condenações anteriores não devem ser mencionadas na folha de antecedentes de quem se reabilitou, “nem em certidão extraída dos livros do juízo, salvo quando requisitadas por juiz criminal”.[68]

Este ano, pela primeira vez, o Superior Tribunal de Justiça entendeu que as pessoas têm “o direito de serem esquecidas pela opinião pública e até pela imprensa. Os atos que praticaram no passado distante não podem ecoar para sempre, como se fossem punições eternas”, noticiou o site Consultor Jurídico.[69] A 4ª Turma do STJ usou, na ocasião, a tese do direito ao esquecimento em dois recursos especiais ajuizados contra reportagens da TV Globo.

O primeiro recurso foi ajuizado por um acusado, posteriormente absolvido, no caso conhecido como Chacina da Candelária, no Rio de Janeiro. O outro recurso foi ajuizado pela família de Aída Curi — estuprada e morta em 1958 por um grupo de jovens. O assunto também foi amplamente divulgado na época. Nos dois casos, o argumento foi o de que eles aconteceram há muito tempo e não haveria mais motivo para serem abordados novamente. Motivo: não faziam mais parte do conhecimento comum da população.

 O site Consultor Jurídico bem resumiu o contexto do direito ao esquecimento no país. Vejamos:

“O direito ao esquecimento não é recente na doutrina do Direito, mas entrou na pauta jurisdicional com mais contundência desde a edição do Enunciado 531, da VI Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal (CJF). O texto, uma orientação doutrinária baseada na interpretação do Código Civil, elenca o direito de ser esquecido entre um dos direitos da personalidade. A questão defendida é que ninguém é obrigado a conviver para sempre com erros pretéritos. A grande dificuldade da discussão do direito ao esquecimento é que não se pode falar em regras, ou em tese. São sempre debates principiológicos que dependem muito da análise do caso concreto. Mas, em linhas gerais, o que o Enunciado 531 diz é que ninguém é obrigado a conviver para sempre com o passado”.[70]

Foi essa a tese que serviu para o ministro Luis Felipe Salomão, relator dos dois recursos especiais, decidir os casos. “Não se pode, pois, nestes casos, permitir a eternização da informação. Especificamente no que concerne ao confronto entre o direito de informação e o direito ao esquecimento dos condenados e dos absolvidos em processo criminal, a doutrina não vacila em dar prevalência, em regra, ao último”, afirmou ele em seu voto.[71]

Na ocasião, o ministro Salomão lembrou que o que estava em jogo era a liberdade de imprensa e o direito à intimidade. Disse ele:

“E é por isso que a liberdade de imprensa há de ser analisada a partir de dois paradigmas jurídicos bem distantes um do outro. O primeiro, de completo menosprezo tanto da dignidade da pessoa humana quanto da liberdade de imprensa; e o segundo, o atual, de dupla tutela constitucional de ambos os valores”.[72]

No julgamento reportado pelo site Consultor Jurídico, Luis Felipe Salomão fez, ainda, uma menção à tese da prescrição no Direito Penal para explicar a perda de interesse da população em fatos antigos. O ministro afirmou:

“Ao crime, por si só, subjaz um natural interesse público, caso contrário nem seria crime. E esse interesse público, que é, em alguma medida, satisfeito pela publicidade do processo penal, finca raízes essencialmente na fiscalização social da resposta estatal que será dada ao fato”.[73]

O ministro afirmou, ainda, que:

“(...) o interesse público que orbita o fenômeno criminal tende a desaparecer na medida em que também se esgota a resposta penal conferida ao fato criminoso, a qual, certamente, encontra seu último suspiro, com a extinção da pena ou com a absolvição, ambas irreversivelmente consumadas”.[74]

Em artigo publicado no jornal Valor Econômico, o direito de esquecimento na internet foi discutido pontualmente pelo advogado, economista e professor Renato Opice Blum. Ele lembrou que a possibilidade de se apagar informações incômodas na internet, mesmo que sejam verdadeiras, tem sido discutida cada vez mais. Vejamos o que Opice Blum pensa sobre o assunto:

“A análise do tema não é tarefa simples, já que, de início temos que enfrentar o suposto antagonismo entre as nuances do direito ao esquecimento (derivado da intimidade, vida privada, reabilitação social) e o imprescindível direito à informação. Nesse embate, nota-se que, se por um lado devem ser preservados os aspectos da vida privada da pessoa - que interessam só a ela -, de outro, temos a evidente necessidade de garantia de que informações de inquestionável interesse público estejam disponíveis a qualquer cidadão. Destarte, fatos relevantes e públicos, com efeitos sentidos diretamente pela sociedade, naturalmente precisam ser mantidos, eis que fazem parte da história da nação. De outra sorte, qualquer pessoa deve ter garantida a intimidade dos fatos de sua vida privada. Fotos corriqueiras dos tempos da universidade, opiniões polêmicas da época da adolescência e outras manifestações da vida cotidiana de interesse exclusivamente particular, porexemplo (que pelas vias comuns seriam desbotadas pelo tempo), merecem ser apagadas se desejarem seus titulares.

A situação se complica, por evidente, quando as informações que

Circulam na rede estão inseridas em notícias da mídia, publicações em diários oficiais, comentários ou opiniões de terceiros. Isso porque, como se sabe, na democracia, a liberdade de imprensa e a manifestação do pensamento são direitos que, exercidos com responsabilidade, devem ser preservados. Se as informações forem falsas (caluniosas ou difamatórias), sem dúvidas impõe-se a retirada imediata ou, no mínimo, a correção nos casos de excessos.

No entanto, se os fatos incômodos e verdadeiros, hipoteticamente de interesse público, publicados sobre o passado das pessoas (como condenações criminais) forem absolutamente verdadeiros, necessária é a reflexão sobre a pertinência de manterem-se eternos seus efeitos sobre a vida dos indivíduos.

Com efeito, de um lado temos: veracidade dos fatos, direito à informação, liberdade de imprensa e pensamento. De outro: consequências nefastas indefinidamente presentes na vida do indivíduo (e seus familiares), ainda que este já tenha sofrido a aplicação das penas previstas em lei (prisão, restrição de direitos, pagamento de indenizações etc)”.[75]

Opice Blum mencionou os artigos do Código Penal e do Código de Processo Penal (93-CP e 748-CPP), já citados neste Trabalho de Conclusão de Curso, como base dos caminhos a serem seguidos para a reabilitação e a ressocialização (artigos 93-CP e 748-CPP) de condenados. Ele lembrou os quesitos que devem ser levados em conta na reabilitação. O advogado afirma:

“(...) assegura-se ao indivíduo o sigilo dos registros sobre o s eu processo e condenação e, para a própria execução penal, há a previsão de que esta deve proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado (artigo 1º-LEP), objetivando prevenir o crime e orientar o retorno à convivência em sociedade (artigo 10- LEP). Dessa forma, se o retorno à convivência saudável em sociedade é um dos pilares da aplicação das penas, o direito ao esquecimento pelos fatos pretéritos praticados por uma pessoa pode ser entendido como medida para que essa finalidade seja, ao menos, tentada”.[76]

Opice Blum lembra, ainda, que a legislação civil brasileira também prevê que o exercício dos direitos da personalidade não podem sofrer limitações ao mencionar os artigos 11 e 12 do Código Civil.[77] Em linhas gerais, o primeiro prevê que os direitos da personalidade são intransmissíveis e irrenunciáveis e o segundo garante que seja cessada a ameaça, ou a lesão, a direito da personalidade. E que, nestes casos, é possível, buscar na Justiça reparação por perdas e danos. Com base nos dispositivos ele entende que, sob nenhum pretexto, “os fatos do passado, ainda que verdadeiros, podem fazer desvanecer, por completo, o futuro de um homem ou mulher”.[78]

O autor conclui:

 “(...) se é de interesse público o acesso a determinadas informações sobre as pessoas, é ainda muito mais importante, em termos sociais, que certos fatos sejam esquecidos em prol do resgate da dignidade do indivíduo - que pode então, em silêncio, tentar retomar em paz o que lhe resta da caminhada”.[79]

Também já se manifestou sobre o assunto o desembargador federal Rogério de Meneses Fialho Moreira, do Tribunal Regional Federal da 5ª Região, e professor de Direito Civil da Faculdade de Direito da UFPB, em João Pessoa. Ele foi o responsável por coordenar a Comissão da Parte Geral do Código Civil, na VI Jornada, que debateu e aprovou o enunciado que trata do tema como mencionado acima.

Quem sugeriu o enunciado para a comissão foi o promotor de Justiça no Rio de Janeiro, professor Guilherme Magalhães Martins, da Faculdade Nacional de Direito (UFRJ). Vejamos o que diz o desembargador sobre o enunciado, que causou

polêmica nos ambientes jurídico e jornalístico:

“O enunciado procura dar efetividade ao princípio constitucional da dignidade da pessoa humana e às regras que asseguram a proteção da privacidade e da intimidade. São direitos ínsitos à personalidade do ser humano e estão resguardados expressamente no Código Civil de 2002. Quem se sentir lesado em seus direitos personalíssimos poderia pleitear a eliminação da informação, não só dos meios de comunicação em mídia física, mas também do próprio mundo virtual.”[80]

Para ele, muitos fatos comuns do cotidiano de uma pessoa podem ser rapidamente disseminados em o que chama de “escala global” e “velocidade impressionante”. O desembargador afirma:

“Uma foto tirada, por exemplo, em momento de intimidade, propaga-se através das mídias sociais com impensada rapidez. Fatos praticados na juventude, e até já esquecidos, podem ser resgatados - isso passou a ser muito comum após a digitalização de jornais e arquivos antigos - e inseridos na “rede”, vindo a causar novos danos atuais e até piores, além daqueles já causados em épocas pretéritas”.[81]

Ele lembra que a teoria do direito ao esquecimento surgiu na Espanha. Com base nesta teoria ele diz que este seria um “corolário do direito à privacidade, o right to be let alone, ou seja, um direito a permanecer sozinho, esquecido, deixado em

paz”.[82]

Para ele, o direito ao esquecimento não serve para caracterizar censura. O desembargador ressalta:

“Bem medido e aplicado, o direito ao esquecimento não constitui censura ou ofensa ao princípio da liberdade de manifestação do pensamento. Na verdade, deve-se fazer a ponderação entre o interesse público na divulgação de fatos relevantes no ambiente informacional e o resguardo ao direito à intimidade e proteção à dignidade da pessoa e à inviolabilidade pessoal. São os abusos que devem ser eliminados e não a mera expressão da opinião”.[83]

Fialho Moreira não concorda com alegações e críticas de que o enunciado pode colocar em risco o registro histórico de arquivos digitais. Ele lembra, que antes mesmo do enunciado, já havia precedentes no STJ que determinavam a retirada de conteúdo, pelo provedor, em caso de informação ofensiva. Para o desembargador, o registro histórico, mesmo agora com o enunciado, não está em jogo. Afirma o desembargador:

“Quanto a colocar em risco a história, há evidente exagero na afirmação. De acordo com a própria fundamentação do enunciado, o direito ao esquecimento não atribui a ninguém o direito de apagar fatos passados ou reescrever a própria história. Esse direito, que estaria implícito na regra legal que assegura a proteção da intimidade, da imagem e da vida privada, bem como no princípio de proteção à dignidade da pessoa humana, garantiria apenas a possibilidade de discutir o uso que é dado aos eventos pretéritos. Assim, o enunciado traça apenas uma diretiva geral de interpretação. Não é qualquer informação negativa que enseja a sua eliminação do mundo virtual. É uma garantia contra o que a doutrina tem chamado de “superinformacionismo”. O enunciado é importante para a discussão do tema, mas ainda há muito espaço para o amadurecimento do assunto, de modo a serem fixados os parâmetros para que seja acolhido o “esquecimento” de determinado fato, com a decretação judicial da sua eliminação das mídias eletrônicas. Tudo orientado pela ponderação de valores, de modo razoável e proporcional, entre os direitos fundamentais e as regras do Código Civil de proteção à intimidade e à imagem de um lado e, de outro, as regras constitucionais de vedação à censura e da garantia à livre manifestação do pensamento”.[84]

O direito ao esquecimento não é um assunto que está sendo discutido somente do Brasil. Também tem sido debatido na Europa. Este ano, por exemplo, a Corte Europeia de Direitos Humanos se posicionou sobre o assunto, conforme noticiou o site Consultor Jurídico. E a discussão nem tratava de notícias verdadeiras como este Trabalho de Conclusão de Cursos. A Corte decidiu que os sites não são obrigados a apagar notícias duvidosas e imprecisas. A corte entendeu que não é papel dos juízes reescrever a história. “Para o tribunal, o equilíbrio entre o direito individual e a liberdade de expressão está na atualização dos textos antigos, que devem continuar acessíveis”.[85]

A Justiça brasileira tem decisões que mandam retirar o conteúdo da internet e outras em sentido oposto. Em uma ação ajuizada, por exemplo, contra o jornal Extra, o IV Juizado Especial Cível da Comarca da Capital entendeu que o conteúdo não deveria ser mantido no ar.

O autor da ação, que teve uma condenação criminal, afirmou que, por conta das notícias mantidas na internet, estava sofrendo constrangimentos em sua vida pessoal e profissional. E mais: ele afirmou que os fatos noticiados eram verdadeiros e, portanto, lícitos. Mas que lhe causava constrangimentos. O juiz Maurício Magalhães Lamha julgou, em 2012, procedente o pedido para determinar que o jornal retirasse do ar a notícia da internet no prazo de 10 dias. Vejamos como decidiu o juiz:

“Mesmo que os fatos noticiados sejam verdadeiros, eles não detêm mais qualquer conteúdo que se demonstre de interesse público, servindo somente para prolongar o estigma que se abateu sobre o autor desde a data em que os eventos ocorreram. Neste sentido, em sopesamento, ponderação, entre o direito a manter a notícia na internet e o direito do autor de que os fatos sejam esquecidos para que possa se reinserir na sociedade e no mercado profissional, entendo que o segundo deve prevalecer.

Afinal, o autor já foi condenado, e já foi suficientemente apenado pelo Poder Público, sendo inadequado que ainda seja estigmatizado e punido pela sociedade, anos depois dos fatos. Este tipo de “pena”, social, apesar de comum em nossa sociedade, não se revela consentânea com os princípios constitucionais que norteiam a tutela da dignidade.

Evidente que o réu atuou legitimamente ao noticiar os fatos, uma vez que vivemos em uma sociedade democrática e sem censura. No entanto, o que se discute aqui não é o direito de noticiar o fato, mas sim o direito de manter o fato noticiado.

Esse segundo direito tem uma força existencial menor que o primeiro, por dois motivos principais. Em primeiro lugar, pelo fato de que a ele se contrapõe o chamado direito ao esquecimento, fundamental dentro da perspectiva de que a dignidade não só deve ser protegida, como também pode ser resgatada. Em segundo plano, porque, na maioria dos casos, não subsiste após algum tempo o fundamento principal do direito à informação, que é o interesse público.

Acrescente-se a estes fundamentos o direito do autor não só de se ressocializar como pessoa inserida na sociedade, mas também o de se obter um novo emprego que lhe possibilite auferir renda para seu sustento e de seus dependentes. Afinal o direito ao trabalho, se revela como princípio fundamental da Constituição, sendo mais um contraponto ao direito do réu de manter o fato noticiado”.[86]

A 35ª Vara Cível do Rio de Janeiro decidiu em sentido oposto. Em uma ação ajuizada contra a Infoglobo Comunicações, a juíza Patricia Rodriguez Whately entendeu que a notícia era verídica, de interesse público e não houve nenhum ato ilícito e julgou improcedente o pedido. O autor da ação alegou que foi incluído em um processo criminal como chefe de quadrilha por conta de retaliação a denúncia de crimes praticados por policiais. O argumento foi o de que foi preso e não foi ouvido pelo veículo de comunicação. E mais: que posteriormente não houve nenhuma publicação sobre sua absolvição. A juíza entendeu, também em 2012, que o “fato de o autor ter sido absolvido não gera ao réu o dever de publicar notícia informando sua absolvição”.[87]

Em outro caso, o Juizado Especial Cível da Comarca de Angra dos Reis julgou improcedente o pedido de um restaurante em ação movida contra o jornal O Globo. O juiz Carlos Manuel de Barros do Souto entendeu, em 2010, o jornal não foi negligente ao noticiar o fato. Ele afirmou:

“Das provas produzidas, verifico que a ré não foi negligente no seu proceder, estando sob a lícita cobertura dos limites da liberdade de expressão. A notícia veiculada foi verídica não havendo qualquer abuso de direito. O fato de ter a referida interdição sido revogada não obriga o réu (por falta de previsão legal) que apague a notícia anterior e licitamente publicada. A liberdade de imprensa inicialmente foi utilizada dentro dos lícitos limites. De resto, não há lei que obrigue o jornal a apagar notícias pretéritas que já se desatualizaram, razão pela qual não se vislumbra violação de dever jurídico primário. Destarte, caberia ao autor promover a publicidade da citada revogação em seu site, para atualizar os seus clientes do ocorrido. Sendo assim, na falta de violação de dever jurídico primário não há como se impor responsabilidade ou obrigação ao réu, razão pela qual todos os pedidos serão julgados improcedentes”.[88]

Em uma ação contra a revista Veja, a juíza Isabela Pessanha Chagas, da 9ª Vara Cível do Rio de Janeiro, se manifestou sobre o tema. Ela mandou a revista pagar indenização a um ex-policial federal. Isso porque ele foi mencionado na revista como ex-traficante em 1998. Ele alegou que, depois de mais de oito anos da condenação, a revista mantinha na versão online a mesma reportagem. A juíza decidiu da seguinte forma:

“Cogita-se de Ação Indenizatória visando indenização por danos morais por ter a ré mantido "on line" a reportagem "Loucademia de Polícia". Quanto a alegação de prescrição alegada pela ré, é certo que o Código Civil prevê, no art. 205, § 3º, V, o prazo prescricional de três anos para a pretensão de reparação civil, que deve ser contada da data da publicação da mesma reportagem na internet, que o autor obteve impressão em 03/04/2009, tendo a presente ação sido proposta em 2009, não devendo ser reconhecida a prescrição.

Às fls. 13/14 consta decisão do pedido de Reabilitação do autor junto à Vara de Execuções quando foi deferido nos seguintes termos: "... defiro o pedido de reabilitação de CARLOS HENRIQUE BENÍGNO NUNES, devendo cessar qualquer informação constante em registro policial ou judicial que venha a prejudicar a sua vida social. Guarde-se perpétuo silêncio."

O autor já ingressou com ação de indenização perante a ré, pela publicação da reportagem na revista de 20 de outubro de 1998, descrita na presente ação, que foi julgada procedente condenando a ré a pagar ao autor, à titulo de danos morais, a quantia equivalente a 300 salários mínimos, que foi elevada para R$ 100.000,00 (fls. 33/34).

O pedido de retirada da matéria "Loucademia" da versão da Revista "on line" foi objeto de decisão de antecipação dos efeitos da tutela, confirmada em sede de Agravo de Instrumento interposto pela ré.

Passo a analisar o pedido de danos morais.

A indenização daquela ação já foi fixada em valores bem elevados, não cabendo nova indenização, mas apenas condenação pelo descumprimento da parte da sentença que determinava "perpétuo silêncio". Todavia a reportagem estava "on line", como reprodução de edição antiga que, contudo, não é acessada, salvo por aqueles que tenham algum interesse especial, razão pela qual a verba deve ser moderada â título de reparação, sob pena de ocorrer o bis in idem.

Pelo exposto, JULGO PROCEDENTE os pedidos, ficando extinto o feito, com resolução de mérito, na forma do art. 269, I do CPC, mantendo a decisão que antecipou os efeitos da tutela. Condeno a ré a pagar ao autor, à título de danos morais, o valor de R$ 20.000,00 (vinte mil reais), acrescidos de juros de 1% ao mês, a partir da citação e correção monetária a partir da presente data, até a data do efetivo pagamento.

Condeno a ré em custas processuais e honorários advocatícios, que fixo em 10% do valor da condenação.

P.R.I.

Rio de Janeiro, 26/09/2012”.[89]

Apesar de já existir algumas decisões judiciais, no Brasil, a doutrina sobre o tema específico ainda é escassa. Mas alguns advogados especializados em Direito de Imprensa que já se manifestaram sobre o assunto. Em novembro de 2009, o site Consultor Jurídico publicou uma reportagem sobre o tema. Na ocasião, especialistas comentaram a determinação da 2ª Turma Recursal de Belo Horizonte, que mandou o site retirar do ar a notícia que informava a condenação de um cirurgião plástico. Em 2002, ele foi condenado a indenizar em R$ 25 mil uma paciente por uma cirurgia mal sucedida. Posteriormente, entrou na Justiça para que a notícia fosse retirada do ar.

Alguns advogados que defendem ou já defenderam empresas jornalísticas se posicionaram sobre o assunto. “É a mesma coisa que mandar retirar dos arquivos as notícias do jornal publicadas no passado”, disse o advogado Luís Francisco Carvalho Filho.[90] Segundo ele, a notícia faz parte da história e deve ficar registrada nos arquivos do veículo de comunicação. De acordo com o advogado, a internet permite o acesso a conhecimento de fatos já publicados. “É como tentar destruir os arquivos de um jornal. O Poder Judiciário não tem que se meter na liberdade de imprensa”.[91]

O advogado Luis Camargo de Aranha Neto, que representa a TV Globo, lembrou ao site a tese do direito ao esquecimento. “Há como alegar o direito ao esquecimento caso a pessoa já tenha cumprido a pena, pago pelo o que fez”.[92] Vale lembrar que se o cidadão é condenado, o nome dele é lançado no rol dos culpados. Se cometer novo crime, é reincidente por conta das anotações anteriores. Mas o detalhe é que essa informação é restrita ao Poder Judiciário.

Aranha relembrou ao site Consultor Jurídico um caso do passado em que se discutiu direitos constitucionais. E, no fim, prevaleceu a liberdade de expressão. Foi o caso de Raul Fernandes do Amaral Street, o Doca Street. Ele foi condenado por matar a atriz Angela Diniz, crime de grande repercussão no ano de 1976. Ele obteve liminar para impedir a TV Globo de exibir um programa para contar a história. Posteriormente, no entanto, a Justiça liberou a exibição.

Outro advogado Lourival J. Santos, da Editora Abril, afirmou ao site Consultor Jurídico que se há respeito a todos os critérios jornalísticos, uma reportagem não pode ser retirada do ar. “Se o material atende a todos os requisitos jornalísticos e é um fato verdadeiro e comprovado, a informação se transforma em um arquivo que não poderá ser questionado”.[93] Ele chegou a comparar, na ocasião, a reportagem a uma obra. “Não existe prazo para cumprimento. Eu escrevo um livro e ele sempre poder ser lido, pois passa a fazer parte de um patrimônio cultural”.[94]

A Europa, assim como o Brasil, também começou a discutir se há direito de esquecimento na internet, como já mencionado. Em junho deste ano, um dos advogados-gerais que atua no Tribunal de Justiça da União Europeia se manifestou sobre o assunto. De acordo com o site Consultor Jurídico, ele defendeu que “uma pessoa não tem o direito genérico de pedir aos sites que apaguem informações verídicas sobre elas”. Outro caso, também noticiado pelo site Consultor Jurídico, a Garante per la protezione dei dati personali, agência reguladora que fiscaliza o cumprimento da lei sobre o uso de dados pessoais, entendeu que jornais e revistas podem manter o conteúdo online, mas devem atualizar notícias velhas para que estas possam mostrar a realidade atualmente.

A autoridade italiana sugeriu que atualização seja feita com uma nota no final do texto ou um link para a notícia mais atual. Antes, a Corte de Cassação da Itália também teve entendimento semelhante. Os juízes desta Corte decidiram:

“(...) que os jornais podem manter um arquivo de notícias online, mas precisam atualizar as informações - por meio de notas ou links no próprio texto - para que elas reflitam a realidade. Só assim para se conciliar o direito à informação histórica ao respeito à privacidade de cada um”.[95]

Assim, a Itália já sinalizou — ainda que em poucas decisões — como deve decidir os próximos casos sobre o tema.

 

Sobre a autora
Débora Pinho

Mediadora, advogada, jornalista, membro da Comissão Especial de Conciliação, Mediação e Arbitragem da OAB-MT e membro do Instituto Brasileiro de Práticas Colaborativas.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PINHO, Débora. Liberdade de imprensa e privacidade: princípios em colisão. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3913, 19 mar. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/27053. Acesso em: 5 nov. 2024.

Mais informações

Orientador: Manoel Messias Dias Pereira - professor de graduação e pós-graduação lato sensu, doutor em Ciências Jurídico-Criminais, mestre em Direito Processual Penal, pós-graduado em Filosofia e autor do livro "Direito Processual Penal e Direito Constitucional – Uma Abordagem Dialética".

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