Resumo: O presente artigo se propõe a fazer uma análise principiológica dos crimes ambientais no âmbito da pesca, sobretudo por estarem inseridos dentro do Direito Ambiental Brasileiro. Desta forma, apresentam-se os princípios da prevenção e da precaução conforme a sua origem no cenário internacional e como a ideia de prudência se incorporou ao direito pátrio. Em seguida, demonstram-se os crimes ambientais no âmbito da pesca e os seus principais aspectos, de modo a dar base para a análise concreta dos princípios da prevenção e da precaução sob a ótica do princípio da insignificância.
1. Introdução
O presente artigo se propõe a fazer uma análise principiológica dos crimes ambientais no âmbito da pesca, sobretudo por estarem inseridos dentro do Direito Ambiental Brasileiro. Assim, para que haja a correta aplicação dos tipos descritos na Lei n. 9.605/98, necessário efetuar uma digressão minudente do princípio e procurar aplica-lo de acordo com as balizas do sistema jurídico pátrio.
Analisando o Direito Ambiental no Brasil, podem-se identificar diversos princípios norteadores, estando eles discriminados explícita ou implicitamente no texto constitucional. Dentre estes princípios, ganham destaque os princípios da prevenção e da precaução por serem considerados basilares para o próprio Direito Ambiental.
Tomando como base este fundamento principiológico, alguns autores têm defendido que os crimes previstos nos artigos 34 e 35 da Lei n. 9.605/98 são formais, dispensando o resultado naturalístico e que não possibilitariam a aplicação do princípio da insignificância. No entanto, observam-se também autores que, não obstante reconheçam a influência dos referidos princípios ambientais, admitem a aplicação do princípio penal da insignificância, demonstrando inclusive precedentes judiciais neste sentido.
Assim, buscar-se-á fazer uma análise destes tipos penais à luz dos princípios da prevenção e da precaução, apresentando um exame crítico de dois precedentes judiciais recentes de Tribunais Superiores (STJ e STF), de modo a verificar até que ponto o Direito Penal pode contribuir para a proteção do meio ambiente.
2. Princípio da Prevenção e da Precaução
Como foi dito em linhas atrás, a base do Direito Ambiental reside nos princípios da prevenção e da precaução. Neste sentido, as palavras de Édis Milaré[1]:
Ambos são basilares em Direito Ambiental, concernindo à prioridade que deve ser dada às medidas que evitem o nascimento de agressões ao meio ambiente, de modo a reduzir ou eliminar as causas de ações suscetíveis de alterar a sua qualidade.
A emergência destes princípios, e portanto de toda a base do Direito Ambiental, surgiu em meados da Década de 70, em que os riscos e as incertezas começaram a ser o ponto nodal de diversas discussões em âmbito mundial.
Este fenômeno é muito bem tratado pelo sociólogo alemão Ulrich Beck, ao caracterizar a Sociedade de Risco, no quais os riscos não podem mais ser limitados quanto ao tempo e ao espaço, não se enquadrando mais nas regras tradicionais de responsabilidade.
Ocorre que o conceito de riscos para compreensão da dimensão principiológica aqui proposta não se limita a análise efetuada por Beck. Necessário também recorrer a também sociólogo Niklas Luhmann, para quem os riscos consistem no fruto de um processo decisório, não havendo decisão isenta de risco. Nesta linha de raciocínio[2], ele estabelece uma distinção entre risco e perigo: só se deve falar de riscos quando possíveis danos são consequências da própria decisão. Seria mais adequado falar de perigos quando os danos ou as perdas estão relacionados com causas fora do próprio controle[3].
Ressalte-se que está se tratando dos princípios da precaução e da prevenção como se pertencessem a uma raiz principiológica única, tendo em vista a grande divergência quanto ao tratamento destes princípios. A escola germânica não estabelece diferença entre esses princípios, (chamando ambos de Vorsorgeprinzip), enquanto a anglo-saxônica entende que há diferença (chamando-os de prevention e precautionary principles).
Neste ponto, interessante o posicionamento Álvaro Luiz Valery Mirra[4] que atribui ao direito ambiental o status de direito da prudência:
a partir da consagração do princípio da precaução, é bem de ver, não pode mais haver dúvidas de que o direito ambiental no Brasil é o direito da prudência, é o direito da vigilância no que se refere à degradação da qualidade ambiental e não do direito da tolerância com as condutas e atividades lesivas ao meio ambiente.
Assim, partindo-se do vocábulo prudência, pode-se dizer que o escopo histórico internacional dos princípios ora estudados iniciou-se com a ideia de prevenção, conforme se pode observar de documentos produzidos pela Agência Europeia Ambiente, no qual foram efetuadas as primeiras medidas de caráter preventivo: a) 1896 – relatórios de exposição à radioatividade; b) 1898 – amianto – referências da sua nocividade desde os tempos romanos[5].
Os documentos que se seguiram, como em 1972 - a Declaração do Meio Ambiente de Estocolmo e em 1984 – Conferência Internacional sobre a Proteção do Mar Norte, eram não precaucionários, ou seja, a incerteza científica era justificativa para não adoção de atitudes com relação à tutela ambiental.
O marco da mudança de concepção ocorreu no início das negociações para a Convenção de Viena para a proteção da Camada de Ozônio, de 1985, “quando incertezas científicas poderiam impedir a adoção de medidas voltadas à restrição da produção e comercialização de gases que destroem a camada de ozônio”[6].
Está mudança de concepção é apontada por Ulrich Beck[7] quando do estabelecimento de duas modernidades, uma ocorrida a partir do século XVII, após o início da Revolução Industrial, com a grande legitimação da tecnologia e da ciência, em que se acreditava que a natureza poderia ser dominada, e que o homem, ao possuí-la, poderia vencer a escassez e submetê-la a todas as vontades da sociedade. O risco, portanto, era tratado como consequência não desejada da modernização, se verificando apenas degradações ambientais localizadas.
A segunda modernidade surgiu justamente quando se passou a verificar que o progresso científico era a causa principal da exposição humana aos riscos e formas inéditas de danos. A esta modernidade o sociólogo denominou de modernidade reflexiva, uma vez que seus problemas refletem o modelo de desenvolvimento adotado pela sociedade industrial, levando ao surgimento da Sociedade de Risco.
O princípio da precaução rompe com a ideia de ciência onipresente e onipotente, abrindo-se para uma nova concepção de responsabilidade, muito bem trabalhada por Hans Jonas, filósofo alemão discípulo de Heidegger e Hannah Arendt.
Caso se pudesse estabelecer algum contexto filosófico para o princípio da precaução, este seria, sem dúvida, o princípio da responsabilidade do referido filósofo, que ajudou a difundir as ideias do princípio ambiental ora estudado na Europa[8].
Assim, concentrando-se nos problemas éticos da tecnologia, sustenta-se que a sobrevivência humana depende dos esforços para cuidar do planeta e do futuro. Assim, propõe duas responsabilidade, umas alargada no tempo e outra elástica, com atuação a priori e a posteriori, devendo-se estar aberto para o fato de que as ciências naturais não pronunciam toda a verdade sobre a natureza[9].
Considerando este cenário, a consolidação dos princípios da prevenção e da precaução se consolidou nos anos 90, sobretudo com a ECO-92 (Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento, ocorrida no Rio de Janeiro em 1992), que teve o seu conceito mais aceito pelo comunidade internacional. Contudo, verificaram-se outros documentos contemporâneos que também trouxeram a definição do princípio da precaução, como por exemplo: a) Convenção sobre a Biodiversidade Biológica – Protocolo de Cartagena (1992); b) Estocolmo sobre Poluentes Orgânicos Persistentes (2001).
Observe-se a inserção dos princípios da prevenção e da precaução na Declaração da Rio-92:
Princípio 15: de modo a proteger o meio ambiente, o princípio da precaução deve ser amplamente observado pelos Estados, de acordo com suas capacidades. Quando houver ameaça de danos sérios ou irreversíveis, ausência de absoluta certeza científica não deve ser utilizada como razão para postergar medidas eficazes e economicamente viáveis para prevenir a degradação ambiental (sem destaques no original).
De acordo com Joana Diss[10], o primeiro precedente judicial da Comunidade Européia a aplicar expressamente o princípio da precaução foi, em 1993, o julgamento da ação movida pela pesqueira Armand Mondiet contra a fabricante de redes Armement Islais, ambas francesas, discutindo a validade da proibição estabelecida pelo Conselho das Comunidades Europeias de se utilizar redes com mais de 2,5 km para a pesca de atum. A decisão[11] sustenta que os pareceres científicos disponíveis não levaram em conta o problema da exploração equilibrada do conjunto dos recursos biológicos de mar em bases duráveis e em condições econômicas e sociais adequadas. Ou seja, de acordo com o princípio da precaução, a inexistência de incerteza científica permitiu a manutenção da proibição existente.
No Brasil, a Lei de Política Nacional do Meio Ambiente (Lei 6.938/81), ao afirmar que tem como objetivo a preservação, melhoria e recuperação da qualidade ambiental propícia à vida, teria adota implicitamente os princípios da prevenção e da precaução.
Após este marco legislativo incipiente, a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 trouxe em seu art. 225 da CF que “todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”. Assim, afirmar-se que o vocábulo “preservar” estaria ligado a ideia de prudência e, portanto, aos princípios da prevenção e da precaução.
3. Crimes de Pesca no Direito Brasileiro
Da mesma forma que os princípios da prevenção e da precaução, os crimes da pesca encontram respaldo constitucional. De acordo com o art. 225, §3º, da CRFB/88, "as condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais". Através deste dispositivo, pode-se afirmar que restou consignado o bem jurídico ambiental como justificativa para imposição de sanções penais às agressões contra ele perpetradas.
Com relação aos crimes ambientais relacionados a atividade de pesca, verificou-se que a Lei n. 9.605/98 sistematizou as condutas relacionada no Capítulo V (Dos Crimes contra a Fauna), revogando o Decreto-lei n. 221/1967[12]. Os artigos 34 e 35 dos Crimes Contra a Fauna, preveem sanções contra crimes de agressão à fauna aquática.
Importante destacar que os dispositivos aqui tratados dizem respeito necessariamente a atividade de pesca e o que a referida lei estabeleça como tal[13]. Desta forma, analisando o art. 36[14] da referida lei, pode-se afirmar que o bem jurídico específico são os componentes da fauna aquática objeto da pesca, quais sejam: a) ictiofauna (fauna de peixes); b) carcinofauna (fauna crustáceos); c) malacofauna (fauna de moluscos). O dispositivo ainda incluiu como pesca o ato tendente a retirar, extrair, coletar, apanhar, apreender ou capturar vegetais hidróbios.
Observe-se que este dispositivo não conflita com a definição de pesca trazida pela Lei 11.959/2009, que define no seu art. 2º, III que “pesca: toda operação, ação ou ato tendente a extrair, colher, apanhar, apreender ou capturar recursos pesqueiros”, uma vez que o art. 36 trata da definição de pesca para fins penais.
Os tipos analisados se limitam aos grupos de animais aquáticos acima referidos, não abrangendo os mamíferos - cetáceos (baleias, golfinhos e toninhas), os sirênios (dugongos e peixes-bois), pinípedes (leões marinhos, lobos marinhos, focas e morsas) -, os anfíbios e os répteis que habitam o meio aquático.
Ainda com relação à redação do art. 36, há que se atentar para a expressão “ato tendente a”. Para Barreira e Ardenghi[15], o termo confere à figura delitiva a índole preventiva de que deve valer-se as normas de natureza ambiental, o que significa que o texto positivado teria concedido aos delitos analisados a natureza de crime formal. Já para Gomes[16], a expressão apenas teve o intuito de esclarecer que o ato de pesca na consiste apenas na efetiva captura do espécime, mas também no momento consumativo do ilícito penal[17].
Trata-se de crimes comuns, ou seja, não exigem qualquer qualidade em relação ao sujeito ativo, sendo admitido co-autoria e participação[18]. Por outro lado, tem-se como sujeito passivo a coletividade, que é titular do ambiente ecologicamente equilibrado.
Os delitos previstos nos artigos 34, caput, parágrafo único, I e II[19], 35, I e II[20] constituem normas penais em branco (primariamente remetidas), ou seja, “há uma necessidade de complementação para que se possa compreender o âmbito de aplicação de seu preceito primário”[21]. Buscou-se a utilização da acessoriedade administrativa, de modo a não incorrer no desacerto legislativo que existia quando da Lei 7.653/88, que estabelecia data certa para período de defeso. O período certo estabelecido, in casu, era o da piracema, de 1º de outubro a 30 de janeiro. Contudo, verificou-se incompatibilidade com a realidade, que depende de diversos fatores[22].
Gomes[23] esclarece que não possível afirmar que todos os crimes de pesca são de mera conduta. Neste sentido:
Para se saber se um delito de pesca é de resultado ou de mera conduta, faz-se necessário investigar o respectivo tipo e seus componentes específicos. A definição da pesca como ato tendente não autoriza a concluir-se, automaticamente, que todos os delitos de pesca são de mera conduta. E muito menos autoriza a entendê-los como delitos de resultado. Entre eles, há delitos de resultado e delitos de mera conduta. Nos delitos de pesca, verifica-se que os tipos legais exigem ou não, conforme o caso, a realização de um resultado naturalístico (captura do pescado) produzido sobre o objeto da ação (peixes, crustáceos e moluscos). Havendo a exigência de que a captura do pescado integre o injusto penal de pesca, o delito será tanto de resultado como de dano ao bem jurídico especificamente protegido (ictiofauna, carcinofauna e malacofauna). Não havendo, será de mera conduta e de perigo abstrato. A aferição do momento de consumação dos delitos de pesca impõe, necessariamente, que se analise cada uma das figuras delitivas, ressaltando-se que a generalização pode levar a conclusões falsas.
No entanto, na prática e considerando as peculiaridades dos crimes ambientais praticados no âmbito da pesca, a doutrina e a jurisprudência divergem quanto a caracterização ou não de crimes de mera conduta, parecendo ser mais acertada a interpretação que considere que todos os crimes de pesca são de mera conduta, uma vez que o legislador ao estabelecer como definição de pesca o termo “ato tendente a”, não exigiu qualquer resultado naturalístico, contentando-se com a ação ou omissão do agente.
De qualquer forma, parece ser claro que os delitos penais definidos no art. 34, caput, são delitos de mera conduta e não exigem a captura do pescado, consumando-se com a simples prática de ato tendente a capturar. Também são crimes de mera conduta, pescar mediante a utilização de aparelhos, petrechos, técnicas e métodos não permitidos” (art. 34, parágrafo único, II); “pescar mediante a utilização de explosivos ou substâncias que, em contato com a água, produzam efeito semelhante” (art. 35, I) e “pescar mediante a utilização de substâncias tóxicas, ou outro meio proibido pela autoridade competente” (art. 35, II). Estes dois últimos, previstos no art. 35, são crimes de perigo abstrato.
3.1. Crimes de Pesca e Princípio da Insignificância
Considerando que a aplicação do princípio da insignificância no âmbito dos crimes ambientais é objeto de divergências doutrinárias, é importante se fazer uma análise da sua aplicabilidade na ótica dos crimes ambientais praticados no âmbito da pesca.
O princípio da insignificância, não obstante tenha sua origem no Direito Romano (minima non cura praeter), teve a sua introdução no âmbito do Direito Penal em 1964 através do jurista alemão Claus Roxin, permitindo que haja a exclusão da tipicidade em caso de dano de menor importância.
A aplicação do referido princípio se justifica porque o legislador apenas tem em mente os prejuízos relevantes que o comportamento pode causar, não sendo considerados os danos inexpressivos[24]. De acordo com Cezar Roberto Bitencourt[25], há “condutas que se amoldam a determinado tipo penal, sob o ponto de vista formal, (mas) não apresentam nenhuma relevância material. Nessas circunstâncias, pode-se afastar liminarmente a tipicidade penal, porque em verdade o bem jurídico não chegou a ser lesado”.
Estabelecido o seu significado, importante esclarecer que existem dois posicionamentos quanto à aplicabilidade do princípio da insignificância. A primeira corrente, defendida por José Henrique Guaracy Rebêlo[26], sustenta que o referido princípio deve ser aplicado somente aos crimes materiais, uma vez que entende necessário confrontar a escassa importância da ofensa ao bem jurídico tutelado, o que somente poderia ocorrer se tivéssemos o resultado.
A segunda corrente é defendida por Damásio de Jesus[27], para quem o princípio da insignificância é aplicável a todos os crimes, sejam materiais, sejam formais ou de mera conduta, uma vez que o crime não se resume apenas à conduta típica. Contudo, há que se considerar os critérios de sua aplicação, quais sejam: (a) a mínima ofensividade da conduta do agente, (b) a nenhuma periculosidade social da ação, (c) o reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento e (d) a inexpressividade da lesão jurídica provocada[28].
Independente da corrente adotada, pode-se afirmar que a aplicação do princípio da insignificância não diz respeito ao bem jurídico a ser tutelado, mas a intensidade da ofensa a este bem jurídico. Assim, não há que se perguntar se é possível ou não a aplicação do princípio da insignificância aos crimes ambientais, mas sim, em que medida é possível a sua aplicação. Este também é o entendimento de Édis Milaré[29]:
No campo do Direito Penal Ambiental, obviamente, tal princípio deve ser aplicado com parcimônia, uma vez que não basta a análise isolada do comportamento do agente, como medida para se avaliar a extensão da lesão produzida; é preciso levar em consideração os efeitos das agressões infligidas ao ambiente que, por suas propriedades cumulativas e sinérgicas podem interferir negativamente no tênue equilíbrio ecológico.
Considerando os princípios da prevenção e da precaução, deve-se refletir como a sociedade deve lidar com riscos advindos do modelo de desenvolvimento adotado. Obviamente que não se pode afirmar peremptoriamente que todo crime ambiental deve ser punido em virtude do caráter precaucional da norma, mas também não se deve exigir que a existência do resultado naturalístico seja determinante para a penalização da conduta.
Saindo um pouco da ótica penal, analisando apenas a matriz principiológica aqui estudada, pode-se exemplificar a questão de medição de riscos através do planejamento de ações governamentais compatíveis com o princípio do desenvolvimento sustentável.
Pode-se ter certeza de que a supressão completa de um determinado mangue trará efeitos devastadores para os recursos pesqueiros das proximidades. Mas, como saber o efeito real da conversão de parte do mangue para um uso alternativo? Existe aí uma zona cinzenta. O conhecimento científico não permite dizer qual é a capacidade de suporte do ecossistema, bem como o ponto a partir do qual ele perderá sua resiliência e estará, de fato, comprometido. E, sem esse tipo de informação, não haverá consistência em qualquer estimativa do curso de conservação da área de manguezal[30].
Assim, todas as decisões que são tomadas pela sociedade diariamente têm consequências[31], e mais, causam dano ambiental. Ao analisar o princípio da precaução, Bessa Antunes[32] atenta para o perigo da paralisia, uma vez que “o princípio não determina a paralisação da atividade, mas a adoção dos cuidados necessários, até para que o conhecimento científico possa avançar e a dúvida seja esclarecida”.
Nesta mesma linha de raciocínio e voltando a analisar a questão sob a ótica penal, é possível concluir que, no processo decisório, o magistrado responsável pelo adoção de medidas sancionatórias penais deve levar em consideração as peculiaridades do caso concreto, utilizando-se a técnica de ponderação de princípios envolvidos.
Aqui vale a pena relembrar os ensinamento de Habermas para quem e conteúdo moral de direitos fundamentais e de princípios do Estado de direito se explica pelo fato de que os conteúdos das normas fundamentais do direito e da moral se cruzam e que, em virtude disso, oferece uma crítica à ponderação proposta por Alexy: impossibilidade de se atribuir um custo-benefício aos princípios, sob pena de se neutralizar deontologicamente os princípios.
No que diz respeito aos crimes de pesca, há que se atentar que o bem jurídico tutelado é a fauna aquática, especificamente a ictiofauna, a carcinofauna e a malacofauna. O objetivo maior é preservar a população destes espécimes que podem ter a sua redução atribuída a ação humana ou a causas naturais.
Barreira e Ardenghi[33] afirmam que diante da impossibilidade de se medir o quantum de danos ao meio ambiente que determinada atividade pode causar ou de se estipular o que causa menos dano à natureza, não é recomendado a aplicação do princípio da insignificância aos crimes praticados no âmbito da pesca, sobretudo porque
não estamos diante de uma conduta tipificada tão-somente para resguardar o período de desova dos peixes, ou o local onde a pesca seja proibida, ou uma determinada espécie em extinção, mas com o fim de salvaguardar interesses muito maiores, pois se trata de proteção a toda fauna aquática, cuja importância atinge tanto aspectos econômicos quanto ambientais propriamente ditos[34].
Ao contrário, Taglialenha[35] defende que, tendo em vista que os tipos penais da pesca visam à punição de pesca predatória – que seria a única a comprometer a fauna aquática protegida –, não deveria haver a punição indiscriminada de atos de pesca que supostamente pouco ou nenhum dano causariam ao meio ambiente. Neste mesmo sentido, se posiciona Luís Roberto Gomes[36] ao afirmar pela possibilidade do julgador fazer “uma interpretação restritiva dos tipos penais em questão mediante a aplicação dos princípios penais da adequação social, da insignificância e da proporcionalidade, à luz da exclusiva proteção subsidiária dos bens jurídicos (lesividade)”.
3.2. Análise do precedente do Superior Tribunal de Justiça: Habeas Corpus nº 192.696 – SC
O caso julgado pelo Superior Tribunal de Justiça se baseou no fato de o pescador ter sido flagrado pela Polícia Militar de Proteção Ambiental, praticando pesca predatória de camarão, com a utilização de petrechos proibidos em período defeso para a fauna aquática e sem autorização dos órgãos competentes. Assim, teria sido denunciado de acordo com o art. 34, parágrafo único, II, da Lei n. 9.605/98.
Considerando que se estaria diante de uma pesca de aproximadamente 4 (quatro) quilogramas de camarão devolvidos vivos ao habitat natural, a defesa pugnou pelo reconhecimento da insignificância penal.
No entanto, a Corte Superior considerou que o pescador fez uso de instrumento denominado gerival, que se constitui em um tipo de arte de pesca utilizada na captura do camarão em regiões estuarinas e que, dependendo da malha, pode ser altamente predatório[37], possibilitando a captura de espécimes muito inferiores a tamanho permitido para comercialização.
Assim, a tese da insignificância penal restou afastada nas instâncias ordinárias e no STJ, sob o entendimento que restou clara a ofensa ao bem jurídico, “pois o acusado estava realizando pesca de camarão com o uso de gerival malha 25 mm em período defeso, na Baía da Babitonga, o que interrompe o ciclo de reprodução, ciclo este que permite a perpetuação das espécies”[38].
3.3. Análise do Precedente do Supremo Tribunal Federal: Habeas Corpus 112563
A questão julgada se tratava de pescador flagrado com doze camarões e uma rede de pesca fora das especificações da Portaria n. 84/02 do IBAMA. Da mesma forma que no precedente anterior, houve a condenação com base no art. 34, parágrafo único, II, da Lei n. 9.605/98.
O Habeas Corpus foi impetrado com o intuito de se aplicar o princípio da insignificância ao caso concreto, alegando-se a) a mínima ofensividade da conduta do agente; b) nenhuma periculosidade social da ação; c) o reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento; e, por fim, d) a inexpressividade da lesão jurídica provocada.
O relator Min. Ricardo Lewandowski, no mesmo sentido do precedente do STJ comentado anteriormente, decidiu que o tipo referido “não tem como pressuposto a ocorrência de um prejuízo econômico objetivamente quantificável, mas a proteção de um bem intangível, que corresponde, exatamente, à proteção do meio ambiente”. E ainda ressaltou que o pescador incidiu em duas condutas proibidas: a pesca no defeso e a utilização de petrechos ou aparelhos não permitidos.
Assim, o Ministro denegou a ordem. Contudo, o seu voto foi vencido, após a divergência aberta pelo ministro Cezar Peluso e seguida pelo ministro Gilmar Mendes[39]. Pelo teor das notas taquigráficas, se verificou que a aplicação do princípio da insignificância foi efetuada sem análise dos critérios que autorizam a sua aplicação, se limitando apenas a quantidade de camarões capturados (doze).
Verificou-se que, in casu, o princípio da insignificância foi objeto de aplicação arbitrária, usando-se como fundamento, não a avaliação da lesão ao bem jurídico, mas apenas a avaliação quantitativa sobre o dano. Contudo, é preciso comportamentos judiciais de maior responsabilidade e de compromisso com a proteção do meio ambiente, nos moldes propostos por Hans Jonas, devendo-se reconhecer que a realidade transformadora do homem e as consequências para a sua existência e a das futuras gerações.
Neste sentido, vale transcrever as palavras de Leite e Ayala[40] que, ao analisar o princípio da insignificância nos precedentes dos Tribunais Pátrios, denunciou a sua aplicabilidade indiscriminada nos crimes ambientais:
“(...) procurou-se evidenciar e contextualizar essas condições de aplicação, denunciando a insuficiência e a inadequação da metódica que utiliza, a qual continua a reproduzir uma postura ainda limitada de compreensão da autonomia do bem ambiental, restringindo os critérios de ponderação tão somente aos interesses atuais das presentes gerações, quando aquele contempla, como objetivo fundante, a necessidade de comunicação intergeracional como pressuposto para a tomada de decisões”.
Em que pese às divergências doutrinárias e jurisprudenciais, entendo que a interpretação com relação à aplicabilidade dos crimes ambientais praticados no âmbito da atividade de pesca deve ser mais radical, não se permitindo a aplicação do princípio da insignificância, seja porque se adota a primeira corrente apresentada para aplicação do princípio penal, sendo os crimes de pesca de mera conduta (em virtude do vocábulo presente no art. 36 – “ato tendente a”), não havendo, portanto, resultado naturalístico que possa tornar auferível o dano ao bem jurídico tutelado, seja pelo fato de que, mesmo que se considere que todos os crimes admitem a aplicação do princípio da insignificância, posto que afirmar a possibilidade de aplicação do princípio penal aos crimes ambientais consiste em anular os princípios da prevenção e da precaução[41], tornando as complexidades da fauna aquática, especificamente a ictiofauna, a carcinofauna e a malacofauna como irrelevante bem assim a concepção de responsabilidade ali embutida.
Atente-se que o referido precedente foi o primeiro que aplicou o princípio da insignificância no âmbito dos crimes ambientais no STF, não sendo possível afirmar que se trate de posição consolidada no referido tribunal, não se vislumbrando até a presente data outros precedentes no referido sentido[42].