INTRODUÇÃO
Este estudo tem por objeto apresentar algumas das vicissitudes envolvendo o problema da culpabilidade, no que tange precipuamente ao seu conteúdo material, bem como a sua evolução na dogmática penal, expondo e analisando as correntes doutrinárias que procuraram definir seu conceito e apresentar, nos limites que tal trabalho impõe, alguns critérios para a correta e válida solução da problemática concernente ao conteúdo material da culpabilidade.
Hodiernamente convém tal estudo para uma real compreensão das íntimas relações existentes entre o Estado e a aplicação da pena. Para cada modelo de Estado, impõe-se um conceito de pena e, conseqüentemente, um determinado conceito de culpabilidade.
Desta forma, para que se legitime a aplicação da sanção penal, faz-se mister analisar de maneira crítica os fins da pena.
Os pressupostos teóricos fundamentais do Direito Penal recebem do contexto social que aparecem e se constituem o elemento vital que determina o conteúdo dos mesmos, segundo a concepção de cada época, pelas disciplinas filosóficas que moldaram o direito penal. Cada momento histórico, a cada mudança do espírito da época (zeitgeist), encerra uma idéia diferente de indivíduo e determinam, assim, os diferentes significados atribuídos à ação, à ilicitude, à culpabilidade, e, conseqüentemente, os conceitos de crime e de pena.
O Direito Penal sempre buscou uma fundamentação científica para legitimar a sua intervenção na esfera privada dos indivíduos. Este trabalho notável e incessante observa-se nos estudos desenvolvidos ao longo dos séculos, os quais refletem diversos sistemas, todos eles buscando aprimorar-se cada vez mais.
O princípio da culpabilidade no Direito Penal costuma ser definido em três dimensões. A culpabilidade como pressuposto da pena estatal que consiste na aplicação da pena ao autor de uma conduta típica e ilícita, para tanto, exige-se mais alguns requisitos, quais sejam, a consciência da ilicitude, a capacidade de culpabilidade e, por fim, a exigibilidade de conduta diversa. Percebe-se que tais requisitos constituem elementos do conceito dogmático de culpabilidade, de tal sorte que, a ausência de qualquer um deles, exonera o autor da aplicação da pena.
Temos ainda a culpabilidade como medida da pena, em que aquela não é considerada como o fundamento da pena em si, mas sim, um meio de impor limites à sanção estatal.
Por fim, a culpabilidade como instrumento para coibir a responsabilidade pelo resultado. Desse modo, o resultado produzido por uma conduta isenta de dolo ou culpa não deve ser considerado penalmente relevante, extirpando da dogmática penal, a responsabilidade objetiva.
Atualmente o dolo e a culpa estão contidos no tipo, mas há uma preocupação constante em fundamentar a pena na reprovação pela conduta e não pelo resultado.
Assim, justifica-se a aceitação do postulado que torna possível nosso objeto de investigação, na medida em que proporciona sentido ao problema nela tratado. Todo Direito Penal é um direito penal de culpa e esta constitui pressuposto e fundamento de toda pena e da sua medida.
Para que se torne viável uma concepção moderna do princípio da culpabilidade, temos que analisar sempre a liberdade do sujeito que age. A liberdade do autor de determinada conduta consiste no pressuposto comum a toda consideração material acerca do princípio da culpabilidade. Devido às vicissitudes que tal análise comporta, ensejam-se grandes dificuldades devido às contradições inerentes às concepções de liberdade.
Espera-se que a determinação do critério do problema aqui proposto resulte, antes que das possíveis vantagens que em geral assistam a certa concepção da culpabilidade, da necessidade de se superar as aporias imanentes em que parece incorrer.
Para FRAGOSO, a culpabilidade:
Consiste na reprovabilidade da conduta ilícita (típica e ilícita) de quem tem capacidade genérica de entender e querer (imputabilidade) e podia, nas circunstâncias em que o fato ocorreu, conhecer a sua ilicitude, sendo-lhe exigível comportamento que se ajuste ao Direito.[1]
Nas palavras de FRAGOSO podemos claramente visualizar a influência finalista de WELZEL que afirmava ser a essência da culpabilidade a reprovabilidade (elemento da teoria normativa pura da culpabilidade). Ainda incutido no conceito de Fragoso, que é o emergente da lei em vigor, podemos distinguir nitidamente os seguintes elementos: a imputabilidade, o dolo ou a culpa, a consciência da ilicitude e por fim, a exigência do comportamento conforme o Direito. Podemos também traçar um paralelo entre a teoria de ROXIN, qual seja, a idoneidade para destinatário de normas, às palavras de FRAGOSO, a capacidade genérica de entender a ilicitude da ação.
A definição corrente da culpabilidade consiste em juízo negativo sobre o autor de um fato declarado ilícito e típico pelo ordenamento jurídico.
Eis o que preceitua o Código Penal Alemão:
A pena requer a culpabilidade antes. A culpabilidade é reprovabilidade. Com o desvalor da culpabilidade se censura ao autor por não haver se comportado conforme o direito, não tendo se decidido por ele, quando podia se comportar conforme a ele, quando podia se decidir por ele. (Strafe setzt Schuld voraus. Schuld ist Vorwerfbarkeit. Mit dem Unwerturteil der Schuld wird dem Täter vorgeworfen, daß er sich nicht rechtmäßig verhalten, daß er sich für das Unrecht entschieden hat, obwohl er sich rechtmäßig verhalten, sich für das Recht hätte entscheiden können).[2]
Portanto, a culpabilidade visa censurar o indivíduo diante das suas características mais profundas de seu ser, quais sejam, liberdade e consciência.
Pretende-se assim, através do presente trabalho, expor o processo que culminou na atual concepção do princípio da culpabilidade, para uma melhor compreensão da matéria e dos problemas que a envolve.
Como bem assentado por GALVÃO[3], o problema da culpabilidade é uma matéria de extrema relevância para a moderna dogmática penal. Atualmente há uma crise envolvendo as diversas concepções da culpa no Direito Penal. Tal crise é conseqüência das dificuldades de conciliação entre os princípios de política criminal, condizentes com um Estado Democrático de Direito, e atender aos anseios sociais de prevenção da criminalidade, bem como à dignidade da pessoa humana.
O trabalho está estruturado em oito capítulos. Os primeiros quatro capítulos tratam da evolução do conceito de culpabilidade e aborda as correntes doutrinárias que buscaram ao longo do tempo explicar e conceituar a culpabilidade no âmbito jurídico-penal.
O primeiro capítulo apresenta um escorço histórico da culpabilidade, abordando a responsabilidade objetiva também conhecida como responsabilidade pelo resultado.
O segundo capítulo trata da teoria psicológica da culpabilidade com suas características causalistas e deterministas.
No terceiro capítulo é apresentada a teoria psicológico-normativa da culpabilidade, exibindo seus elementos fundamentais, dada a sua importância para o ordenamento penal pátrio devido ao fato de ser a doutrina recepcionada originalmente pelo Código Penal Brasileiro de 1940.
No quarto capítulo foi objeto de análise a teoria normativa pura da culpabilidade, baseada na teoria da ação finalista de Hans WELZEL. Por se tratar da teoria que passou a vigorar em nosso ordenamento penal após a reforma de nosso diploma repressivo ocorrida em 1984, procurou-se dar uma maior profundidade em sua análise, apresentando seus elementos constitutivos.
O quinto capítulo trata do livre-arbítrio no pensamento de Hans WELZEL, devido à sua importância dentro da teoria normativa pura da culpabilidade.
Nos capítulos seguintes, sexto e sétimo, são apresentadas respectivamente, as concepções funcionalistas de Claus ROXIN e de Günther JAKOBS.
Nas considerações finais serão apresentados alguns critérios para a necessária reconstrução do conceito de culpabilidade no direito penal moderno.
1 DELINEAMENTO HISTÓRICO: RESPONSABILIDADE PELO RESULTADO
A evolução do princípio da culpabilidade na dogmática jurídico-penal, dos seus primórdios até a atual crise que este princípio basilar do direito penal vem enfrentando, acompanha a evolução de diversos institutos penais, tais como, a teoria da ação, a teoria do tipo e do injusto, é também conseqüência da polêmica envolvendo o conceito final e causal da ação, a sistemática dos elementos subjetivos do delito, a concepção diferenciadora do estado de necessidade e às teorias do erro de tipo e de proibição. Tais institutos também vieram a ser o cerne da questão envolvendo a legitimação da pena e sua devida adequação à culpabilidade.
Nos primórdios do Direito Penal, bastava fazer a prova do vínculo causal entre a conduta e o resultado lesivo de um determinado bem jurídico para haver a punição. Não se vislumbrava os aspectos subjetivos e psicológicos da ação ou da omissão. Com base apenas em uma mera relação causal o agente era punido. Infelizmente, A responsabilidade sem culpa, ou pelo resultado, ou objetiva, ainda é uma realidade nos dias de hoje. Podemos encontrar em códigos penais do mundo todo figuras incriminadoras em que resulta esquecida a culpabilidade.
Para KELSEN[4], o dever jurídico está relacionado ao conceito de responsabilidade jurídica. Assim, quando afirmamos que um indivíduo é juridicamente responsável por determinada conduta, significa que ele estará sujeito à sanção, caso sua conduta seja contrária ao mandamento da norma. No direito primitivo, a relação entre a conduta do agente e o resultado não possuía qualquer qualificação psicológica. Desse modo, saber se o agente previu ou pretendeu realizar o resultado era irrelevante. Se sua conduta ocasionou um efeito considerado nocivo pelo legislador, bastando uma conexão objetiva entre a ação e o resultado. Não é imprescindível haver qualquer relação entre o estado mental do sujeito e o efeito de sua conduta.
No direito primitivo, portanto, para imputar um resultado e, conseqüentemente, aplicar a sanção estatal, era suficiente apenas a constatação do nexo de causalidade entre a conduta do agente e o resultado ilícito. Assim operava a chamada responsabilidade pelo resultado, responsabilidade sem culpa, ou simplesmente, responsabilidade objetiva. Hodiernamente, na dogmática penal é cediço que este conceito de culpa pode levar a injustiças. Não é o caso de outros ramos da ciência jurídica, como por exemplo, àqueles que estudam a responsabilidade civil.
Nesta modalidade de responsabilidade sem culpa, não se levava em consideração a representação do agente, ou seja, se este agiu mediante um defeito volitivo ou cognitivo. Desse modo, o resultado ilícito era interpretado sob uma ótica objetiva, causalista, naturalista, despida de qualquer elemento axiológico, não sendo, relevante procurar na psique do agente, na mente do sujeito que age, se este ao realizar a ação agiu sob defeitos de ordem cognitiva ou de ordem volitiva.
Percebe-se nitidamente que neste ponto, a culpabilidade está evoluindo para finalmente, consolidar-se em reprovabilidade, isto é, passando a reprovar o sentido da conduta e não o seu resultado.
2 TEORIA PSICOLÓGICA DA CULPABILIDADE
Na concepção psicológica da culpabilidade, cuja influência do naturalismo determinista/causalista é evidente, exigem-se duas condições para a imposição da pena: a relação objetiva de causa e efeito, ou seja, a ação ou omissão causadora de um resultado ilícito (imputação objetiva) e a relação psicológica que se manifesta pelo dolo ou pela culpa em sentido estrito. Essa causa deve provir de pessoa mentalmente desenvolvida e sã que esteja, portanto, apta a entender e querer. O resultado lesivo como uma modificação do mundo exterior deve ser fruto da vontade, ou do consentimento, ou ainda da falta de cuidado exigível razoavelmente do comum das pessoas. Tal concepção tinha a pretensão de abraçar todas as necessidades de se punir a um culpado e ainda de proteger um inocente da arbitrariedade estatal.
Esta teoria foi a dominante no século XIX e parte do século XX e teve como seu maior defensor Franz Von LIZT.
Como podemos inferir, LIZT simplificou o conceito de ação, reduzindo-o a um processo meramente causal, determinista, cuja origem se encontra na vontade do agente. Nesta linha de raciocínio, concluímos que para os adeptos da teoria psicológica da culpabilidade, esta se resume à relação subjetiva entre o autor e o fato (a mudança que a sua conduta produziu na natureza).
LIZT era um ferrenho adversário daqueles que acreditavam ser o livre-arbítrio o fundamento da culpabilidade. Tal posicionamento, a meu ver, pode ser explicado pelo fato de LIZT ser um pensador determinista.
O penalista Sebastian SOLER, adepto da teoria psicológica, em sua obra “Derecho Penal Argentino”, adverte:
O que na verdade caracteriza essa corrente consiste em exigir a real existência de certa ‘atitude subjetiva’ em face do fato que se sabe ilícito. Mais que psicológica, pois, poderia essa teoria ser chamada realista ou subjetivista, pois não consistem em considerar a culpabilidade como mera referência psíquica a um fato externo, despojado de toda valoração, mas a uma referência que leva à criminalidade da ação; esta qualidade é sempre o resultado de uma projeção valorativa que pressupõe a existência de normas ante as quais os fatos resultam ser ilícitos. Psiquicamente, a referência a um fato externo é, em si mesma, um fato valorativamente neutro, e certamente a culpabilidade não é constituída por esta referência. A forma como a subjetividade se refere a um fato externo é a mesma quando um caçador dispara contra um animal e quando dispara contra um homem acreditando ser este um animal. O erro não modifica a natureza psíquica da conduta, mas sim, sua natureza moral e jurídica. Um pensamento é um ato psíquico, seja ele verdadeiro ou não; a verdade não é algo psíquico. Tampouco o é a ilicitude. Por esta razão, a culpabilidade não pode ser explicada por uma instância extra psíquica.[5]
Assim, o dolo e a culpa formavam um todo único, haja vista que sob tal ótica, a culpabilidade não apresentava mais nenhum elemento essencial. Em um primeiro momento foi definida espécies de culpabilidade e em um momento posterior estas passam a ser seus elementos.
O cerne da concepção psicológica da culpa residia na diferenciação entre o fato descrito como crime, de caráter meramente objetivo dos elementos anímicos, de caráter subjetivo. Nesta concepção, consoante TOLEDO: “culpabilidade é uma ligação de natureza anímica, psíquica, entre o agente e o fato criminoso”. [6]
Nesse sentido, preleciona WELZEL:
A compreensão de que o elemento específico da culpabilidade consiste na reprovabilidade é resultado de um longo processo de evolução. Nos primórdios da moderna dogmática penal operou-se a separação entre os elementos “internos” e “externos”, “objetivos” e “subjetivos. Entretanto, todo fator externo, objetivo, estava ligado ao conceito de ilicitude, enquanto os elementos internos subjetivos estavam relacionados com a culpabilidade. Assim, a culpabilidade era tida como a relação psíquica entre o autor e o resultado. [7]
Esta concepção era coerente com a essência de um paradigma da teoria do delito que se fundava no critério objetivo/subjetivo.
2.1 Crítica à teoria psicológica da culpabilidade
A teoria psicológica foi gradualmente abandonada devido à necessidade de se estruturar o conceito de crime e ainda, diante dos problemas que tal teoria enfrentou ante os delitos omissivos, bem como a culpa inconsciente. Tal concepção ainda guardava certa compatibilidade com o modelo causalista.
Nesse diapasão, afirma MIRABETE:
Tal teoria, porém, não explica convenientemente a culpabilidade penal. Verificou-se que na culpa inconsciente (em que o sujeito não prevê o resultado) não há nenhuma ligação psíquica entre o autor e o resultado. Ademais, os atos humanos são penalmente relevantes apenas quando contrariam a norma penal. O dolo e a culpa, em si mesmos, que existem em todos os atos voluntários que causam um dano, não caracterizam a culpabilidade se a conduta não for considerada reprovável pela lei penal.[8]
Dessa forma, a teoria psicológica da culpabilidade deparou-se com diversas críticas. Outro problema enfrentado pela teoria em tela foi a sua incapacidade para resolver a questão da medida da culpa, ou seja, a sua gradualidade. Tal teoria não conseguia vislumbrar a existência de causas que viessem a diminuir ou mesmo aumentar a culpabilidade. Desse modo, as exculpantes, que afastam a culpabilidade do fato, não conseguiam ser satisfatoriamente explicadas. Pois apesar de haver o dolo na conduta do agente, e do nexo anímico entre o autor e o resultado, não há culpabilidade.
Nas hipóteses de menoridade penal e coação moral irresistível há uma relação psíquica de causalidade, porém, não há pena (reprovação).
Por fim, esclarece Damásio de JESUS:
O erro dessa doutrina consiste em reunir como espécies fenômenos completamente diferentes: dolo e culpa. Se o dolo é caracterizado pelo querer e a culpa pelo não querer, conceitos positivo e negativo, não podem ser espécies de um denominador comum, qual seja, a culpabilidade. Não se pode dizer que entre ambos o ponto de identidade seja a relação psíquica entre o autor e o resultado, uma vez que na culpa não há esse liame, salvo a culpa consciente. A culpa é exclusivamente normativa, baseada no juízo que o magistrado faz a respeito da possibilidade de antevisão do resultado. Ora, como é que um conceito normativo (culpa) e um conceito psíquico (dolo) podem ser espécies de um denominador comum? Diante disso, essa doutrina encontrou total fracasso.[9]
Percebe-se assim que o dolo e a culpa são conceitos jurídicos relacionados à posturas subjetivas do autor do fato.
3 TEORIA PSICOLÓGICO-NORMATIVA DA CULPABILIDADE
Também conhecida simplesmente por teoria normativa, foi idealizada primordialmente por Reinhard FRANK e teve como mérito afastar o dolo e a culpa como espécies de culpabilidade para tornarem-se elementos desta.
Nesta teoria da culpabilidade, podemos vislumbrar, ainda que de forma incipiente, alguns elementos axiológicos, trazendo para o conceito de culpabilidade, critérios eticizantes de cunho retributivo.
FRANK, ao estudar o disposto no art. 54 do StGB (Código Penal Alemão), que versa sobre o instituto do estado de necessidade, inferiu que existem determinadas condutas em que, não obstante a presença do dolo, não podem ser consideradas culpáveis. Ante este raciocínio, conclui-se que a reprovabilidade da conduta ilícita é o elemento chave da culpabilidade. Desse modo, uma ação dolosa em que restaria inexigível uma conduta diversa, não pode ser considerada reprovável pelo ordenamento jurídico.
Nesse sentido, elucida FRANK:
Pois se o conceito de culpabilidade não abrange mais que a soma entre dolo e imprudência, e este incidindo na produção consciente e descuidada do resultado, é incompreensível como poderia ser excluída a culpabilidade no estado de necessidade. Pois também, o sujeito que age em estado de necessidade, tem plena consciência de seu ato. Negar o dolo neste caso é uma falácia lógica.[10]
Destarte, esta doutrina integrou os elementos dolo e culpa, anteriormente considerados separadamente como espécies de culpa, no próprio conceito de culpabilidade e teve como mérito a inclusão na estrutura da culpabilidade a noção da exigibilidade ou não de outra conduta, ou seja, a possibilidade de o agente reger a sua conduta conforme o Direito.
De acordo com BITENCOURT:
Nessa concepção, o dolo, que era puramente psicológico, passa ser também um dolo normativo, o dolus malus, constituído de vontade, previsão e consciência da ilicitude, os dois primeiros elementos psicológicos e o último normativo. Dessa forma, o dolo passa a constituir-se dos seguintes elementos: a) um elemento intencional, volitivo, a voluntariedade; b) um elemento intelectual, a previsão do fato; c) um elemento normativo, a consciência atual da ilicitude.[11]
Esta consciência a que se refere o autor não está na norma, mas sim na realidade fática do indivíduo. Desse modo, a teoria psicológico-normativa pretende valorar a relação de causalidade psíquica.
Vale consignar que tal perspectiva foi acolhida na Parte Geral do Código Penal Brasileiro de 1940 em seu artigo 42.
3.1 Crítica à teoria psicológico-normativa da culpabilidade
Apesar de a teoria psicológico-normativa ter representado um avanço significativo ante a doutrina psicológica, ela incorreu nos mesmos erros daquela. Um dos maiores equívocos da teoria em tela consistiu na permanência do dolo como elemento constitutivo da culpabilidade.
Assim entende MAURACH:
Se se diz que a culpabilidade é uma censura, faz-se um juízo de valoração em relação ao delinqüente. Em conseqüência, a culpabilidade é um fenômeno normativo.[12]
Dessa forma, não há como aceitar os preceitos formulados pela teoria psicológico-normativa, pois como adverte MIRABETE[13], o dolo não pode ser elemento do fato e elemento da culpabilidade pelo fato.
4 TEORIA NORMATIVA PURA DA CULPABILIDADE: A CONTRIBUIÇÃO DA DOUTRINA FINALISTA DE HANS WELZEL
Esta teoria foi recepcionada pela reforma da Parte Geral do Código Penal Brasileiro, ocorrida em 1984 e é a teoria vigente no ordenamento penal pátrio. WELZEL, ao propor a teoria finalista da ação, deslocou o dolo e a culpa para o tipo penal, desse modo, os elementos que formavam a culpabilidade, agora passam a integrar os elementos subjetivos do tipo.
Na doutrina finalista, o elemento volitivo da conduta consiste em um elemento meramente psíquico, correspondendo tal vontade ao dolo do agente. Assim, retira-se da culpabilidade qualquer elemento anímico, transformando a culpabilidade em um juízo de valor, em um juízo de reprovabilidade. Destarte, a culpabilidade passa a ter um caráter meramente normativo, despida de qualquer elemento psicológico.
Para WELZEL, a essência da culpabilidade reside no juízo de reprovabilidade:
A natureza da culpabilidade se deixa caracterizar, o mais acertadamente possível, pela palavra “reprovabilidade”. É a qualidade da ação ilícita que possibilita elaborar um juízo de censura pessoal ao autor (...). A culpabilidade é a reprovabilidade na formação da vontade. O autor poderia formar uma vontade de ação adequada à norma ao invés de uma vontade de ação ilícita. Conseqüentemente, toda culpabilidade é uma culpabilidade da vontade. Somente o que o homem faz voluntariamente pode ser reprovado com culpabilidade.[14]
Percebe-se claramente nas idéias de WELZEL certa similaridade com a escola neokantiana, pois o conceito de culpabilidade também possui caráter meramente normativo, consistindo em um juízo de reprovabilidade quando o agente deveria agira conforme o ordenamento jurídico.
Podemos inferir também que o autor já traçava alguns delineamentos do conteúdo material da culpabilidade ao afirmar que toda culpabilidade é uma culpabilidade da vontade.
WELZEL, por meio da doutrina finalista, extirpou os elementos causalistas/naturalistas da ação humana, possibilitando assim, a constatação de que a ação humana, não obstante seu conhecimento causal, pode prever as conseqüências de seus atos, dirigindo, teleologicamente, sua conduta de acordo com um plano previamente traçado.
A doutrina finalista de WELZEL engendrou a teoria normativa pura da culpabilidade e constituiu um enorme avanço na dogmática penal. No que tange à culpabilidade surge a possibilidade de se conhecer a ilicitude da conduta, no lugar do dolo e da culpa, estas, deslocadas da culpabilidade, para integrar os elementos subjetivos do tipo penal.
4.1 Elementos da culpabilidade normativa pura
4.1.1 Imputabilidade
A imputabilidade consiste na capacidade de culpabilidade, ou seja, a capacidade psíquica do agente de compreender a ilicitude de determinada conduta, bem como de reger suas ações de acordo com esta representação. Em outras palavras, a imputabilidade reúne as condições psíquicas para que o sujeito possa estruturar sua vontade e sua consciência de acordo com o ordenamento jurídico. Trata-se de um dos requisitos da culpabilidade, sem o qual, não há que falar em responsabilidade. No conceito finalista de culpabilidade, esta deixou de ser um mero pressuposto a priori da culpabilidade, para ser um dos requisitos essenciais da culpabilidade.
A imputabilidade não se confunde com a responsabilidade penal. Nesse sentido adverte FRAGOSO:
Responsabilidade penal e imputabilidade são, evidentemente, coisas diversas. Responsabilidade penal é o dever jurídico de responder pela ação delituosa que recai sobre o agente imputável. Imputabilidade é capacidade de culpa, ou seja, condição pessoal de maturidade e sanidade mental que confere ao agente a capacidade de entender o caráter ilícito do fato ou de se determinar de acordo com esse entendimento.[15]
De acordo com WELZEL[16], a imputabilidade pode ser descrita como a capacidade do autor compreender o caráter injusto do fato e determinar a sua vontade de acordo com esta compreensão. Portanto, a imputabilidade possui um elemento cognitivo e um elemento volitivo, formando, assim, a capacidade de culpa (imputabilidade).
Não é necessário que o autor, para ser considerado imputável, conheça o fato como contrário à norma penal, bem como a consciência de cometer um ato que atente contra a moral, fato que, consiste em uma discussão alheia ao direito, estabelecida no meio social, mas sim, que possa alcançar o conhecimento de que a sua conduta consiste em uma infração que atenta contra o ordenamento jurídico.
Destarte, para que o autor de um fato ilícito possa ser considerado imputável, deve-se verificar se este possuía plena liberdade, bem como a faculdade, para comportar-se de forma diversa, caso contrário, o agente não possui capacidade de culpa, logo, deve ser considerado inculpável.
A. Causas excludentes da imputabilidade
Nos casos onde o autor não apresenta condições satisfatórias de normalidade e maturidade psíquica, estamos diante dos casos onde não há falar em imputabilidade, e conseqüentemente, faltando um dos requisitos da culpabilidade, esta também resta excluída em tais casos.
Nosso ordenamento penal prevê as seguintes hipóteses de exclusão da imputabilidade (art. 26 do Código Penal):
a) doença mental;
b) desenvolvimento mental incompleto;
c) desenvolvimento mental retardado;
d) embriaguez completa, proveniente de caso fortuito ou força maior (art. 28 do Código Penal);
Temos ainda, a inimputabilidade dos menores de dezoito anos descrita no art. 27 do Código Penal e a causa de inimputabilidade descrita no art. 45 da Lei 11.343/2006 que prescreve a isenção de pena àqueles que em razão da dependência, ou sob seu efeito, proveniente de caso fortuito ou força maior, de droga, era, ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento.
I. Doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado
O ordenamento jurídico considera certas enfermidades psíquicas como sendo doenças mentais. Neste rol, de forma genérica, estão incluídas várias espécies de neuroses, transtornos compulsivo-obsessivos, epilepsias, esquizofrenias e oligofrenias. O diploma penal vigente classifica as últimas enfermidades como desenvolvimento mental incompleto ou retardado[17]. O agente agindo sob influência de tais desajustes psíquicos sabe que sua conduta contraria o direito, no entanto, não possui domínio de sua vontade fazendo com que não consiga evitar a sua prática. Nesse sentido, assevera JESUS[18] que é necessário que em decorrência dessas deficiências não tenha a capacidade de entender e de querer, assim, a presença da causa (doença mental por exemplo) e do efeito (incapacidade de entender e de querer) é que faz surgir a inimputabilidade.
Vale ressaltar que, para que o agente possa ser considerado inimputável, não é suficiente que este seja portador de alguma deficiência mental, mas que seja incapaz de compreender o caráter ilícito do fato.
No que tange ao desenvolvimento mental incompleto, trata-se daqueles que não possuem um desenvolvimento pleno de suas faculdades mentais, fazendo com que sejam considerados inimputáveis haja vista suas deficiências de ordem cognitiva e volitiva. Encontram-se nesta categoria os silvícolas inadaptados e os surdos-mudos.
Por fim, o desenvolvimento mental retardado, também conhecida genericamente como oligofrenia, apresenta-se sob várias formas, quais sejam, idiotia, imbecilidade e debilidade mental.
II. Embriaguez completa proveniente de caso fortuito ou força maior
A embriaguez consiste em uma intoxicação aguda e transitória causada pelo consumo de bebidas alcoólicas, cujos efeitos, podem progredir de uma ligeira excitação até o estado de coma.
A intoxicação crônica por meio de substância alcoólica conduz à diminuição da capacidade cognitiva e volitiva do indivíduo, podendo diminuir a imputabilidade ou mesmo excluí-la.
III. Da actio libera in causa
A teoria da ação livre na causa pode ser descrita como sendo o comportamento daquele que, sem nenhum defeito cognitivo e volitivo, se coloca em situação de perda de sua capacidade de ação, vindo a praticar sob tal estado temporário e passageiro, fato punível que pretendia ou assumiu o risco de produzir.
De acordo com MEZGER[19], para que se configure esta teoria como forma de evitar a exclusão da culpabilidade, é imprescindível a análise da situação do autor ao tempo do fato. Assim é preciso estabelecer se, no momento do fato, o sujeito podia compreender a ilicitude de sua conduta e dirigir suas ações, pois o ordenamento jurídico exige que o autor do ilícito seja imputável no instante do fato.
O autor utiliza-se a si mesmo como um instrumento. Assim, o agente estabelece a causa decisiva em uma situação de imputabilidade, e, no entanto, se vê em uma situação de inimputabilidade. Há uma ação não livre no ato, porém livre na causa.
O agente deve ter a intenção de produzir o resultado, ou agir com imprudência, antes de se colocar temporariamente inimputável para que sua conduta possa ser considerada reprovável.
Nesse diapasão, preleciona JESUS:
Para que o sujeito responda pelo crime, aplicando-se a teoria que estamos analisando, é preciso que na fase livre (resolução) esteja presente o elemento dolo ou culpa ligado ao resultado. Não é suficiente que se tenha colocado voluntariamente em estado de inimputabilidade, exigindo-se que tenha querido ou assumido o risco de produzir o resultado (dolo), ou que este seja previsível (culpa).[20]
IV. Menoridade
Trata-se aqui de uma presunção absoluta decorrente de princípios de política criminal. Aqueles que não completaram dezoito anos de idade não são considerados detentores de um desenvolvimento mental completamente desenvolvido, razão pela qual, são considerados penalmente inimputáveis.
V. Imputabilidade diminuída
A imputabilidade diminuída, diferentemente do que possa parecer, não é uma forma autônoma de semi-imputabilidade entre a imputabilidade e a inimputabilidade. De acordo com ROXIN[21], a imputabilidade diminuída consiste em uma forma de inimputabilidade onde o agente é, ainda, capaz de entender o caráter ilícito do fato e de agir conforme tal entendimento.
No entanto, BITENCOURT[22] afirma que a culpabilidade diminuída consiste em uma gradação entre a imputabilidade e a inimputabilidade, onde o agente, na verdade, tem a sua culpabilidade diminuída e não excluída. Desse modo, não há falar em inimputabilidade.
Nesses casos, o agente não possui capacidade plena de compreender a ilicitude do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento.
4.1.2 Consciência da ilicitude do fato
Para que um fato possa vir a ser reprovável e contrário ao ordenamento jurídico, é imprescindível que o autor conheça ou possa conhecer a ilicitude de sua conduta.
A consciência da ilicitude consiste na capacidade do autor de um fato contrário ao direito compreender a ilicitude de seu comportamento.
De acordo com WELZEL[23], o juízo de reprovabilidade da culpa só pode ser aceito quando o autor possuía condições de conhecer o caráter ilícito de sua conduta, ou seja, quando o autor poderia ter direcionado sua vontade de acordo com o direito, ao invés de fazê-lo ilicitamente.
A. Do erro de proibição
Trata-se de uma modalidade de exclusão da culpabilidade que incide sobre o conhecimento da ilicitude do fato.
Ao contrário do conhecido erro de tipo que ocorre sobre uma elementar do tipo penal, o erro de proibição está relacionado com a consciência da ilicitude e, quando inevitável, constitui causa de exclusão da culpabilidade. Destarte, quando o agente acredita, por uma falsa interpretação da realidade, que seu comportamento é lícito, este incorre em erro de proibição.
O erro de proibição ocorre quando o agente é capaz de compreender o caráter ilícito do fato, no entanto, por meio de um erro cognitivo, erroneamente supõe que sua conduta não é ilícita.
Existem basicamente duas espécies de erro de proibição, a saber: o erro evitável e o erro inevitável. O primeiro ocorre quando o autor pauta sua conduta com descuido, ou seja, ferindo o dever de cuidado objetivo. Já o erro inevitável incide sobre qualquer sujeito prudente, onde este atua sem ter a consciência da ilicitude de seu agir, não sendo possível, pelas circunstâncias fáticas, reconhecer o caráter ilícito da sua conduta.
4.1.3 Exigibilidade de conduta diversa
Trata-se de um dos elementos mais controversos e relevantes da culpabilidade. Consiste na possibilidade real que possui o agente de determinar a sua conduta de acordo com o ordenamento jurídico.
Quando ao autor não era exigível conduta diversa, exclui-se a culpabilidade, não incidindo sobre ele o juízo de reprovabilidade imprescindível para formar a culpa, sendo, portanto, a inexigibilidade de conduta diversa uma excludente da culpabilidade.
Nesse sentido, esclarece JESUS:
Adotada a culpabilidade normativa, não há culpabilidade todas as vezes que, tendo em vista as circunstâncias do caso concreto, não se possa exigir do sujeito uma conduta diversa daquela por ele cometida. Assim, a expressão “causas supra-legais de exclusão da culpabilidade” significa causas de exclusão da culpabilidade, enquanto a não-exigibilidade constitui a razão de algumas causas de exclusão da culpabilidade.[24]
Vale ressaltar que o este princípio não depende de previsão legal expressa, como bem colocado por GALVÃO[25], tratando-se de um princípio geral.
Vale ressaltar que o penalista argentino ZAFFARONI[26] atribui à inexigibilidade de conduta diversa não apenas uma mera causa excludente de culpabilidade, mas sim, o próprio fundamento para todas as demais causas exculpantes, pois toda causa que exclui a culpabilidade sempre está relacionada com a inexigibilidade de conduta diversa, haja vista que o direito só pode exigir aquilo que seja possível e factível.
A. Coação moral irresistível
Consiste em uma das modalidades de exclusão de culpabilidade previstas em nosso diploma repressivo ligada à inexigibilidade de conduta diversa.
Coação é o emprego de força física ou por meio de grave ameaça, visando forçar um indivíduo a fazer ou deixar de fazer determinada coisa.
A espécie de coação que exclui a culpabilidade do agente é a coação moral irresistível, pois em se tratando de coação física, o problema se desloca para o tipo e no que tange à coação moral resistível, esta não exclui a culpabilidade, mas sim, atenua a pena.
Quando o agente comete um ato ilícito sob coação moral não há falar em culpabilidade, ante o fato da inexigibilidade de conduta diversa, de tal forma que, a culpa será imputada ao coator.
B. Obediência hierárquica
Quando uma ordem ilegal vinda de um superior hierárquico determinando que um funcionário que lhe é subordinado realize ou deixe de realizar determinada conduta, este não responde pelo ato ilícito praticado, sendo o autor da ordem responsabilizado pelo crime perpetrado.
Interessante ressaltar que, no caso do subordinado acreditar que a ordem é legal, aplica-se à hipótese o instituto do erro de proibição.
Assim esclarece GALVÃO:
A obediência à ordem de superior hierárquico pressupõe sua referência ao dever jurídico de praticar a conduta ordenada. Não havendo concreto dever legal que sustente a conduta do executor da ordem, a isenção de sua culpa somente poderá ocorrer quando ele pensar que está atuando justificado pela excludente da ilicitude do estrito cumprimento do dever legal ou quando não puder opor-lhe à ordem do superior, embora reconheça sua ilegalidade.[27]
Desse modo, o erro incide-se sobre a excludente da ilicitude da conduta, constituindo-se em erro de proibição indireto.
4.2 Crítica à teoria normativa pura da culpabilidade
A doutrina finalista de WELZEL, que culminou na teoria normativa pura da culpabilidade, não resistiu às críticas de seus compatriotas tudescos. ROXIN critica veementemente tal concepção ao asseverar que não se sabe ao certo o que se está reprovando. ROXIN afirma ainda que é impossível a verificação empírica do agir conforme o direito e o livre-arbítrio sendo mais viável a verificação por meio de um perito, se no momento do fato ilícito, o agente tinha a capacidade para ser destinatário de normas. Assim, ROXIN assevera que a única maneira de se verificar de fato a culpabilidade é por meio da capacidade do indivíduo para ser destinatário de normas e não a liberdade de ação humana ou o livre-arbítrio e o indivíduo que mesmo sendo idôneo como destinatário de normas as viola, este é incondicionalmente culpado pela sua conduta ilícita.
Ainda de acordo com ROXIN[28], o conceito de reprovabilidade compreende de forma incompleta a classe de valoração que se deve preencher no conceito de culpabilidade. Esta valoração não se restringe somente na questão de se poder formar um juízo de reprovabilidade (da culpabilidade) contra o autor, mas sim, de se fazer um juízo de si, mas do ponto de vista jurídico penal, o autor há de ser responsável pela sua conduta. A reprovabilidade é uma condição necessária, mas não suficiente para um conceito completo de culpabilidade. Há de analisar-se a necessidade preventiva da sanção penal.
Para ROXIN, é necessário que se esclareça a relação entre a valoração e o que é valorado dentro do conceito normativo de culpabilidade. Excluindo o dolo da culpabilidade e deslocando aquele para o tipo, tem-se que a responsabilidade se converte em um mero juízo de valor. Tal concepção, segundo ROXIN, é completamente equivocada.
5 O LIVRE-ARBÍTRIO NA CONCEPÇÃO DE HANS WELZEL
O livre-arbítrio sempre ensejou polêmicas entre os estudiosos. Trata-se de um tema árido tanto na filosofia quanto na dogmática penal. A afirmação de que o livre-arbítrio consiste no fundamento da culpabilidade certamente é um dos motivos que engendrou a atual crise pela qual o princípio em estudo se encontra.
WELZEL procurou solucionar o problema dividindo-o em três dimensões: antropológica, caracteriológica e categorial.
Na esfera antropológica, WELZEL[29] assevera que o homem se caracteriza por um grande retrocesso nas formas inatas e instintivas de conduta, ou seja, perdeu alguns dos reguladores biológicos que garantem aos animais sobreviver com certa segurança. O homem, devido à sua liberdade de instintos, é um ser relativamente indefeso. Dessa maneira, o ser humano compensou sua deficiência instintiva através da inteligência e da razão, transformando-se na única espécie que se revela responsável pelos seus atos.
Assim, o homem, ao contrário dos animais, possui uma deficiência no que tange à liberdade das formas inatas e instintivas de conduta e, por outro lado, possui a capacidade de descobrir e realizar, por si mesmo, uma conduta correta, por meio da inteligência e da razão. Desse modo, o homem é um ser responsável pelos seus atos, ou melhor, um ser com disposição para a responsabilidade. Tal raciocínio nos auxilia a compreender a necessidade de se mitigar a culpabilidade dos silvícolas. O desvalor de um resultado ilícito perpetrado por um indivíduo pertencente à uma determinada tribo indígena deve ser considerada menor, já que não possui uma deficiência daqueles instintos imanentes de conduta, dada a sua proximidade com o mundo natural. Seu senso de responsabilidade, no entanto, é inversamente proporcional às suas formas inatas e instintivas de conduta.
No âmbito caracteriológico, WELZEL[30] afirma que, o retrocesso das formas inatas de conduta e, com o surgimento de um “Eu” como centro responsável, permitiu que a composição anímica do homem fosse estruturada por uma multiplicidade de camadas.
Todos os impulsos vitais de conservação da espécie, a autopreservação, os desejos, as paixões, as aspirações mais elevadas, formam a camada profunda. Assim, todas as formas instintivas que afetam o “Eu”, tratam de impulsioná-lo para uma determinada ação, transformando o “Eu” em uma vítima dos próprios impulsos. Acima destes impulsos da camada profunda, eleva-se ele mesmo como centro regulador que os dirige de acordo com um sentido e valor. O pensamento, destarte, é apoiado em razões lógico-objetivas e na vontade e se orienta segundo um sentido e um valor. WELZEL, nesse ponto, adverte que não se deve confundir tal raciocínio com uma ocorrência meramente causal/naturalística/finalística, no sentido que o autor embasa a sua obra, mas sim, uma direção final anímica. Não se trata aqui da direção final da ação, ou seja, a forma específica de realização dos fins dos impulsos na realidade fática.
Assim, todos os impulsos da capa profunda consistem nos pressupostos materiais dos atos de direção conforme um sentido. Todos os fins materiais procedem, seja para o bem ou para o mau, desta camada profunda. Somente aquilo que nos estimula a um impulso instintivo, pode converter-se no fim de uma decisão.
Na esfera categorial, o autor em exame procura responder à questão: como é possível ao homem o domínio da coação causal por meio de um direcionamento orientado no sentido de tornar-se responsável por haver adotado uma decisão falsa ao invés da decisão correta? WELZEL afirma que esta questão não pode ser respondida por meio do indeterminismo tradicional, pois este invalida o sujeito responsável,pois se o ato do homem estivesse determinado pelo nada, o ato de vontade superveniente não guardaria nenhuma relação com o ato anterior. Em conseqüência, o estado posterior do indivíduo não deve ter nenhuma relação com o estado anterior, aquele que deu causa à decisão. Dessa maneira, o indeterminismo anula o sujeito idêntico que poderia ser considerado responsável pelos seus atos, haja vista, que o autor posterior não tem nenhuma relação com o anterior. Destarte, o indeterminismo, segundo WELZEL, converte os atos de vontade reduz os atos da vontade a uma série desconexa de impulsos isolados no tempo.
Para solucionar a questão, o autor tudesco afirma que deve ser reconhecida a concorrência de diversas formas de motivação, assim, o equívoco do determinismo tradicional consiste na idéia de que há apenas uma forma de motivação, fruto do pensamento cartesiano do monismo causal. De acordo com tal doutrina, não se poderia reprovar a conduta daquele que optou pela decisão falsa no lugar da decisão correta, haja vista que toda decisão, analisada sob uma ótica determinista, independentemente se falsa ou verdadeira, é necessariamente predefinida.
Desse modo, na visão de WELZEL, a culpabilidade não consiste em um ato de livre autodeterminação, mas sim, a ausência de uma decisão de acordo com um sentido em um sujeito responsável.
6 O CONCEITO DE CULPABILIDADE NA CONCEPÇÃO DE CLAUS ROXIN
Para Claus ROXIN, o conceito de culpabilidade consiste basicamente em uma ação ilícita não obstante a capacidade do sujeito para ser destinatário das normas. Antes de analisar esta questão mais a fundo, devemos considerar as controvérsias que o tema suscita e analisar algumas concepções que ainda hoje produzem uma grande influência na dogmática penal.
Muitos dos equívocos cometidos por alguns estudiosos acerca do conceito de culpabilidade se devem pelas conseqüências que um delito provoca, transcendendo ao direito penal e atingindo várias esferas. O equívoco se vislumbra, pois, quando alguns penalistas buscam fundamentar seu conceito de culpabilidade através de elementos metajurídicos oriundos de outras ciências, alheias ao Direito Penal. Para ROXIN[31], a dogmática penal deve se ocupar exclusivamente por determinar de que modo alguém pode ser responsabilizado por um comportamento socialmente danoso e de que forma o Direito Penal aplicará suas sanções.
Assim, os conceitos de culpabilidade oriundos da filosofia e de outras ciências não são relevantes ao Direito Penal. Aqui podemos fazer uma analogia com o pensamento de Figueiredo DIAS[32] ao asseverar que esta tensão dialética entre as diversas ciências conduz o direito penal a uma crise latente que ameaça tirar o fundamento da culpa do direito penal com o risco de transformar o direito penal em uma entidade idealizada e metafísica, pois, ao afastar-se do individuo concreto que age, perde a legitimidade ética e aplica-lhe uma pena em nome da culpa.
Segundo o penalista português, o direito penal não deve se ocupar apenas em resistir aos ataques externos em nome de concepções puramente defensistas ou terapêuticas da pena, mas, sobretudo atingir um esclarecimento fundamental de sua dialética imanente e uma clarificação terminante de seus últimos pressupostos.
A teoria de ROXIN trata a culpabilidade como realização do injusto apesar da idoneidade para ser destinatário de normas. ROXIN formulou esta concepção devido às dificuldades em torno da constituição subjetiva da culpabilidade. Afirmar simplesmente que a culpabilidade é imputação subjetiva ou que a culpabilidade se relaciona a uma ação reprovável, não responde de maneira convincente, pois são vazias de conteúdo. No entendimento do autor, não se sabe ao certo o que se está reprovando ou imputando subjetivamente.
De acordo com o pensamento de ROXIN, uma pessoa que normalmente rege a sua conduta de acordo com os preceitos normativos possui idoneidade ou capacidade para ser o destinatário da norma. Se numa determinada situação e circunstância esta mesma pessoa vem a agir de maneira a violar um determinado imperativo normativo, apesar de ser idônea para ser destinatária da norma, ela age de forma culpável. Ao revés, se uma determinada pessoa não possui um desenvolvimento intelectual satisfatório, não possui discernimento para agir de acordo com os preceitos normativos, esta pessoa não possui idoneidade para ser destinatário da norma e, por conseguinte, ela é inculpável.
Destarte, na visão de ROXIN, a culpabilidade se fundamenta na capacidade do indivíduo de compreender a mensagem contida no preceito normativo. Se este não é capaz de discernir o caráter ilícito de uma determinada ação, não possui capacidade para ser destinatário da norma. A incapacidade de compreender aliada a falta de controle e orientação faz com que o indivíduo não seja alcançado pela mensagem da norma, tornando-o inculpável.
Entendemos que a teoria acima exposta enfatiza apenas um momento da culpabilidade, sendo insuficiente para a elaboração de uma concepção definitiva e satisfatória. A teoria de ROXIN tem uma similaridade com a consciência da ilicitude, pois, ao afirmar que um sujeito, apesar da idoneidade para ser destinatário de normas, comete uma ação culpável, a culpabilidade nesse caso, está relacionada com a capacidade do indivíduo de compreender os preceitos normativos (consciência do ato ilícito). Tanto que o autor reconhece que sua teoria se adapta perfeitamente ao dispositivo do Código Penal Alemão que versa sobre a consciência da ilicitude (§ 20, Strafgesetzbuch).
7 O CONCEITO DE CULPABILIDADE NA CONCEPÇÃO FUNCIONALISTA DE GÜNTER JAKOBS
Optou-se expor neste trabalho, em síntese, a concepção do penalista alemão Günter JAKOBS, pela importância de sua obra ante o direito penal moderno.
Interessante ressaltar que suas concepções não são muito ortodoxas, pois critica incisivamente o que a doutrina tradicional vem comumente asseverando sobre o tema em exame.
Em sentido contrário à doutrina majoritária, JAKOBS propõe uma solução unitária e funcionalista para o princípio da culpabilidade para as diferentes hipóteses pelas quais o autor, através de um comportamento que precede à causa do resultado típico, provoca seu próprio estado defeituoso ou uma situação de inexigibilidade. Esta proposta tem como fundamento a normatização dos conceitos jurídico-penais, a começar pelo próprio conceito de autor do fato delitivo. Tal construção normativa do conceito de capacidade vai contra a concepção da culpabilidade vista como uma característica natural e inerente ao homem (WELZEL).
7.1 A harmonização entre a culpabilidade e os fins da pena
O autor critica o que a doutrina dominante denomina de fins da pena. Para tanto apresenta um problema, aparentemente aporético: como harmonizar o princípio da culpabilidade ao fins da pena.
ZAFFARONI assim trata da concepção de JAKOBS acerca dos fins da pena:
Para JAKOBS a função da pena consiste na manutenção da norma como modelo de orientação para os contatos sociais e o conteúdo da pena constitui uma réplica que dá lugar ao custo imposto ao infrator frente ao questionamento da norma.[33]
PARMA[34] esclarece que JAKOBS fundamenta a sua concepção de culpabilidade no binômio culpabilidade-pena, pois a pena restabelece a validade da norma, ou seja, a pena restabelece a confiança na norma penal, confiança esta, que foi anulada pelo fato delituoso. Assim, o mal causado pelo crime não pode ser apreciado sob uma ótica meramente ontológica, como se as verdades ontológicas fossem absolutas, mas sim, sob uma ótica social. Nesse sentido, o delito é danoso pois viola as expectativas sociais institucionalizadas, em outras palavras, o delito é hostil à própria norma em si.
Apesar de tudo o que é dito acerca do conceito jakobiano de culpabilidade, pode-se afirmar que sua acepção de culpabilidade consiste na falta de fidelidade ao ordenamento jurídico, de acordo com um juízo objetivo e social.
JAKOBS divide o problema da culpabilidade em duas esferas, quais sejam, os defeitos da vontade e os defeitos de conhecimento.
7.2 Diferenciação entre os defeitos cognitivos e defeitos volitivos
Para que o destinatário da norma penal possa cumprir com seus desígnios, o sujeito deve ter uma razão para tanto e/ou idoneidade psíquica para acatar a norma.
Assim, só poderá respeitar o mandamento da norma quem tiver a vontade de acatá-la e quem é capaz de conhecer que tal norma de destine a ele e, destarte, ter idoneidade para conhecer o que deve ser feito para cumpri-la. Portanto, para que o destinatário da norma penal possa cumpri-la, duas são as condições que devem ser observadas, uma de caráter cognitivo e outra de caráter volitivo.
Ao valorarmos determinada desobediência à norma penal, podemos inferir que da conduta considerada ilícita pelo ordenamento jurídico, o autor agiu mediante um defeito cognitivo ou um defeito volitivo. Desse modo, no caso de a conduta do agente ter sido pautada em um erro volitivo, sua responsabilidade se agrava, ao passo que, se a conduta fora perpetrada por meio de um defeito cognitivo, sua responsabilidade ante o resultado pode ser exonerada.
Por meio deste raciocínio, além de podermos constatar a existência ou não da culpabilidade do agente, podemos inferir também a própria medida da culpabilidade. No entanto, no que tange ao defeito de conhecimento, opera-se de maneira inversa do modo como se verifica no defeito de vontade, ou seja, quanto menor a vontade do agente de agir conforme o preceito emanado da norma penal, maior será a reprovabilidade de sua conduta e, conseqüentemente, maior será a sua culpabilidade. Mais adiante trataremos com mais detalhes os problemas envolvendo as esferas da vontade e do conhecimento dentro da teoria da culpabilidade apresentada por JAKOBS.
7.3 Defeitos cognitivos
7.3.1 Falta de dolo
JAKOBS faz uma analogia entre os defeitos cognitivos, aqueles que afetam o curso do mundo exterior sem que o agente conheça os efeitos que gera com sua conduta, com o instituto bem conhecido na dogmática penal, o erro de tipo.
Aquele que age mediante um defeito de conhecimento, possui a responsabilidade diminuída ou mesmo excluída, tal se dá devido à própria natureza psíquica da conduta realizada. Em outras palavras, um determinado comportamento onde aparece um defeito cognitivo com tais características pode ser considerado como sendo um padrão idôneo em um meio social em que trata a realidade fática de forma racional.
Assevera o autor:
Quem se comporta (que isso corresponda com seu plano, ou que se oponha ao seu plano, porque o sujeito não presta atenção na hora de executá-lo) como se dois mais dois fossem cinco, ou como se o granito pudesse flutuar na água, ou quem erra de maneira menos drástica, mas decisiva para o resultado, não contribui com seu comportamento em nada que seja comunicativamente relevante – pensasse o que fosse em seu foro interno - pode-se aprender com seu fracasso, mas somente para não voltar a fracassar no futuro.[35]
Desse modo, qualquer ser humano mediano que pretenda se organizar de uma forma racional irá procurar sempre evitar erros de cálculo e, conforme o autor em tela, para tanto há dois caminhos distintos. Em primeiro lugar, o sujeito que age deverá concentrar-se no que ocorre em sua volta e, em segundo lugar, tentar aprender visando diminuir o âmbito do que para ele seja inevitável.
Assim, a inevitabilidade não deve ser considerada como um elemento da culpabilidade apriorístico em relação à própria sociedade devendo ser acatada por ela. A imputação depende da reprovação social. O autor afirma que há um caráter funcional em tais instituições sociais e que está intimamente ligada com o grau de desenvolvimento da sociedade em questão. Portanto, o princípio da culpabilidade possui uma função.
7.3.2 Desconhecimento da norma
Para JAKOBS, trata-se de um erro de proibição, pois não incide no tipo penal, mas sim, em relação à existência de determinados deveres. Desse modo, a compreensão do direito se torna defeituosa.
No entanto, sigo o entendimento da maioria dos penalistas que asseveram que o desconhecimento da lei não se confunde com o erro sobre a ilicitude da conduta.
7.4 Defeitos volitivos
7.4.1 Ausência de fidelidade ao ordenamento jurídico
Trata-se do cerne da concepção jakobiana da culpabilidade. A falta de fidelidade ao ordenamento jurídico tem como base o desconhecimento do mundo exterior que irá engendrar um defeito na comunicação:
Quem desconhece o mundo externo fracassa no intento de se estabelecer de maneira vantajosa. Quem desconhece o sistema de normas estatais fracassa no intento de fazer seu caminho sem criar problemas. Quem conhece a realidade externa, mas não conhece suas regras, fracassa conscientemente. Mas quem conhece o sistema de normas do Estado, mas não quer reconhecê-lo, não necessariamente fracassa com seu planejamento individual.[36]
Desse modo, configura-se os defeitos da vontade no que tange às normas sociais. De acordo com JAKOBS, as normas sociais padecem de um ponto fraco, qual seja, de acordo com a individualidade de cada um, não há como provar que seja preferível cumpri-las. Trata-se de um problema análogo ao do livre-arbítrio. Desse modo, a culpabilidade visa estabilizar esta debilidade da norma social e, por conseguinte, tais defeitos volitivos só podem ocorrer em relação às normas débeis (sociais).
Apesar de ser seguidor de WELZEL, este pensamento de JAKOBS segue uma linha oposta do sistema finalista, pois rompe com as verdades ontológicas do âmbito do ser e passa a integrar elementos axiológicos subjetivos.
7.4.2 Culpabilidade material
Para JAKOBS, o conteúdo material da culpabilidade reside na ausência de fidelidade ao ordenamento jurídico. Já que somos livres temos que arcar com o ônus de manter-nos fiéis ao ordenamento jurídico.
Percebe-se nitidamente o caráter funcional do conceito de JAKOBS, pois o autor fundamenta o conceito material da culpa através das exigências do corpo social e também através de critérios de política criminal.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Vivemos um período muito interessante para as ciências sociais. Como vem acontecendo com as ciências naturais, estamos diante do surgimento de um novo paradigma, de uma nova interpretação da realidade e uma nova metodologia científica, distante dos modelos mecanicistas/cartesianos[37].
Toda transição é permeada por diversas vicissitudes, e estas justificam em parte a crise pela qual perpassa atualmente o conceito da culpabilidade.
Faz-se, destarte, necessária uma aproximação e uma compatibilização da dogmática penal com a realidade fenomênica. A doutrina alemã atual vem buscando esta difícil missão, por meio de um estudo mais profundo dos aspectos empíricos do direito penal, conciliando-o com as novas tendências da política criminal bem como o auxílio das ciências meta-jurídicas como a psicologia e a sociologia.
O abandono urgente das teorias absolutas retributivas, e também às verdades ontológicas engendradas pelo finalismo, é de fundamental importância, ao meu sentir, para que a reconstrução do conceito de culpabilidade se torne efetivamente compatível com os novos paradigmas sociais.
Outro ponto fundamental consiste no repúdio à idéia de se fundamentar a culpa pelo livre-arbítrio dada a impossibilidade de sua demonstração empírica.
Um dos caminhos a ser seguido consiste no aprimoramento das teorias unificadoras preventivas, pois para mim são as que mais se coadunam com as atuais exigências de um Estado Democrático de Direito.
Ademais, é patente a incompatibilidade das teorias absolutas com os objetivos das atuais premissas de política criminal. De acordo com RIGHI[38], é necessária a adoção de um modelo pluridimensional, e para tanto, deve-se encontrar seu fundamento em um exame da realidade social sobre a qual a sanção penal está incumbida de incidir.
Sob tal perspectiva, precipuamente nos países da América Latina, e em especial no Brasil, onde em um passado recente caracterizado pela reiteração de experiências que desenvolveram modelos autoritários de exercício do poder político, fazendo do jus puniendi estatal um instrumento violento de controle social.
Hoje, apesar dos avanços decorridos da recém implantada democracia, e com o advento da Constituição da República de 1988, nosso sistema penal ainda está longe de ser considerado satisfatório e mantém ainda uma distância considerável dos sistemas penais das grandes democracias ocidentais, principalmente no que tange às iniqüidades sociais e os altos índices de criminalidade e desemprego. Por conseguinte, vemos hoje em nossa sociedade crescentes manifestações generalizadas que pregam a necessidade de impor a ordem por meio de um verdadeiro terror penal, gerados em parte por certos órgãos de imprensa.
Há um consenso na doutrina contemporânea em admitir que o cometimento de um fato típico e ilícito não esgota o que deve exigir-se para a imposição da sanção penal.
De acordo com o ponto de vista que se adote para legitimar o jus puniendi estatal, serão distintos os pressupostos que condicionam a punibilidade. Assim, como a teoria da retribuição sustenta que o que vem a legitimar o exercício do jus puniendi é a realização de um ideal de justiça. A pena assim, só pode ser considerada justa quando pautada pela proporcionalidade entre esta e o delito praticado. Para tanto, deve-se valorar a culpabilidade, ou seja, mensurar a sua gradação para que se possa individualizar a pena de forma justa.
Diferentemente da ótica retributiva, as teorias preventivas não apresentam fundamentos éticos para justificar a sanção estatal, pois concebem o jus puniendi do Estado como uma ferramenta de utilidade social (funcionalismo). Desse modo, as teorias preventivas consideram legítimo o exercício da pretensão punitiva como forma de obter certos fins, tais como: a) a prevenção da criminalidade; b) a preservação da estabilidade do sistema social e, precipuamente, a fidelidade ao ordenamento jurídico.
As obsoletas teorias retributivas, derivadas de KANT e HEGEL, que permitiram o estabelecimento de interdependência entre a pena e o delito ao oferecer uma justificação para o exercício da pretensão punitiva estatal, permitiu a sistematização de uma teoria do delito que infelizmente ainda vige nos dias de hoje.
Tais conceitos são incompatíveis com os princípios da dignidade da pessoa humana. As teorias retributivas esgotaram os fins da pena pela retribuição. Isto foi proposto por KANT como um imperativo hipotético que emerge da idéia de justiça[39] e fundamentado dialeticamente por HEGEL[40] como a negação da negação do direito já que a pena imposta pelo Estado negaria o delito e teria o condão de restabelecer o direito lesionado.
A atual decadência das teorias retributivas fundamentadas no livre-arbítrio é a razão pela qual a teoria do delito positivista permaneceu à margem da teoria da pena então dominante engendrando um sistema de imputação com alguns pontos em comum com as idéias retributivas e posteriormente, quando o finalismo alcançou sua predominância, verificou-se uma relação interdependente entre o delito e a pena e reconhecendo a culpabilidade como um pressuposto da pena.
Se ainda hoje persistem certos ranços das idéias retributivas, tal fato é justificado devido às fragilidades das teorias preventivas tradicionais criadas como alternativas.
Rejeitando as fundamentações de caráter axiológico, as teorias relativas adotaram uma perspectiva utilitária, conceituando a pena como um instrumento de motivação e, conseqüentemente, como um mecanismo estatal de prevenção do delito, visando uma fundamentação científica para explicar a utilidade da pena como meio de prevenir a criminalidade.
Desse modo, a meu entender, o caminho para que se possa reconstruir o conceito de culpabilidade, principalmente no que se refere ao seu conteúdo material, consiste em conceber à pena estatal uma função reparadora do equilíbrio de um sistema social perturbado pelo delito, tal modelo utilitarista não incorre nas deficiências e debilidades das teorias preventivas clássicas.
Para que a Ciência possa nos fornecer uma conceituação válida e correta da culpabilidade, é imprescindível que tal fenômeno seja investigado de forma a harmonizar-se com os princípios de política criminal e, ainda, ser compatível com os anseios sociais que clamam pela prevenção da criminalidade, sem olvidar o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana.
No entanto, deve-se admitir que a delinqüência é um fenômeno social impossível de ser extinto e que não é factível a sua completa eliminação sem um incomensurável custo social. Vale ressaltar ainda que a sanção penal estatal não pode ser considerada o meio mais idôneo entre os recursos a disposição do Estado.
No decorrer do trabalho, constatou-se que tal desiderato não é uma tarefa fácil e certamente consiste em um dos grandes desafios a ser encarado pelos pensadores do Direito Penal.
Todas as teorias, no entanto, são de grande valia para os estudiosos do Direito Penal, pois todas contribuíram para a sua evolução dogmática.
Acreditamos que para haver um verdadeiro progresso no Direito Penal, devemos estudar atentamente todas as concepções dos grandes mestres do passado que possamos forjar os novos fundamentos que deverão nortear o Direito Penal do presente e do futuro.
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