Consoante os ensinamentos de José Afonso da Silva[1], as constituições podem possuir supremacia formal ou materal – ou ambas , de forma a poder ser considerada uma normative Verfassung na ontologische Klassifierung do alemão Karl Loewenstein[2], o que não calha tratar na oportunidade.
A supremacia formal é inteiramente baseada no sentido jurídico de constituição, trazido à tona pelo austríaco Hans Kelsen na obra Teoria Pura do Direito, na qual se propõe a estudar o direito a partir de uma teoria completamente isolada das causas políticas e sociais que costumeiramente o arrastam.
O austríaco definiu as constituições de forma dicotômica: sentido lógico-jurídico e sentido jurídico-positivo.
No sentido lógico-jurídico, considera-se constituição a norma fundamental hipotética, que, num regime democrático, trata-se do plano de fundo principiológico advindo do Soberano (o povo), que dá legitimidade ao plano jurídico-positivo. Assim, é algo suposto que dá base ao que será posto (positivo).
Para Lenza[3], trata-se a norma fundamental hipotética do “fundamento lógico-transcedental da validade da Constituição jurídico-positiva”.
Espírito da constituição, vontade geral, Wille der Verfassung? Talvez.
Melhor explana o autor do sentido jurídico[4]:
O significado da norma fundamental se torna extremamente claro se um ordenamento jurídico não for modificado por meio legal, mas por meio revolucionário, através de um novo ordenamento; assim como a essência do direito e da comunidade por ele constituída aparece mais claramente quando de questiona a sua existência.
Torna-se claro, assim, que a norma fundamental hipotética de trata de uma vontade, algo “lógico-transcendental”, que embasa a constituição positiva.
Portanto, no sentido lógico-jurídico, seria a constituição uma norma fundamental hipotética, e no sentido jurídico-positivo, uma norma fundamental positiva fundamentada na hipotética, e é este o sentido jurídico de constituição.
Diga-se, por fim, que na pirâmide kelseniana restaria a norma fundamental hipotética acima da norma fundamental positiva.
Argumenta ainda Kelsen que o direito regula sua própria criação, de forma que “uma norma jurídica regula o procedimento pelo qual outra norma jurídica é produzida” [5].
Neste sentido, afirma que:
Devido ao caráter dinâmico do direito, uma norma vale porque e até ser produzida através de outra norma, isto é, através de outra determinada norma, representando esta o fundamento da validade para aquela. A relação entre a norma determinante da produção de outra norma produzida de maneira determinada pode ser representada com a imagem espacial do ordenamento superior e inferior.
Atribui Kelsen à norma o valor que a norma determinante o dá, partindo do pressuposto de que uma norma jurídica regula a criação de outra norma jurídica, criando assim o que num prisma espacial corresponderia a um escalonamento, ou, do alemão, Stufenbau.
Assim sendo, podemos concluir que o ordenamento jurídico se trata de uma escala com diversas camadas normativas, e não um sistema de normas postas isonomicamente.
Enquanto norma fundamental, a constituição estará no topo destas camadas, levando-nos a concluir que[6]:
[...]A Constituição, para ser modificada ou derrogada, deverá prescrever um procedimento diferente, mais complexo do que o procedimento legislativo comum; deve haver, ao lado da forma legal, uma forma constitucional específica.
Neste sentido, vemos que deverá a Constituição ter uma especial proteção, pelo fato de ser a norma fundamental, ou a pedra angular sobre a qual é construindo todo o ordenamento jurídico.
A supremacia formal da constituição, portanto, está intimamente ligada ao seu sentido jurídico, encontrando-se unicamente presente em constituições rígidas[7]. Diz respeito ao fato desta ser a norma suprema sobre a qual estão formalmente fundamentadas todas as outras. Tem seu cerne na hierarquia formal das normas.
A supremacia material da constituição, por sua vez, poderá estar presente inclusive em constituições costumeiras e flexíveis[8]. Diz respeito à rigidez socio-política da constituição.
Diz-se, dessa forma, estar a supremacia formal relacionada a um ponto de vista jurídico e a supremacia material a um ponto de vista sócio-político.
[1] SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 26. Ed. rev. e. atual. nos termos da Reforma Constitucional (até a Emenda Constitucional n. 48, de 10.8.2005). São Paulo: Malheiros, 2005. p. 45.
[2] BARROSO, Luís Roberto. O direito constitucional e a efetividade de suas normas – limites e possibilidades da Consituição brasileira. 8. Ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 64.
[3] LENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado. 16. ed. ver., atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 75.
[4] KELSEN, Hans. Teoria pura do direito: introdução à problemática científica do direito. Tradução: J.Cretella Jr. e Agnes Cretella. 2. ed. rev. da tradução. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002. p. 99.
[5] KELSEN, Hans. op. cit.
[6] KELSEN, Hans. op. cit. p. 104.
[7] SILVA, José Afonso da. p. 46.
[8] BURDEAU, Georges. Droit constitutionnel et institutions politiques. 12. Ed. Paris, Librairie Générale de Droit et de Jurisprudence, 1966. p. 75.