Símbolo do Jus.com.br Jus.com.br

Aplicação da pena: brevíssima evolução histórica da legislação brasileira

Agenda 07/04/2014 às 16:19

A ausência de segurança jurídica na aplicação da pena foi responsável por inúmeros abusos cometidos no passado. Conhecer a História nos permite evitar a repetição dos erros.

A aplicação da pena criminal nos séculos passados sempre foi cercada de muitos abusos e rigor excessivo. E tal se deu, sobretudo, porque nem sempre vigoraram regras claras e minuciosas a respeito do tema.

Conforme nos lembra Basileu Garcia, “antigamente, o juiz dispunha de grande arbítrio, que era empregado de modo nocivo, porque propiciava a perseguição dos fracos e a proteção das classes privilegiadas”.1

As Ordenações do Reino, coletâneas de normas vigentes em Portugal a partir de meados do século XV e que, após o descobrimento do Brasil, foram os primeiros textos normativos a vigorarem na colônia portuguesa da América, caracterizavam-se pelo rigor das penas e pela arbitrariedade em sua aplicação.

Narra Basileu Garcia que “tão grande era o rigor das Ordenações, com tanta facilidade elas cominavam a pena de morte, que se conta haver Luís XIV interpelado, ironicamente, o embaixador português em Paris, querendo saber se, após o advento de tais leis, alguém havia escapado com vida”.2

Na verdade, vale salientar que das três Ordenações do Reino que tiveram vigência em Portugal – as Afonsinas (1446), as Manuelinas (15213) e as Filipinas (1603) – apenas esta última teve efetivamente aplicação no Brasil4.

As Ordenações Filipinas, cuja vigência se deu por lei de 11 de janeiro de 1603, eram compostas por cinco livros dos quais o último, que trazia as disposições em matéria penal, ficou famoso pelo terror que empregava aos castigos e pela confusão que fazia entre crime e pecado, características marcantes nas legislações penais da Idade Média.

A legislação que entrou em vigor no reinado de Filipe II (III, da Espanha) previa sanções que iam desde uma simples multa, passando pelo degredo, açoite e galés, até a pena de morte, que era executada mediante quatro formas, a morte civil, a morte simples, a morte atroz e a morte cruel.

A aplicação da pena, nesse diploma normativo, não trazia qualquer segurança jurídica, pois não vigorava à época o princípio nullum crimen nulla poena sine lege, chegando a prever que “para alguns delitos fosse cominada a chamada pena arbitrária, exatamente aquela que ficava ao talante do julgador, que a fixava como ‘lhe bem, e direito parecer, segundo a qualidade da malícia, e a prova que dela houver’ (Livro V, Tit. CXVIII, parágrafo 1º)”.5

Todavia, com o Código Criminal do Império editado em 1830, primeira legislação penal genuinamente brasileira, de inegável inspiração nas idéias liberais iluministas, a aplicação da pena começou a ganhar contornos mais definidos, com a previsão, inclusive, de circunstâncias agravantes e atenuantes, devendo o juiz fixar a pena entre os graus máximo, médio e mínimo.

A legislação penal do império, com a proclamação da República, foi substituída pelo Código Penal editado em 1890, que previa regras de aplicação da pena bastante curiosas, cujo procedimento é relatado por Basileu Garcia:

“Havia cinco graus de pena: máximo, submáximo, médio, sub-médio, mínimo. O máximo e o mínimo figuravam no Código, para cada crime. Para calcular o grau médio, o juiz extraía a média aritmética entre o máximo e o mínimo. Calculava o sub-médio, extraindo a média entre o mínimo e o médio. Calculava o sub-máximo, extraindo a média entre o médio e o máximo.

Se ocorriam contra o autor do crime circunstâncias agravantes, não havendo atenuantes, seria a pena imposta no máximo. Se só atenuantes, o mínimo. Se não existiam circunstâncias agravantes nem atenuantes, ou, existindo, se compensavam, era aplicada a pena no grau médio. Se, existindo atenuantes e agravantes, prevaleciam as atenuantes, o grau era entre o mínimo e o médio, isto é, o sub-médio; se prevaleciam as agravantes sobre as atenuantes, aplicava-se entre o médio e o máximo, isto é, o sub-máximo”.6

Interessante anotar que o primeiro estatuto penal do período republicano, em seu art. 66, já previa o que hoje denominamos de crime continuado e concurso formal de crimes, aumentando-se a pena de sexta parte no primeiro caso e impondo a fixação da pena mais grave em seu grau máximo na segunda hipótese.

É preciso destacar, neste ponto, que, com o nítido escopo de impedir as incertezas das decisões judiciais que as legislações do período colonial proporcionavam e visando tolher do juiz qualquer margem de discricionariedade em suas decisões, o Código do Império de 1830 e o Código Republicano de 1890 não permitiam a fixação da pena fora dos critérios nem das balizas previstas na lei. Tal sistema, muito embora tivesse o nítido intuito de trazer segurança jurídica, impondo amarras à liberdade do julgador, conduzia, evidentemente, a grandes injustiças.

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

Esse modelo de aplicação de pena, por meio do qual ao aplicador das normas não era permitido interpretá-las, mas simplesmente verificar objetivamente a ocorrência de alguma circunstância prevista em lei, fazendo-as incidir, é, de certa forma, mantido nas legislações posteriores, ressalvado o acréscimo de expressões influenciadas pela Escola Positiva, cujo conteúdo subjetivo permite ao magistrado valorá-las discricionariamente, mas sempre dentro das balizas legais, da pena máxima e mínima.

O Código Penal de 1940, editado no período ditatorial do Estado Novo, e inspirado nas idéias positivistas de Enrico Ferri, trouxe grandes inovações em matéria de aplicação da pena. Em sua redação original, a imposição da sanção penal operava-se em etapas, devendo o juiz fixar a pena inicial, dentro dos limites legais, atendendo aos antecedentes e à personalidade do agente, à intensidade do dolo ou grau de culpa, aos motivos, às circunstâncias e conseqüências do crime.

A forma de aplicar a quantidade de pena, todavia, era motivo de grande divergência entre dois juristas integrantes da Comissão revisora do projeto que deu origem ao Código de 1940. Para Roberto Lyra, a aplicação da pena deveria seguir o sistema bifásico, segundo o qual as circunstâncias judiciais deveriam ser analisadas juntamente com as agravantes e atenuantes, em uma única fase, para, posteriormente, incidirem as causas de diminuição e aumento de pena. Já para Nélson Hungria, a dosagem da pena deveria seguir um modelo denominado trifásico, justamente por separar a análise das circunstancias judiciais e das legais.

No ano de 1984, a parte geral do Código Penal sofreu significativa reforma, sendo integralmente revogada, trazendo alteração nas regras de aplicação da pena.

No tocante ao cálculo da pena de prisão, adotou-se expressamente o sistema trifásico idealizado por Nélson Hungria, em que a fixação do quantum de pena atribuída ao condenado é realizada em três momentos distintos, quais sejam, a pena-base, a pena provisória e a pena definitiva.

Atualmente, as regras previstas no Código Penal precisam ser interpretadas à luz dos princípios estabelecidos pela Constituição da República, a fim de se evitar violações aos direitos e garantias individuais do cidadão.

Conhecer a evolução histórica da legislação brasileira sobre a aplicação da pena nos permite evitar abusos e retrocessos na interpretação da atual sistemática do tema, e nos permite também buscar sempre aperfeiçoar as regras sobre a dosimetria da reprimenda penal.


Bibliografia

GARCIA, Basileu. Instituições de direito penal. vol. I, tomo II. 6ª ed. São Paulo: Max Limonard, 1982.

GARCIA, Basileu. Instituições de direito penal. vol. I, tomo II. 2ª ed. São Paulo: Max Limonard, 1952.

PIERANGELI, José Henrique. Códigos penais do Brasil: evolução histórica. 2ª ed. 2ª tiragem. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004.


Notas

1 Instituições de direito penal, vol. I, tomo II, p. 468.

2 Instituições de direito penal, vol. I, tomo I, p. 126.

3 Embora em 1514 tenha sido editada a 1ª edição completa das Ordenações Manuelinas, o certo é que ela “não satisfez a expectativa de D. Manuel que, por tal razão, mandou inutilizar todos os exemplares, com exceção daquele encontrável na Torre do Tombo. Em seguida, o monarca nomeou nova comissão para a elaboração da coletânea”, que foi publicada em 11 de março de 1521. (José Henrique PIERANGELI, Códigos penais do Brasil, p. 54).

4 Ensina PIERANGELI que “as Ordenações Afonsinas nenhuma aplicação tiveram no Brasil, pois quando em 1521 foram revogadas pelas Ordenações Manuelinas, nenhum núcleo colonizador havia se instalado no nosso país” e “o Direito empregado, no período das capitanias hereditárias, na prática, era quase o arbítrio dos donatários” (op. cit. p. 61).

5 José Henrique PIERANGELI, Códigos penais do Brasil. p. 58.

6 Instituições de direito penal, vol. I, tomo II, p. 469.

Sobre o autor
Thiago Soares Piccolotto

Defensor Público do Estado de São Paulo.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!