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Contrato de locação e a cláusula de bonificação em face da autonomia da vontade

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Agenda 01/03/2002 às 00:00

Sumário: INTRODUÇÃO; 1 DO CONTRATO DE LOCAÇÃO E DO ALUGUEL, 1.1 Histórico, 1.2 Conceito de Locação, 1.2.1 Contrato de Locação de Imóvel Urbano, 1.3 Do Aluguel e sua Fixação; 2 A AUTONOMIA DA VONTADE, 2.1 A Autonomia da Vontade na Formação dos Contratos, 2.2 Do Limite da Autonomia da Vontade, 2.2.1 Dirigismo Contratual e Princípio da Legalidade; 3 DA CLÁUSULA DE BONIFICAÇÃO, 3.1 Da Obrigação do Pagamento Pontual do Aluguel, 3.2 Das Interpretações Possíveis, 3.2.1 Inadmissibilidade da Cláusula de Bonificação, 3.2.2 Admissibilidade da Cláusula de Bonificação, 3.2.3 Admissibilidade da Cláusula de Bonificação, porém não cumulável com cláusula penal; CONCLUSÃO; BIBLIOGRAFIA


Introdução

O contrato de locação de imóvel urbano é, sem dúvida, um dos contratos mais importantes e utilizados, na vida cotidiana.

É de se ressaltar ser a Lei 8.245 de 18 de outubro de 1991, que regula tal contrato, umas das melhores leis extravagantes que constituem o sistema jurídico brasileiro.

Nota-se que a Lei do Inquilinato, como é conhecida, veio como uma forma do Governo tentar solucionar um problema seu: a moradia, com os imóveis particulares. Fê-lo impondo um caráter cogente em uma relação jurídica até então eminentemente privada.

Apesar do brilhantismo da Lei 8.245/91, a criatividade humana, que é ainda maior nos períodos de crise e altíssima inflação, criou a cláusula contratual, hoje conhecida como, "Cláusula de Bonificação" ou "Prêmio de Pontualidade".

Nos períodos anteriores ao Plano Real (1994), tal cláusula não suscitava grandes discussões nos tribunais brasileiros. Constituía em uma reposição do valor perdido pela desvalorização da moeda, que era de um percentual altíssimo, no período de um eventual atraso do locatário.

Entretanto, com a tão esperada e desejada estabilidade econômica e com inflação controlada a patamares próximos a zero, a cláusula de bonificação começou a ser discutida nos procedimentos judiciais.

Desta forma, inevitável foi a manifestação dos tribunais a respeito desta matéria que, até hoje, traz dúvidas a respeito de sua validade.

Verificam-se divergências de entendimento, inclusive em uma mesma Câmara do Tribunal de Alçada do Paraná, como é o caso da Terceira. Vide os exemplos:

Embargos à execução – contrato de locação -... – cláusula de bonificação validade – cumulação com multa contratual – licitude – provimento parcial da apelação e provimento integral do recurso adesivo.

... (omissis)...

5. Sem prova robusta de que a cláusula de bonificação por pontualidade, ao contrário de servir de estimulo ao locatário que paga o aluguel nas datas convencionadas, dissimula uma verdadeira penalidade ao inadimplente, ela deve ser reputada como válida porque não ofende qualquer norma de ordem pública, podendo, pois, ser cumulada com a multa contratual. [1]

Apelação cível – embargos à execução – contrato de locação – fiadores – Código de Defesa do Consumidor – inaplicabilidade – cláusula de bonificação – invalidade -... – recurso parcialmente provido.

... (omissis)...

II. O denominado "prêmio de pontualidade" constitui verdadeira multa moratória, cláusula penal, inserida no contrato de locação com o escopo de fraudar a Lei nº 6.649, de 1.979, principalmente o disposto em seu art. 30, que permite, no caso de mora do locatário no pagamento de aluguel e encargos, apenas e tão somente, a estipulação de juros e correção monetária avençados.[2]

Desta forma tentar-se-á clarear os limites a respeito da matéria a fim de que se possa chegar a alguma conclusão de um tema que vem causando muita controvérsia jurídica.


1 Do contrato de locação e do aluguel

Antes de adentrar no tema, é necessário que se façam algumas considerações sobre onde está inserida a "Cláusula de Bonificação" afim de que se possa dar maior compreensão a respeito do tema.

Deve-se, para tanto, elaborar explanações a respeito do contrato de locação de imóvel urbano, do aluguel e sua fixação.

1.1 Histórico

A locação, tal como se apresenta em nosso sistema jurídico, é instituto de origem romana. Entretanto, outros direitos antigos, como o germânico, também o conheceram.

Entre os romanos a locação - denominada locatio conductio - se constitui como contrato consensual (que se aperfeiçoa pelo mero consentimento das partes), do qual não deriva, para o locatário, qualquer direito real.

O locatário era simples detentor da coisa (possessio naturalis), sendo-lhe vedado até os interditos possessórios.

Segundo parte da doutrina, a Locatio Conducto possuía três espécies: A Locatio Rei (ou rerum); a Locatio operarum e a Locatio Operis Faciendi, que correspondia respectivamente aos contratos de locação de coisa, locação de serviços e a empreitada ou locação de obra. Todavia, alguns autores discordam desta divisão, afirmando que os romanos só conheceram um tipo contratual único, com três finalidades diversas.

A evolução do Direito modificou a classificação romana catalogando a moderna análise doutrinária, como sendo categorias distintas, todos os contratos tidos como espécie do gênero locatio.

Hoje a expressão locatio corresponde exclusivamente ao contrato que visa proporcionar a alguém o uso e gozo, por tempo limitado, de coisa infungível e restituível, em troca de retribuição. Na sábia definição do mestre Orlando Gomes, "locação é só a de coisas". Isso, além de evitar impropriedades conceituais advindos da suposta unidade, evita que se incorra na repugnante comparação do trabalho humano às coisas, cabível apenas em sociedade: cuja estrutura econômica dependa - como em Roma - do trabalho escravo.

1.2 Conceito de Locação

A locação é, segundo Clóvis Beviláqua, o contrato pelo qual uma das partes, mediante remuneração paga pela outra, se compromete a fornecer-lhe, durante certo lapso tempo, o uso e gozo de uma coisa infungível, a prestação de um serviço apreciável economicamente, ou a execução de alguma obra determinada.

No mesmo sentido, Aubry et Rau [3]:

"Locação é contrato pelo qual uma das partes, mediante remuneração que a outra se obriga a pagar, se compromete a fornecer-lhe ou a procurar-lhe, durante certo tempo, o uso e gozo de uma coisa (locação), a prestação de um serviço (locação de serviço), ou, a execução de um trabalho determinado (empreitada)."

A lei civil brasileira trata da locação no capítulo 4, referente ao título dos contratos, dividido em seções: a primeira dedicada à locação das coisas (art. 1188 a 1215), a qual compreende disposições gerais (arts. 1188 a 1199), disposições especiais à locação de prédios (art. 1200 a 1269), à locação de prédios urbanos (art. 1210) e à locação de prédios rústicos (art. 1211 a 1215); a segunda dedicada à locação de serviços (art. 1216 a 1236); a terceira dedicada à empreitada ou a locação de obra (arts. 1237 a 1247).

A Lei 8.245/91 restringe o seu âmbito à locação de imóveis urbanos. Não há de interferir na locação de prédios rústicos, na locação de frutos, na locação de máquinas ou indústrias, na locação de serviços ou de obras. Cogita, apenas, de locação de imóveis urbanos. Conforme estabelece o seu art. 1º:

Art. 1º. A locação de imóvel urbano regula-se pelo disposto nesta Lei.

Parágrafo Único. Continuam regulados pelo Código Civil e pelas leis especiais:

a) as locações:

1- de imóveis de propriedade da União, dos Estados e dos municípios, de suas autarquias e fundações públicas;

2- de vagas autônomas de garagem ou de espaços para estacionamento de veículos;

3- de espaços destinados à publicidade;

4- em apart-hotéis, hotéis-residências ou equiparados, assim considerados aqueles que prestam serviços regulares a seus usuários e como tais sejam autorizados a funcionar;

b) o arrendamento mercantil, em qualquer de suas modalidades.

1.2.1 Contrato de Locação de Imóvel Urbano

O contrato de locação é o modo pelo qual uma pessoa, denominada locador, cede à outra, inquilino ou locatário, por tempo determinado, ou não, mediante remuneração (aluguel), o uso e o gozo de um determinado imóvel.

A simples definição do contrato revela o seu caráter bilateral e oneroso, sendo, ainda, consensual, comutativo e não-solene. Nas palavras de Silvio Rodrigues[4], tem-se que:

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a) bilateral, porque envolve prestações recíprocas de cada uma das partes;

b) oneroso, dado ao seu propósito especulativo;

c) consensual, porque independe da entrega da coisa para o seu aperfeiçoamento, opondo-se, assim, aos contratos reais onde a tradição é elemento constitutivo do contrato;

d) comutativo, porque cada uma das partes, desde o momento da feitura do ajuste, pode antever e avaliar a prestação que lhe será fornecida e que, pelo menos subjetivamente, é equivalente da prestação que se dispõe a dar;

e) não-solene, porque a lei não impõe forma determinada para seu aperfeiçoamento.

Sendo, bilateral, emerge do contrato de locação uma reciprocidade de obrigações, o que se chama de sinalagma, donde decorre que, ambas as partes suportam obrigações, sendo, ao mesmo tempo, credora e devedora uma da outra.

Ademais disso, sendo comutativo, é lícito as partes elaborarem e discutirem as cláusulas que regerão à futura relação jurídica. Não havendo, portanto, que se falar em "imposição de cláusulas" (contrato de adesão) por uma ou outra parte.

É pertinente, portanto, dizer-se que, já é pacificado o entendimento da não aplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/90), no âmbito locador/locatário dos contratos de locação. Isto por alguns motivos muito simples:

a) A Lei do Inquilinato é norma específica e o Código de Defesa do Consumidor, norma geral, de modo que, face ao princípio da especificidade, norma especial revoga norma geral;

b) Não fosse só isso, a Lei 8.245/91 (Lei do Inquilinato) é de igual hierarquia legislativa que a Lei 8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor) e posterior a esta;

c) Se, ainda assim, houvesse o entendimento para aplicabilidade em face do caráter público do Código de Defesa do Consumidor, falta à locação de imóvel urbano o fornecedor (art. 3º, do CDC), figura essencial para a caracterização da relação de consumo.

1.3 Do Aluguel e sua Fixação

O contrato de locação tem como um dos seus principais objetivos a renda ou a aquisição do aluguel, sendo esta, a contraprestação pelo uso e gozo da coisa locada.

O aluguel inicial, como disposto pelo artigo 17 da Lei do Inquilinato, fica ao sabor da realidade de mercado, no momento da celebração do contrato, vigorando, inevitavelmente, a "lei" da procura e da oferta. Isso decorre por conta da autonomia da vontade, própria dos atos jurídicos privados e da comutatividade, já explanada, dos contratos de locação. Ora, um "tabelamento" do aluguel inicial seria impossível, não só pela dificuldade de elaborar uma tabela que abrangesse todas as possibilidades como causaria um engessamento do mercado, o que seguramente afastaria os investimentos.

Normalmente a fixação do aluguel dá-se em dinheiro, mas pode ser prevista numa prestação de utilidade ou serviço (participação nos lucros, nas vendas, galonagem, percentagem de bilheteria, etc.), ou, ainda, numa prestação mista. É, também, prática usual que a periodicidade do aluguel seja mensal, mas não há qualquer impedimento para que seja convencionado pagamento diário, semanal, semestral, etc.

É de se destacar, pois, os ensinamentos de Bobbio[5] ao falar das normas que regem os contratos:

As normas que regem os contratos são, em geral, regras destinadas a determinar o modo pelo qual o poder de negociação deve ser exercido para produzir conseqüências jurídicas, e não a matéria sobre a qual este deva ser exercido.

A maior preocupação do legislador, através do dirigismo estatal nesta espécie de contrato, sempre foi o de coibir os excessos praticados pelos locadores, criando mecanismos no sentido de assegurar equilíbrio e a eqüidade do negócio jurídico.

A intervenção do Estado, neste aspecto, opera-se quanto à fixação do aluguel em moeda estrangeira e a sua vinculação à variação cambial ou ao salário mínimo.

O Decreto n.º 23.501/33 proibiu, nos contratos exeqüíveis no Brasil, a estipulação do seu pagamento em moeda que não fosse a corrente e declarou nula qualquer estipulação neste sentido. No mesmo caminho seguiu a Lei 8.245/91, em seu artigo 17, proibindo a fixação do aluguel em moeda estrangeira sob pena de nulidade. As legislações tinham como objetivo o curso forçoso da moeda brasileira nos negócios jurídicos.

Já a vinculação à variação cambial e salário mínimo era prática corriqueira nos períodos de alta inflação, pois reajustados freqüentemente. O objetivo estatal neste aspecto era muito mais social que econômico. Trazia, pois, uma maior facilidade ao inquilino ao pagamento do aluguel com o salário reajustado e fixo o aluguel.

Falando em fixação do aluguel inicial, destacou-se que não existe qualquer fórmula para tanto. A legislação que vigora para tal fixação é tão-somente a "lei da oferta e procura".

Por este aspecto, a autonomia da vontade é fator determinante e importantíssimo para a estipulação do aluguel e das cláusulas contratuais.

Deste modo, as partes têm ampla liberdade para contratar, vinculando-se de acordo com a sua vontade, que imperará em suas relações, respeitando os limites previstos pela lei, como os que acima se identificou e outros previstos por todo o ordenamento jurídico.


2 a autonomia da vontade

Para a estipulação do aluguel, como de qualquer outra cláusula ou contrato do direito privado, é necessário, para sua validade e eficácia, que haja congruência das vontades dos contratantes. A falta desta congruência vicia de morte o contrato ou a cláusula. Deste modo, verifica-se a importância da vontade nos contratos privados, sendo um dos princípios fundamentais do direito obrigacional.

Justicia, a inteligência artificial do Jus Faça uma pergunta sobre este conteúdo:

Esta vontade, para não ser viciada, deve ser autônoma, isto é, deve ser livre e espontânea, não ser exercida (v.g.) em razão de uma coação irresistível.

Etimológicamente, autonomia significa capacidade de reger-se por si mesmo, ou capacidade de agir espontaneamente. Assim, a autonomia pode ser entendida num sentido mais amplo, como a condição de uma pessoa ou coletividade que determina por si mesma a lei a que se submete.

Kant emprega o termo para significar que a razão humana é livre em matéria de moral e que as leis que ela impõe à vontade são universais e absolutas. A moral, para Kant, se rege por três princípios: a universalidade da lei, a dignidade absoluta do indivíduo humano e a autonomia da vontade.

Referido filósofo[6], estabelece que a autonomia da vontade é a constituição da vontade, pela qual é para si mesma uma lei - independentemente de como forem constituídos os objetos do querer. - O princípio da autonomia é, pois, não escolher de outro modo, mas sim deste: que as máximas da escolha, no próprio querer, sejam ao mesmo tempo incluídas como lei universal.

Na autonomia da vontade, uma realidade poderá estar regida por lei própria distinta de outras leis, porém, não forçosamente incompatível com elas, admitindo, assim, que, no vocabulário filosófico em geral, o termo se emprega no sentido ontológico e ético. Uma lei moral é autônoma quando tem em si mesma seu fundamento e a razão própria de sua legalidade. Esse é principalmente o sentido kantiano que procura indicar a autonomia da vontade como uma propriedade mediante a qual a vontade constitui uma lei por si mesma, independentemente de qualquer propriedade dos objetos do querer.

A autonomia do ser racional ao estabelecer as leis morais se apóia numa autarquia, ou auto-suficiência, isto é, numa pureza de intenção desvinculada das influências exteriores.

O papel da vontade no direito já foi objeto de numerosos estudos ao mesmo tempo por parte de juristas, sendo certo que várias foram as posições assumidas.

Vicente Rao em obra sobre os atos jurídicos identifica a vontade como constituindo matéria básica da teoria do direito e da realidade jurídica. Segundo Rao[7]:

A vontade, manifestada ou declarada, possui no universo jurídico poderosa força criadora: é a vontade que através de fatos disciplinados pela norma, determina a atividade jurídica das pessoas e, em particular, o nascimento, a aquisição, o exercício, a modificação ou a extinção de direitos e correspondentes obrigações, acompanhando todos os momentos e todas as vicissitudes destas e daquelas.

2.1 A Autonomia da Vontade na Formação dos Contratos[8]

A idéia de autonomia da vontade está estritamente ligada a idéia de uma vontade livre, dirigida pelo próprio indivíduo sem influências externas imperativas. A liberdade contratual significa, então, a liberdade de contratar ou de se abster de contratar, liberdade de escolher o seu parceiro contratual, de fixar o conteúdo e os limites das obrigações que quer assumir, liberdade de poder exprimir a sua vontade na forma que desejar, contando sempre com a proteção do direito.

O contrato e a estipulação de suas cláusulas, em tese, são sempre justos, porque, se foi querido pelas partes, resultou da livre apreciação dos respectivos interesses pelos próprios contratantes, o que teoricamente presumir-se-á como o equilíbrio das prestações.

Sendo justo o contrato e equilibrada suas prestações, segue-se que aos contratantes deve ser reconhecida ampla liberdade de contratar, só limitada por considerações de ordem pública, pela boa-fé e eqüidade. Assim enquanto forem observados esses limites, podem as partes convencionar aquilo que lhes agradar, o que, de resto, constitui um aspecto da liberdade individual, consubstanciada no princípio de que é permitido tudo que não é proibido.

Podem, portanto, discutir livremente todas as condições contratuais, celebrar contratos regulados por lei, ou quaisquer outros que imaginem, escolher a melhor forma de declaração de vontade, fixar os efeitos, etc.

Nos dissídios que acaso se formem, a missão do juiz será o de apurar a vontade dos contratantes, em um processo de pura reconstituição.

Em contraposição às chamadas normas obrigatórias existem as facultativas que compreendem as normas supletivas e as interpretativas. O contratante, via de regra, preocupa-se, especialmente, com os efeitos principais do contrato. Descuida-se dos pormenores e das conseqüências secundárias. Poderia, precisamente porque as normas são facultativas, regulá-las por forma diversa da preferida pelo legislador e sustentada na experiência universal. Contudo, em decorrência da omissão, subordina-se aos seus efeitos.

Efetivamente e sem embargo da ficção jurídica de que "todos conhecem a lei", os contratantes serão, freqüentemente surpreendidos, em virtude da aplicação de regras supletivas, com efeitos e conseqüências estranhas à sua previsão e até contrárias à vontade silenciada. Sob esse aspecto, sofre a autonomia da vontade. A solução a posteriori de questões não previstas no contrato só poderá ser estabelecida pelas partes se estiverem de acordo. Não chegando a acordo, porém, a norma, em princípio facultativa, torna-se obrigatória para os contratantes em dissídio. Isto é imprescindível, para que se solucione o conflito.

A liberdade de contratar, então, deve ser entendida em termos. As partes podiam contratar o contrário do que dispunha a norma facultativa. Mas, se não usaram essa faculdade, a sua imprevisão poderá tornar necessário que ela se transmude em preceito obrigatório. O juiz, por vezes, adota solução não convencionada pelas partes, nem fornecida pela lei supletiva. Por uma imprevisão dos contratantes e do legislador, não se traçou a regra para a questão superveniente. O juiz, de ordinário, aplicador ou intérprete de sua vontade, vê-se na necessidade de constituir uma solução estranha ao consentimento. Procede por suposições, imaginando uma solução que, no seu entender, seria a que as partes teriam adotado se o caso lhes tivesse ocorrido por ocasião da elaboração do contrato e, por ficção, a admite como condição subentendida ou tácita.

Trata-se de interpretação do contrato, isto é, de apuração da vontade dos contratantes, por não estar expressa a solução que deve ser subentendida. De qualquer modo, porém, não há certeza de que a condição que o juiz considere subentendida corresponde à real vontade dos contratantes, ou à vontade que teriam declarado se houvessem previsto a dificuldade superveniente. A falta dessa certeza basta para justificar o asserto de que, em muitas oportunidades, não corresponderá e, por conseqüência, será afetada a autonomia da vontade.

Problema ligado ao da autonomia da vontade é o de saber se, na divergência entre a vontade real e a vontade declarada, deve prevalecer esta ou aquela.

Segundo a teoria da vontade, a preponderância caberá à vontade real. Segundo a teoria da declaração, prevalecerá a vontade declarada.

A verdadeira solução, porém, é a intermediária. Se, em regra, é de preferir-se a vontade real, casos há em que, por conveniências sociais de segurança nas relações jurídicas, a vontade declarada deve prevalecer, porque, sendo a declaração o meio normal de revelação da vontade interna, não devem os que nela confiarem sofrer prejuízo pela divergência entre uma e outra.

Não parece que a declaração seja uma das etapas do processo constitutivo da vontade. É evidente que a vontade que permaneça in pectus, sem ser externada, não produz efeitos. O reconhecimento dessa verdade não basta, porém, para transformar a declaração no momento de sua constituição, nem mesmo do ponto de vista social ou jurídico. A declaração é simples execução da vontade. Se a obrigação convencionada é um limite voluntariamente imposto a si mesmo por quem se vincula, não pode ser constituída por uma declaração sem correspondência com a vontade real. Cumpre, porém, considerar que o direito tem por finalidade precípua regular as relações dos homens, vivendo em sociedade. Não pode, portanto, ponderar apenas os interesses do emitente da declaração. É necessário que tenha em linha de contas, por igual, os da pessoa a quem é dirigida e, sobretudo, os terceiros, por acaso, ligados a ela. A declaração é o meio normal de revelação da vontade e, portanto, é legítimo que se confie na vontade declarada, cuja discordância com a vontade real só poderia ser apurada através de maior indagação.

O Código Civil Brasileiro consagra, em seu artigo 85, o princípio de que, nas declarações de vontade, se atenderá mais à intenção do declarante que ao sentido literal da linguagem. Em todas as oportunidades, porém, em que a vontade real for sacrificada em favor da declaração, a autonomia da vontade receberá novo golpe.

Mas, por outro lado, deve-se fazer prevalecer a declaração de vontade, quando dispõe, por exemplo, que tendo havido intuito de prejudicar a terceiros, ou infringir preceitos de lei, nada poderão alegar, ou requerer, os contratantes em Juízo quanto à simulação do ato, em litígio de um contra o outro, ou contra terceiros (Código Civil, artigo 104).

2.2 Do Limite da Autonomia da Vontade

As modificações ocorridas na sociedade trouxeram a tona a necessidade da implementação do equilíbrio contratual. Imposição lógica deste fenômeno foi uma nova teorização dos contratos. Houve, por assim dizer, uma socialização dos mesmos. A lei passou a assumir caráter mitigador da autonomia da vontade, protegendo determinados interesses, valorizados pela confiança e boa-fé.

É o intervencionismo estatal que, embora não tenha aniquilado o conceito tradicional da autonomia da vontade, passou a limitá-lo. A liberdade dos contraentes sofreu considerável redução, no sentido de que se subordinam, hoje, à prevalência e preponderância do interesse social sobre o particular.

Esse dirigismo contratual justifica-se, no dizer de Caio Mário da Silva Pereira[9]:

...na convicção de que o Estado tem de intervir na vida do contrato, seja mediante a aplicação de leis de ordem pública, que estabelecem restrições ao princípio da autonomia da vontade em benefício do interesse coletivo, seja com a adoção de uma intervenção judicial na economia do contrato, instituindo a contenção dos seus efeitos, alterando-os ou mesmo liberando o contratante lesado, por tal arte que logre evitar que por via dele se consume atentado contra a justiça.

E arremata:

O que no momento ocorre, e o jurista não pode desprender-se das idéias dominantes no seu tempo, é a redução da liberdade de contratar em benefício do princípio da ordem pública, que na atualidade ganha acendrado esforço, e tanto que Josserand chega mesmo a considerá-lo a ‘publicação do contrato’. Não se recusa o direito de contratar, e não se nega a liberdade de fazê-lo. O que se pode apontar como a nota predominante nesta quadra da evolução do contrato é o reforçamento de alguns conceitos, como o da regulamentação legal do contrato, a fim de coibir abusos advindos da desigualdade econômica; o controle de certas atividades empresariais; a regulamentação dos meios de produção e distribuição e, sobretudo a proclamação efetiva da preeminência dos interesses coletivos sobres os de ordem privada, com acentuação tônica sobre o princípio da ordem pública, que sobreleva ao respeito pela intenção das partes, já que a vontade destas obrigatoriamente tem de submeter-se àquele.

Disto resulta que, aos tradicionais princípios da autonomia da vontade e da obrigatoriedade, não mais se destina o sentido absoluto que, outrora possuíam, sendo manifestamente aceita, em determinadas situações, a intervenção judicial no conteúdo dos contratos e, por conseguinte, a contenção de sua força obrigatória, isto em virtude do dirigismo contratual (interferência do Estado na vida do contrato) e da existência de normas de ordem pública, que não podem ser derrogadas pela vontade das partes, ainda que decorrente de manifestação válida. O excesso de liberalismo, manifestado pela preeminência do dogma da vontade sobre tudo, cede às exigências da ordem pública, econômica e social, que deve prevalecer sobre o individualismo, funcionando como fatores limitadores da autonomia privada individual, no interesse geral da coletividade.

Destaque-se que, com isso, não se está a elidir a aplicação do secular pacta sunt servanda, que assegurou o estrito cumprimento "gramatical" das cláusulas contratuais durante longo período, para a aplicação da "supremacia do espírito sobre a letra", mas, tão somente, a conter abusos e excessos que não raras vezes se fazem intensamente presentes nas relações contratuais.

A flexibilização do pact sund servanda, ainda que haja a congruência das vontades, esta, sempre, submetida a ordem pública e ao binômio, boa-fé e eqüidade.

A eqüidade nada mais é do que a utilização da "régua de lesbus". Esta, ao contrário das réguas vulgares, que são rígidas, era maleável, permitindo a adaptação às faces irregulares dos objetos medidos. Neste comparativo, tem-se que a norma é uma régua rígida que abstrai as circunstâncias que não considera relevantes. A eqüidade é uma régua maleável, pois leva em conta circunstâncias do caso que a regra despreza, como a força e a fraqueza das partes, para chegar a uma solução que se adapta melhor ao caso concreto, mesmo que se afaste da solução normal, estabelecida em lei.

A solução dos casos segundo a eqüidade contrapõe-se à solução dos casos segundo o direito estrito. Pode haver regras e haver eqüidade, quando o juiz estiver autorizado a afastar-se da solução legal e a decidir de harmonia com as circunstâncias do caso singular.

Deste modo, os ditames do Direito e da Justiça, deve, quando necessário, afastar-se do estrito cumprimento da letra fria do contratado e, aplicando-se a eqüidade, buscar uma moderação, uma igualdade, um equilíbrio na interpretação.

Já, a boa-fé, é a fidelidade, crença, confiança, sinceridade, convicção interior, nas palavras de Jose Luis de Los Mozos[10], boa-fé completa a própria norma jurídica, seja ela decorrente da autonomia da vontade privada, ou da lei. É a integração do ético ao justo.

Há quem entenda ser a boa-fé é a ausência de vontade de prejudicar, isto é, ausência de má-fé.

Por outro lado, para que haja boa-fé não basta agir sem malícia para invocá-la. É presciso que esteja na convicção de que procede com lealdade, convicção da existência de direito próprio. Nem a incerteza é suficiente. Aquele que duvida de seu direito e, mesmo assim, age, o fará de má-fé, porque a dúvida exclui a convicção, elemento imprescindível da boa-fé.

É de se ressalvar que sendo a convicção correspondente a realidade, não há que se falar em boa-fé, mas simplesmente em direito. Só se deve indagar se um ato é de boa-fé se a convicção, norteada por uma noção inexata da verdade, mas convicto de que é correta, é falsa ou contrária ao direito.

2.2.1 Dirigismo contratual e princípio da legalidade

A intervenção do Estado no conteúdo dos contratos sempre deve ocorrer mediante prévia autorização legislativa, o que importa dizer que as restrições à autonomia privada, ou seja, o dirigismo contratual, somente poderá ser concretizado quando houver lei expressamente disciplinando a matéria. Assim, nulidade de uma cláusula ou a imposição de um determinado modelo contratual, as obrigações legais de contratar, o controle de determinados contratos por parte do Poder Público, tudo depende de previsão legal, sob pena de ser considerado inconstitucional.

Dessa forma, em relação aos contratos, pode-se afirmar que ninguém será obrigado a contratar ou deixar de contratar, ou será compelido a adotar um modelo contratual determinado pelo Estado, senão em virtude de lei, conclusão a que se chega naturalmente a partir do art. 5º, II, da Constituição da República. Ou seja, a liberdade de contratar e a liberdade contratual somente poderão ser limitadas em virtude de lei.

Com efeito, a autonomia privada (liberdade de contratar e liberdade contratual) é conseqüência imediata do direito de liberdade, o qual especificamente se concretiza no âmbito da Constituição através da iniciativa privada, protegida como princípio fundamental da República (art. 1º, IV) e como base da ordem econômica e social (art. 170) e, sendo assim, somente pode ser restringida por lei.

Conseqüentemente, o campo para o exercício da autonomia privada ainda é bastante amplo, pois se a intervenção estatal mostra-se crescente, é grande o número de contratos que ainda não estão submetidos a uma regulamentação específica, hipóteses em que as partes podem exercitar sua vontade sem quaisquer restrições.

Assim, através do princípio da legalidade contratual é legitimado o dirigismo contratual, na medida em que se exige como fonte das limitações à liberdade de contratar e à liberdade contratual a lei, expressão do poder normativo do Estado a ser exercido por meio de um processo legislativo, de acordo com as competências e valores constitucionalmente estabelecidos, motivo pelo qual afirmou-se que a questão das limitações à autonomia privada são mais de ordem ideológica e política do que jurídica.

É interessante registrar que o princípio da legalidade, conforme estabelecido no art. 5º, II, da Constituição Federal, encontra-se praticamente intocado, tanto que a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, hoje melhor conhecida como Declaração dos Direitos Humanos já estipulava que:

"A liberdade consiste em poder fazer tudo o que não prejudique a outrem: assim, o exercício dos direitos naturais do homem não tem outros limites senão os que asseguram aos demais membros da sociedade o gozo dos mesmos direitos. Esses limites somente a lei pode acrescentar".

Cumpre anotar, por fim, que essas limitações podem estar explicitadas minudentemente através de um decreto ou até mesmo por uma portaria, pois evidente que a maior dificuldade do princípio da legalidade em relação ao dirigismo contratual é a existência ou não de lei disciplinando, pelo menos em linhas gerais, a matéria.

Como exemplo dessa possibilidade tem-se a Portaria nº 4, de 13 de março de 1998, editada pelo Secretário de Direito Econômico do Ministério da Justiça, divulgando inúmeras cláusulas consideradas abusivas e, conseqüentemente, nulas. No entanto, apesar de aparentemente ilegal, essa portaria é perfeitamente hígida, pois seu balizamento legal encontra-se no art. 51 do Código de Defesa do Consumidor, além do que o Decreto nº 2.181/97, regulamentando os dispositivos do Código no que toca ao Sistema Nacional de Defesa do Consumidor, atribuiu expressamente competência para a Secretaria de Direito Econômico regulamentar a matéria, dando concretude aos comandos da Lei nº 8.078/90. Ademais, convém lembrar que a própria redação do mencionado art. 51, que considera nula, dentre outras, as cláusulas indicadas, demonstrando que seu conteúdo não é exaustivo e pode ser complementado por um ato administrativo normativo, como efetivamente foi feito.

Em verdade, aludida portaria não passa de mera enumeração de cláusulas comumente identificadas pela jurisprudência e por outros órgãos de defesa dos direitos dos consumidores como violadoras do art. 51 do CDC. A nulidade daquelas estipulações, assim, não decorre da portaria, mas sim da aplicação da lei.

Sobre o autor
Bruno Régio Pegoraro

juiz de Direito no Paraná

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PEGORARO, Bruno Régio. Contrato de locação e a cláusula de bonificação em face da autonomia da vontade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 7, n. 55, 1 mar. 2002. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/2778. Acesso em: 22 nov. 2024.

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