POR( )QUE (DES)CRER NA VÍTIMA(?)
É comum, na prática penal, a assertiva de que, nos delitos cometidos clandestinamente, sem a provável presença de testemunhas – como ocorre usualmente nos crimes sexuais – a palavra do ofendido adquire especial relevo para a instrução processual; contudo, tal afirmação vem sempre acompanhada de uma outra: a versão da ofendido deve estar em consonância com os demais elementos de prova colhidos ao longo do processo.
A necessária aproximação de um dado mnêmico, incluído o reconhecimento de pessoas, com outros elementos de prova colhidos ao longo da investigação e da instrução criminal, porém, não deve ser exclusiva para o depoimento do ofendido.
Sabidamente, o relato oral de um fato pretérito, que se submete aos mecanismos construtivos da personalidade em seu processo de exteriorização, bem como às próprias falhas de memória, está sujeita a distorções e falsas representações. Ainda pior, a prova oral estará sempre sujeita a mentiras (voluntárias), o que pode ser compreendido pelo recurso mental da exposição de um dado fictício como sendo verídico, ou seja, de uma situação que não existe ou não existiu no plano fático mas que, porém, é salientada pela pessoa como algo que efetivamente ocorreu.
Questão relevante a ser ressaltada no reconhecimento de pessoas ou coisas (e, também, em todas as provas dependentes de testemunhos) está situada na questão das já conhecidas “falsas memórias”.
São as falsas memórias, em síntese, a ocorrência de lembranças na mente de determinada pessoa, a qual, inobstante seja compreendida pelo indivíduo como sendo algo que realmente aconteceu, trata-se de um dado pretérito falso.
Tal fenômeno pode ocorrer de duas formas. São elas as falsas memórias espontâneas e as falsas memórias sugeridas. Sobre o tema, expõem com clareza Lilian Milnitsky et. al. (2010, p. 25):
As FM [falsas memórias] podem ocorrer tanto a uma distorção endógena, quanto por uma falsa informação oferecida pelo ambiente externo. Loftus e Binet, por exemplo, realizaram estudos em que apresentaram deliberadamente uma informação falsa, após a apresentação do evento original. Estudos com esse levaram a conclusão que a memória pode sofrer distorções, tanto fruto de processos internos quanto externos. Assim, as FM [falsas memórias] passaram a ser classificadas conforme a origem do processo de falsificação de memória, sendo denominadas FM espontâneas e FM sugeridas.
São, enfim, as falsas memórias (FM), elementos prejudicadores da concepção de que uma pessoa possui em relação aos eventos que, de alguma forma, (não) foi capaz de ter contato ao longo de sua existência.
A título de exemplo de casos de falsas memórias, pode-se narrar a cotidiana situação de uma pessoa que possui plena certeza que deixou seus óculos dentro do estojo, sobre a cômoda de seu quarto. Entretanto, quando essa mesma pessoa vai em busca de seu óculos no local em que, nos termos de sua memória, havia deixado o utensílio, não o encontra. Tal situação evidencia a ocorrência de uma falsa memória espontânea, onde o indivíduo, através de uma distorção mental endógena, concebe a realidade do passado de forma diversa da que realmente ocorreu (STEIN, 2010, p. 25).
Outro caso de falsas memórias que pode demonstrar sua ocorrência durante o cotidiano, decorre de situações em que a pessoa está em iminente dispersão de atenção e, após algum tempo, é chamada a rememorar os fatos. Aqui, pode-se recorrer ao exemplo de alguém que chega após seu expediente de trabalho com diversas sacolas de compras em frente à porta de seu apartamento e dividindo a atenção entre o ato de acender a luz, achar no molho a respectiva chave da fechadura, de evitar pisar no vaso de plantas localizado ao lado da porta e, ainda, de manter as compras nas mãos. Ocorre que, no outro dia, pela manhã, o síndico do prédio informa ao nosso personagem que a mencionada planta foi quebrada e questiona se foi ele (o personagem) quem causou o dano. Inicialmente, nosso exemplo reluta e afirma, ainda, que foi extremamente cuidadoso para não esbarrar na folhagem. Todavia, após alguns argumentos apresentados pelo síndico, a pessoa passa a acreditar que é, sim, responsável pela danificação no objeto.
Tem-se, na descrição acima, um exemplo de falsa memória sugerida.
Em relação ao processo penal e, em específico, ao reconhecimento de pessoas ou coisas, a ocorrência de falsas memórias é algo que, sim, pode ocorrer, sobretudo considerando o fato de que, no procedimento em estudo, existe um questionamento direto e objetivo da vítima do delito para que, diante da perfilação de mais de um suspeito, aponte quem foi a pessoa que lhe causou ofensa.
Nesse ponto, surge a questão: é possível acreditar na vítima?
Não há como negar que a vítima chega ao processo diante de uma ampla carga sentimental, delineada, basicamente, por duas principais linhas, que são a pretensão de ver punida a pessoa que lhe causou o mal e o receio de se deparar, novamente, com o indivíduo que lhe causou traumas graves, como, por exemplo, violações sexuais, lesões corporais graves, ameaças, etc.
Daí, então, surge a necessidade de que se busque, através dos meios previstos no Código de Processo Penal, minimizar o risco da ocorrência de uma falsa memória na vítima ou na testemunha que procede com o reconhecimento.
A esse respeito, como já abordamos no tópico “2”, surge a imperativa necessidade de que, no ato de reconhecimento, serem colocados pessoas semelhantes a descrição previamente declarada pela vítima ou pela testemunha.
Através de tal sistemática, visou o legislador – com inteligência, ao nosso sentir – reduzir a indução da vítima ou da testemunha acerca de um reconhecimento errôneo e praticado mediante o enquadramento artificial da memória do reconhecedor com a imagem que lhe apresentada.
Imaginemos o exemplo de uma situação em que ocorreu um crime de sexual[11] onde a vítima é arrebatada em meio a um ambiente de pouca luminosidade, na penumbra, por um homem que a mesma descreveu na ocorrência policial como sendo caracterizado por uma altura aproximada de 1,80m e cabelos compridos até o ombro. A descrição é genérica, pois, tendo em vista a falta de condições de visibilidade e o momento extremo da consumação do crime a vítima não pode apreender maiores informações visuais sobre o agente do crime.
Assim, no ato de reconhecimento, deverão ser ombreados suspeitos que, preferencialmente, ostentem as características indicadas pela vítima, sob pena de ocorrer um incontestável processo de indução de sua memória ao atribuir a imputação aquele que mais se aproxima da configuração alojada em sua mente e previamente descrita.
Ao defrontar-se com mais de uma pessoa adequada ao padrão estético que anteriormente descreveu, a vítima ou a testemunha pode, diante disso, identificar em meio aos perfilados aquele que possui maior similitude com sua memória, minimizando, assim, os riscos de atribuir a pessoa errada a autoria do delito.
Em caso contrário, ou seja, se for colocada, deliberadamente, apenas uma pessoa com as características descritas, ocorrerá um natural processo mental de identificação da vítima ou da testemunha com a única pessoa que se mostre compatível com as linhas descritivas preteritamente elencadas pelo reconhecedor, caso em que, surgirá uma inegável possibilidade da ocorrência de uma falsa memória sugerida, eis que através de um estímulo externo a pessoa (vítima/testemunha) compreenderá que, de fato, lembra da situação, quando, na verdade, apenas adequou a amostra momentânea da realidade à sua expectativa mnêmica (STEIN, 2010, p. 25).
Sobre o tema, o físico Leonard Mlodinow no livro intitulado Subliminar: como o inconsciente influencia nossas vidas afronta a questão de forma científica e esclarecedora. Ao tratar dos temas lembrança e esquecimento o cientista pondera sobre os equívocos ocorridos em testemunhos prestados por vítimas ou testemunhas em processos criminais. Relata o autor que, pasmem, em 20 a 25 % das vezes as testemunhas fazem uma escolha em que a polícia sabe ser incorreta, uma vez que o procedimento de reconhecimento é feito sem a observância do perfilamento de pessoas semelhantes ao suspeito principal o que, portanto, induz à indicação. (MLODINOW, 2013, p. 67).
Mlodinow nos dá, ainda, o exemplo de uma jovem chamada Jennifer Thompson, a qual asseverou categoricamente ter sido estuprada por determinado homem, chamado Ronald Cotton, simplesmente em razão de que o mencionado suspeito trabalhava num restaurante próximo ao apartamento da vítima (local do crime), por ter ele antecedentes criminais, pelas características físicas de Ronald serem compatíveis com a descrição de Jennifer à Polícia mas, sobretudo, em razão de o reconhecimento ter sido considerado como a prova capital do processo, acima, inclusive, dos testes periciais de seu cabelo e de seus fluídos vaginais, os quais sequer foram inicialmente realizados.
Ocorre que, meses após ter sido condenado à prisão perpétua, Cotton, ao trabalhar na cozinha da prisão, conheceu Bobby Poole, homem que guardava semelhança física com Ronald (e, portanto, com a descrição de Jennifer) e que cumpria pena pelo crime de estupro. Daí, então, ao indagar Poole sobre seus crimes, Cotton ouviu de seu companheiro de prisão a confissão (em tom de autoproclamação) sobre o estupro de Jennifer. Com a confissão feita na penitenciária, foi realizado novo julgamento a pedido de Cotton (algo que, no Brasil, seria uma revisão criminal) e Jennifer, comparando de modo presencial e simultâneo as figuras de Poole e Cotton, reafirmou ser o último o culpado pelo estupro que sofreu.
Persiste Mlodinow, expondo o desfecho do caso, no sentido de que após sete anos da reavaliação do caso de Ronald Cotton, o material coletado de Jennifer na noite do crime pode ser, finalmente, comparado com o de Poole e, assim, reconhecida a inocência de Cotton.
A questão toda se dá, sem dúvidas, em razão de que a partir do momento em que a vítima ou testemunha se depara com uma pessoa meramente semelhante às linhas gerais captadas por sua memória, ocorre uma inevitável adequação da figura às lembranças e, então, após alguns dados complementares – como, por exemplo, a informação de que o suspeito já cumpriu pena ou possui antecedentes criminais – vem a (falsa) certeza da imputação.
Novamente nos valemos da lição de Mlodinow (2013, p. 67) para caracterizar a situação, sendo que o autor utiliza-se do exemplo do caso de Jennifer Thompson para retratar a problemática do reconhecimento falho:
Na verdade, estudos experimentais nos quais pessoas são expostas a falsos crimes sugerem que, quando o verdadeiro culpado não está presente, mas da metade faz exatamente o que Jennifer Thompson: escolhem alguém de qualquer forma, selecionando a pessoa que mais se aproxima da lembrança que têm do criminoso. Como resultado dessas questões, identificações falsas de testemunhas parecem ser a principal causa de condenações indevidas.
A preocupação acerca da (ausência de) credibilidade da palavra da vítima é algo que, há muito, desafia discussões junto à doutrina e aos Tribunais. A questão se revela melindrosa, ao passo que não se pode, de plano, desprezar que a vítima conhece (e muito) a relação passada no ato do crime e seus contornos aparentes, uma vez que é, após o autor do crime, o primeiro ser que conhece da infração penal.
Contudo, por outro lado, surge a noção de que o ofendido, por estar em situação de extrema e incomum atividade mental, não se encontra em seu juízo normal no momento da aferição do delito. Via de regra, qualquer pessoa que se encontre sob a coação de uma arma de fogo, de uma arma branca, de um pedaço de madeira, enfim, que esteja diante de uma grave ameaça à sua integridade física ou, ainda, sob o intuito de evitar o acontecimento do crime[12], compreenderá a situação de uma maneira peculiar e, geralmente, sem a acepção necessária para gerar um relato seguro ao processo penal.
O Innocence Project[13], grupo de estudos filiado à Escola de Direito Benjamin Cardozo, situada em Nova Iorque, Estados Unidos, e que foca na análise de casos de condenações de inocentes, salienta que o reconhecimento do acusado através da vítima é responsável pela maior parte dos “erros judiciários”, algo em torno de 75 %.
Segundo a percepção dos pesquisadores, o “Eyewitness Misidentification” (testemunho ocular equivocado) é a principal causa de condenações injustas dos Estados Unidos, posto que derivam de relatos de testemunhas oculares, provas essas que, perante o Juiz ou perante o Júri, são persuasivas e induzem a julgamentos regulares, porém, após a comparação com dados genéticos ou demais provas, apresentaram-se equivocados.
Daí, então, porque, muito embora a palavra da vítima ou da testemunha mereça ser valorada em meio ao processo, para que haja um mínimo de certeza na condenação do acusado é necessário mais do que a mera afirmação. É fundamental que exista a evidenciação concreta acerca da indicação da vítima, sendo a verificação (con)formada além do mero “sim” ou “não”. Deve a vítima ou testemunha revestir a indicação de maiores detalhes, tais como gestos ou atitudes do autor do fato, detalhes peculiares (cicatrizes, falhas no couro cabeludo, deficiências físicas, etc.) ou, complementarmente, detalhes como o uso de determinada roupa ou artefato (joias, roupa íntima, óculos) os quais podem fomentar buscas e apreensões.
Não há dúvidas de que um detalhamento tão rico, em grande parte dos casos, é algo inviável, em razão de condições que fogem do domínio do ofendido – ou dos que presenciam o delito – e que atribulam sua percepção, tais como a baixa luminosidade, a rapidez do ato ou, ainda, o extremo pavor nos crimes de grave ameaça. Todavia, não obstante tais situações, é essencial que a investigação proceda com a maior extração possível de detalhes contidos na memória do reconhecedor, ao passo que pequenas caracterizações podem, efetivamente, determinar a culpa ou a inocência do suspeito e, consequentemente, sua condenação ou sua absolvição.
O que não se pode, de fato, é manter um padrão objetivo no reconhecimento, meramente estratificado na indicação simples e peremptória da vítima ou da testemunha, sem que se proceda com qualquer tipo de verificação complementar, porquanto tal mecanismo é, evidentemente, carente de um nível mínimo de credibilidade, suficiente para formar um seguro juízo de convicção, quer seja para o Juiz togado, quer seja para o Júri/Conselho de Sentença.
BIBLIOGRAFIA
CAPEZ, Fernando. Curso de Processo Penal. 13ª ed. rev. e atual. Saraiva. São Paulo, 2006.
GRECO FILHO, Vicente. Manual de Processo Penal. 8ª ed. rev. atual. e ampl. Saraiva. S
LOPES JR, Aury. Direito Processual Penal e Sua Conformidade Constitucional. 8ª edição. Lumen Juris. Rio de Janeiro, 2011.
________. Sistemas de Investigação Preliminar no Processo Penal.Lumen Juris. Rio de Janeiro. 2001.
MLODINOW, Leonard. Subliminar: Como o inconsciente influencia nossas vidas. Zahar. Rio de Janeiro. 2013.
NUCCI, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal Comentado. 6ª edição revista, comentada e ampliada. Revista dos Tribunais. São Paulo, 2007.
OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de Processo Penal. 7 ed. rev. atual. e ampl. Del Rey. Belo Horizonte, 2007.
RIOS, Dermival Ribeiro. Dicionário prático da língua portuguesa. Difusão Cultural do Livro. São Paulo, 1997.
STEIN, Lilian Milnitsky et. al. Falsas Memórias: fundamentos científicos e suas aplicações clínicas e jurídicas. Artmed. Porto Alegre, 2010.
Notas
[1] Trata-se de compreender que só reconhece quem, no pretérito, conheceu de algo.
[2] LOPES JR., Aury. Sistemas de Investigação Preliminar no Processo Penal.Lumen Juris. Rio de Janeiro. 2001, p. 127.
[3] No início da década de 40.
[4] Nesse sentido, vide Apelação Crime Nº 70052962180, do TJRS.
[5] Sobre o tema das falsas memórias, trataremos de maneira mais detida no tópico 5 do presente estudo.
[6] Nestes termos: “Art. 185. O acusado que comparecer perante a autoridade judiciária, no curso do processo penal, será qualificado e interrogado na presença de seu defensor, constituído ou nomeado. […]§ 2o Excepcionalmente, o juiz, por decisão fundamentada, de ofício ou a requerimento das partes, poderá realizar o interrogatório do réu preso por sistema de videoconferência ou outro recurso tecnológico de transmissão de sons e imagens em tempo real, […]” (GRIFAMOS)
[7] Art. 564. A nulidade ocorrerá nos seguintes casos: […] IV - por omissão de formalidade que constitua elemento essencial do ato.
[8] Importante atentar para esse ponto, relativo ao fato de que as pessoas expostas para o reconhecimento por foto serão, por lógico, somente aquelas que já foram capturadas ou se dispuseram a comparecer nas Delegacias de Polícia. A grande questão, aqui, é que a indicação de apenas um nicho de figuras se apresenta como um prejuízo para a produção do ato de reconhecimento, ao passo que (pré)induz a testemunha ou a vítima a focar apenas no rol de imagens apresentada, fato esse que causa na mente do reconhecedor novas linhas de memória e o conduz, em muitos casos, a substituir uma imagem real que existe em sua memória por outra similar. Todavia, como se sabe, num processo penal não basta que haja a mera “similaridade”, pois a semelhança não representa algo certo, mas, sim, aproximado, qualidade essa que não serve – e não deve servir – para embasar, sequer, um juízo de indiciamento.
[9] Profissionais que, via de regra, desempenham com afinco o encargo que lhes é atribuído mas que possuem naturais limitações a atuação em relação ao mérito, na medida em que não possuem qualquer contato com o réu ou o tem de forma ocasional.
[10] Sobre o conceito de provas, competente é a descrição de Vicente Greco Filho (2010, p. 186), que afirma que “a prova é todo o meio destinado a convencer o juiz a respeito da verdade de uma situação de fato.”. Persiste o renomado doutrinador, em trecho subsequente, afirmando que “A finalidade da prova é o convencimento do juiz, que é seu destinatário. No processo, a prova não tem um fim em si mesma, ou um fim moral ou filosófico; sua finalidade é prática, qual seja, convencer o juiz.”.
[11] Usa-se, aqui, o exemplo de crime sexual, eis que tais delitos ocorrem comumente sem a presença de testemunhas.
[12] Pode-se visualizar situação como esta nos casos de, por exemplo, furto ou roubo, em que o dono do patrimônio pretende reagir a ação do criminoso.
[13] http://www.innocenceproject.org/
[14] Termo que pode ser compreendido, em livre tradução, como sendo um “testemunho ocular equivocado”.