A (DIS)FUNÇÃO PROBATÓRIA DO RECONHECIMENTO
Previsto no artigo 226, do CPP, o Reconhecimento de Pessoas ou Coisas está inserido no título reservado às provas do Processo Penal e tem por finalidade precípua a identificação de um suspeito ou de um objeto através da palavra da vítima ou das testemunhas.
Nas palavras de Guilherme de Souza Nucci (2007, p. 473), reconhecimento “é o ato pelo qual uma pessoa admite e afirma como certa a identidade de outra pessoa ou a qualidade de uma coisa.”.
Segundo prescreve Aury Lopes Júnior (2011, p. 667) “O reconhecimento é um ato através do qual alguém é levado a analisar alguma pessoa ou coisa e, recordando o que havia percebido em um determinado contexto, compara as duas experiências.”.
Como bem afirma o douto jurista gaúcho, o termo “reconhecer” trata-se, partindo-se de um conceito puramente literal e ortográfico emanado por Dermival Ribeiro Rios (1997, p. 452), de “Conhecer uma pessoa ou coisa ao tornar a vê-la; Verificar a identidade por algum sinal; Afirmar a autenticidade.”.
Partindo-se de tal concepção, denota-se que o ato de reconhecimento de pessoas ou coisas possui um caráter de inflexibilidade em relação a quem deve figurar em sua parte ativa (reconhecedor) e em sua parte passiva (reconhecido).
Por suposto, considerando a necessidade de haver um reconhecimento, ou seja, uma recognição de algo que já se presenciou no tempo passado, a posição de reconhecedor ficará adstrita somente às pessoas que são concebidas como hipotéticas vítimas da infração penal apurada e, também, às eventuais testemunhas diretas que presenciaram o cometimento do delito.
No polo passivo do ato, ou seja, na condição de reconhecido, estará presente a pessoa suspeita de ser agente do delito apurado e/ou as coisas utilizadas para o ato e/ou aquelas que foram subtraídas, em casos de crimes que envolvam o patrimônio.
Por elementar que o caráter restritivo que se evidencia nas figuras do reconhecedor e reconhecido dá-se em razão do lógico entendimento de que, apenas quem esteve, no passado, envolvido no enredo do delito (quer seja como vítima ou testemunha), pode atestar quem e/ou quê compôs a cena do crime[1].
Tal modalidade indiciária/probatória pode acontecer tanto no período das investigações preliminares, quanto na fase instrutória do processo penal, bem como pode ocorrer, cumulativamente, em ambas as fases, sendo considerada pela ampla maioria da doutrina como indício na fase inquisitória e prova na fase processual.
Entretanto, para além das margens teóricas que revestem o instrumento (pré-)probatório em comento, pensamos ser indispensável que se proceda com uma avaliação sucinta em relação a como o reconhecimento de pessoas ou coisas é levado a efeito em diversas situações da vida prática (policialesca e forense).
De início, é essencial ressaltar que, por se tratar de uma prova intimamente dependente de (pre) conceitos oriundos da mente humana, o legislador, ao elaborar em nosso Código de Processo Penal a sistemática referente ao reconhecimento de pessoas ou coisas buscou afastar ao máximo a possibilidade de, sobretudo, ocorrer eventual equivoco na indicação do suspeito.
Para tanto, dentre outras diligências, fez constar expressa referência de que “a pessoa que tiver de fazer o reconhecimento será convidada a descrever a pessoa que deva ser reconhecida.” (art. 226, I, do CPP), medida essa que busca impedir que exista uma deliberada e falsa indicação do reconhecedor a reconhecido que, evidentemente, não se alinhe às características realmente existentes (ou, no mínimo, expostas) na mente da vítima ou da testemunha.
Além disso, o protocolo legal reservado à formação do (a) indício/prova ora analisado (a) prevê a colocação de pessoas semelhantes perfiladas ao principal suspeito (art. 226, II, do CPP), no momento do reconhecimento, previsão essa que busca, evidentemente, evitar a indução do reconhecedor a atrair-se pela figura da pessoa que seja mais conformada às suas linhas mentais.
Ocorre que, na prática, tais prescrições não vêm sendo cumpridas de maneira integralmente fiel.
Exemplo claro disso surge a partir da “criação” da modalidade do reconhecimento de pessoas através de fotografias, sobretudo no âmbito policial, na fase inquisitiva. Funciona da seguinte maneira: após ser considerada vítima ou testemunha de determinada infração penal, a pessoa assim entendida dirige-se até o Distrito Policial responsável pela investigação do crime; Lá chegando, lhe é disponibilizado um estoque de imagens (geralmente virtuais) de pessoas que já foram anteriormente capturadas e criminalmente identificadas, para que, com base nesse (restrito) rol de aparências, a testemunha possa “reconhecer” quem tenha, segundo sua lembrança, cometido a infração penal; Em caso positivo, é procedida a lavratura de um “auto de reconhecimento”, onde constará uma declaração firmada pelo reconhecedor e, ao lado, a fotografia do suspeito, da forma como foi apresentada à testemunha, bem como uma descrição oficial do modo como foi feita a recognição, sendo que tal documento passará a integrar os autos do inquérito/processo e, consequentemente, ser considerado(a) indício/prova válido(a).
Contudo, afastando-se da utilitária visão empregada nessa inusitada sistemática, é inegável que tal protocolo de reconhecimento delira das prescrições legais, fato esse que corrompe, no mínimo, sua legitimidade perante o prisma do princípio da legalidade.
Mais do que isso, a questão central da preocupação reside na palpitação de uma dúvida, traduzida na (in)certeza a que tal prova (?) passa a propiciar para o processo penal, eis que formada mediante a ausência de qualquer amparo legal e/ou científico que lhe sustente o cabimento ou a segurança.
Com efeito, a partir do momento em que se percebe a efetiva negligência legal no trato prático com o meio de prova do reconhecimento de pessoas ou coisas, é necessário questionar-se se tal mecanismo de demonstração é funcional ou disfuncional ao processo penal, vez que, sem dúvidas, o desleixo com a aplicação da lei penal, no caso, é capaz de dar margens a diversos problemas, como, por exemplo, a ocorrência de uma nulidade e, acima de tudo, do processamento, aprisionamento cautelar e eventual condenação de pessoa que não possuía qualquer vinculação com o real cometimento do delito.
De tal sorte, considerando a complexidade de alguns pontos importantes a serem considerados em relação ao tema do presente estudo, reservaremos a análise de questões específicas nos tópicos seguintes, sendo que a avaliação de cada uma dessas é fundamental para que se compreenda de maneira mais coerente e responsável a real importância desse meio de prova perante o processo penal moderno, bem como acerca dos (d)efeitos negativos que o descuido de sua aplicação pode causar, não só para o acusado, mas para toda a sociedade.
DA (DES)NECESSIDADE DE (SE POSSÍVEL) SEREM ALINHADAS PESSOAS SEMELHANTES AO SUSPEITO PRÉ-INDIC(I)ADO: COLOCANDO O (AB)USO DA EXCEPCIONALIDADE EM SEU DEVIDO LUGAR
Como dito, o art. 226, do Código de Processo Penal possui em seu teor as regras necessárias para que se perfecibilize o ato em que a vítima ou as testemunhas do delito apurado atribuirão à determinada pessoa a autoria do fato ou, ainda, que indicarão em meio às coisas apreendidas aquela que possui algum tipo de conexão com o ato criminoso.
Para que melhor se entenda o mencionado dispositivo, transcrevemos seu inteiro teor. Assim:
Art. 226. Quando houver necessidade de fazer-se o reconhecimento de pessoa, proceder-se-á pela seguinte forma:
I - a pessoa que tiver de fazer o reconhecimento será convidada a descrever a pessoa que deva ser reconhecida;
II - a pessoa, cujo reconhecimento se pretender, será colocada, se possível, ao lado de outras que com ela tiverem qualquer semelhança, convidando-se quem tiver de fazer o reconhecimento a apontá-la;
III - se houver razão para recear que a pessoa chamada para o reconhecimento, por efeito de intimidação ou outra influência, não diga a verdade em face da pessoa que deve ser reconhecida, a autoridade providenciará para que esta não veja aquela;
IV - do ato de reconhecimento lavrar-se-á auto pormenorizado, subscrito pela autoridade, pela pessoa chamada para proceder ao reconhecimento e por duas testemunhas presenciais.
Parágrafo único. O disposto no no III deste artigo não terá aplicação na fase da instrução criminal ou em plenário de julgamento. (GRIFO NOSSO)
Dentre as primeiras impressões evidenciadas a partir da leitura do art. 226, inicialmente, é possível verificar que o procedimento definido no dispositivo direciona-se não só ao processo penal em sua fase de dilação probatória (instrução). Com efeito, as noções estabelecidas pelo nominado artigo devem ser aplicadas, também, na fase de investigação preliminar. Ou seja: considerando que em nosso sistema a investigação preliminar é definida pela legislação processual como o inquérito policial[2], as disposições do art. 226 tem imperiosa aplicação também na fase inquisitiva do art. 4º e seguintes do CPP.
Dessa forma, ao ser iniciada a investigação preliminar através do inquérito, em havendo a necessidade de ser providenciado qualquer tipo de reconhecimento de pessoas ou coisas por parte da suposta vítima e/ou das testemunhas, é essencial que sejam respeitadas as fases previstas no art. 226, do CPP. E tal respeitabilidade deve atender não só ao cumprimento total e eficiente de todos os paradigmas dispostos nos incisos do mencionado artigo, mas, também – e preponderantemente – à sucessividade da metodologia, em verdadeira ordem cronológica.
Assim sendo, inicialmente, para que se repute válido o reconhecimento (seja no âmbito do inquérito policial ou na instrução do processo penal), é necessário que sejam seguidos os seguintes passos, os quais serão, por fins didáticos, elencados em alíneas:
- Inciso I: A pessoa que tiver de fazer o reconhecimento será convidada a descrever a pessoa que deva ser reconhecida – É o primeiro ato a ser providenciado. Nas infrações em que inexistir flagrante delito ou não se evidenciar qualquer indício pré-concebido (filmagem, fotografia, desenho, etc.) deverá a autoridade lavrar termo pormenorizado acerca dos traços físicos/estéticos do suposto autor do fato indicadas pela vítima e/ou testemunha , devendo ser, ao fim, tal documento, firmado pela pessoa declarante. Com base nessa caracterização que será possível a identificação de um ou mais suspeitos, os quais serão ombreados no ato definido no inciso II.
- Inciso II: A pessoa, cujo reconhecimento se pretender, será colocada, se possível, ao lado de outras que com ela tiverem qualquer semelhança, convidando-se quem tiver de fazer o reconhecimento a apontá-la – Esse é o apogeu do procedimento. Nesse ato, devem ser colocados em linha o(s) suspeito(s) e outras pessoas semelhantes ao(s) acusado(s) para que, em meio à diversidade de figuras esteticamente semelhantes, possa o reconhecedor apontar, com precisão, o indivíduo que, de acordo com suas sinceras lembranças, teria cometido o delito. Importante salientar que a certeza do reconhecedor é critério básico de validade do ato. Pairando dúvida, a credibilidade do ato resta deformada.
- Inciso III: Se houver razão para recear que a pessoa chamada para o reconhecimento, por efeito de intimidação ou outra influência, não diga a verdade em face da pessoa que deve ser reconhecida, a autoridade providenciará para que esta não veja aquela – Na época da elaboração do CPP[3] o reconhecimento foi previsto para ser feito, via de regra, diretamente, estando a hipotética vítima e a testemunha em frente ao suspeito. Todavia, com a conscientização de que a exposição do ofendido perante o delinquente pode, além de ser um ato arriscado, proporcionar algum tipo de abalo no reconhecedor que atribule sua percepção involuntariamente (enganar-se) ou que obste seu interesse em manter a acusação (mentir por medo), a maior parte dos atos de reconhecimento na fase policial acontece sem um contato direto entre o acusado e a pessoa que tem o dever de indicar um autor do fato. São usados os famosos “vidros espelhados” para que não ocorra interação. Já na instrução processual, considerando o fato de que já há um suspeito eleito (já, então, definido como “réu”) e de que o acusado deve exercer irrestrito direito à imediato contraditório e ampla defesa, o reconhecimento se dá de maneira direta e perante o Juiz. Mais do que isso, o Parágrafo Único do inciso, IV, veda o reconhecimento feito de maneira indireta na fase da instrução processual ou no plenário do júri. De tal sorte, na fase processual, deve a suposta vítima ou testemunha indicar o autor do delito perante o próprio suspeito.
- Inciso IV: Do ato de reconhecimento lavrar-se-á auto pormenorizado, subscrito pela autoridade, pela pessoa chamada para proceder ao reconhecimento e por duas testemunhas presenciais – Trata-se de uma determinação peremptória do Código de Processo Penal em relação a inarredável necessidade de que, ao fim do reconhecimento, seja lavrado termo pormenorizando atestando os acontecimentos passados no ato, devendo ser o mesmo, ao fim, firmado pelo reconhecedor, pela autoridade e por duas testemunhas que presenciarem a realização da identificação, sob pena de nulidade do ato. A importância desse registro funciona de modo a impedir que o reconhecimento seja subvertido em sua finalidade ou tenha sua forma alterada, bem como para que haja segurança na voluntária indicação da vítima ou testemunha em relação a esse ou aquele suspeito perfilado.
- Parágrafo Único: O disposto no no III deste artigo não terá aplicação na fase da instrução criminal ou em plenário de julgamento – Intuitiva, a redação do artigo dispensa qualquer tipo de maiores explicações. Simplesmente, define que na fase processual (instrução ou plenário do júri) o reconhecimento tem de ser feito sem qualquer tipo de separação entre o reconhecedor e o reconhecido. A indicação será feita de forma presencial.
Ponto importante a ser destacado na análise ora proposta do art. 226, do CPP, reside em seu inciso II, no que tange a pontuação para o fato de que, no ato do reconhecimento por parte da vítima ou testemunha, se possível, deverão ser colocadas pessoas semelhantes ao lado do suspeito principal, ombreadas a este.
Sem embargo, muito embora considerável corrente jurisprudencial[4] advirta para o fato de que o art. 226, II do CPP referir para que a locução “se possível” indique para um caráter liberatório do evento investigativo em relação a similitude física dos perfilados, é fundamental ter em mente que o comentado trecho não se trata de uma dispensa total da ordem legal, mas sim para uma mitigação da cogência, em caso de extrema impossibilidade, devendo ser tal impossibilidade fundamentada pela autoridade realizadora do ato de forma razoável, através da lavratura do auto previsto no inciso III, do art. 226, do CPP.
Gize-se, que considerando o fato de que a fase policial inadmite a imposição do contraditório, é dever da escala administrativa comprovar a idoneidade dos procedimentos por ela gerados, pois, caso assim não se faça, a sonegação das garantias processuais penais (tanto para a acusação quanto para a defesa) é presumida.
Para além de mera simbologia, a necessidade de pareamento de suspeitos enquadrados à retratação formulada pela (sedizente) vítima em momento anterior funciona como uma forma de dotar a situação de imparcialidade e, ainda, de evitar o acondicionamento do raciocínio do ofendido reconhecedor a acusar aquele que mais se aproxima dos caracteres físicos por ele elencados na descrição prevista no inciso I, do art. 226, do CPP.
Trata-se, de fato, de evitar fomentar qualquer tipo de estimulação do reconhecedor a desenvolver uma Falsa Memória sugerida[5], eis que, efetivamente, a apresentação de apenas um suspeito que se enquadre nas características previamente elencadas pela vítima ou testemunha favorece – e muito – a (de)formação de uma ilusão mental baseada em mera semelhança e, não, em efetiva certeza do reconhecimento.
Nessa esteira, como já explicado, inobstante a legislação contemple a possibilidade extraordinária de o reconhecimento ser prescindido do pareamento de indivíduos semelhantes, há que se reputar que tal situação apenas é cabível ante a inexistência de pessoas parecidas ou dispostas a serem alinhadas para análise, devendo tal situação ser fundamentada pela autoridade policial no respectivo auto, posto que, enquanto excepcional, em forma analógica a diversas previsões que advertem para a necessidade de motivação expressa em casos de métodos extraordinários, como, i.e., o art. 185, § 2º do CPP[6], é necessário que haja fundamentação que sustente sua (in)aplicabilidade ao caso concreto.
Sem embargo, no que se refere aos critérios das nulidades no processo penal, a questão do reconhecimento produzido sem a observância dos preceitos impostos pelo art. 226, do CPP – inclusive em relação ao perfilamento de pessoas semelhantes ou a razoável justificativa da impossibilidade –, é manifestamente nulo, com base no art. 564, IV do CPP[7].
Ora, se a prescrição legal é peremptória ao definir a metodologia de realização do reconhecimento, é necessário que os preceitos estampados no Código de Processo Penal sejam respeitados, pois, acima de meros padrões burocráticos, os fundamentos legais respeitam uma sequência lógica – praticamente cientifica – da realização de um processo penal razoável.
Sem receios, no processo penal, qualquer tipo de disparate entre o ato realizado e a definição legal redunda, logicamente, na redução das garantias, quer seja do acusador, quer seja do acusado.
Não se pode jamais esquecer que o baluarte do direito penal (material e processual) é o princípio da legalidade, o qual, em sua dorsal essência, preconiza que a pedagogia anti-criminal deve ser realizada de modo único e exclusivo sobre os trilhos dos paradigmas legais.
Dessa maneira, para que inexista qualquer tipo de irregularidade formal, reputamos que há, sim, a imprescindível necessidade de que sejam integralmente observados os referenciais determinados no art. 226, pois, além da necessária homenagem ao princípio da legalidade, o modelo metodológico definido do comentado dispositivo atende positivamente a padrões científicos, como, por exemplo, a ausência de indução do reconhecedor a indicar o sujeito que mais se aproxima das características anteriormente descritas (inciso II) e a não exposição da vítima ou testemunha a proceder com o reconhecimento perante a presença livre do suspeito em casos em que a pessoa se sinta ameaçada com a presença do hipotético autor do fato (inciso III).
O RECONHECIMENTO DE PESSOAS ATRAVÉS DE FOTOGRAFIAS E A LESÃO AO DIREITO DE INATIVIDADE DO SUSPEITO NO (PRÉ)PROCESSO PENAL
Na atual conjuntura verificada na fase pré-processual do processo penal brasileiro, não raro nos deparamos, na prática, com um procedimento alternativo de reconhecimento de pessoas, o qual se dá a partir da exposição de imagens de suspeitos na tela de um computador, onde a suposta vítima e/ou a(s) testemunha(s) analisa(m) a(s) figuras dos indivíduos ali exposto(s).
A esse respeito, muito tem se discutido acerca da (in)validade probante deste versátil mecanismo, sendo que doutrina e jurisprudência divergem contundentemente sobre o tema.
Existem dois posicionamentos, evidentemente antagônicos. A saber:
a) o primeiro, julga ser impossível deferir credibilidade a uma visualização meramente fotográfica para a efetivação de um reconhecimento válido, pois, para além de estrondosa irregularidade formal, tal método inviabiliza uma qualificada percepção nocional das testemunhas analistas, prejudicando, assim, a finalidade do ato. Nessa linha, adverte Aury Lopes Júnior (2011, p. 670) que o reconhecimento fotográfico é intoxicado de um latente caráter de inadmissibilidade:
Exemplo típico de prova inadmissível é o reconhecimento do imputado por fotografia, utilizado, em muitos casos, quando o réu se recusa a participar do reconhecimento pessoal, exercendo seu direito de silêncio (nemo tenetur se detegere). O reconhecimento fotográfico somente pode ser preparatório do reconhecimento pessoa, nos termos do art. 226, inciso I, do CPP, nunca como um substitutivo àquele ou como prova inominada.
b) O segundo, reputa que o reconhecimento levado a efeito partir da visualização fotográfica por parte da sedizente vítima ou das supostas testemunhas é digno de admissibilidade probante, diante da inexistência de qualquer especificação formal dos meios de prova em nosso processo penal. Exemplo da adoção desse raciocínio está em Fernando Capez[2] (2006, p. 347):
[…] doutrinariamente forçoso é concluir que o reconhecimento fotográfico (com evidente cautela) constitui, na realidade, mais uma das provas inominadas. No entanto, convém ressaltar que o reconhecimento fotográfico, isoladamente (sem outras provas), não pode ensejar uma sentença condenatória.
No mesmo pavimento, assevera Eugênio Pacelli de Oliveira (2007, p. 366):
O reconhecimento fotográfico não poderá, jamais, ter o mesmo valor probatório do reconhecimento de pessoa, tendo em vista as dificuldades notórias de correspondência entre uma (fotografia) e outra (pessoa), devendo ser utilizado este procedimento somente em casos excepcionais, quando puder servir como elemento de confirmação das demais provas. Há decisões na Suprema Corte admitindo o reconhecimento fotográfico (RT 739/546)
Perante a celeuma doutrinaria ora em reverência, raciocinamos em via congruente ao do primeiro entendimento, no sentido de que o reconhecimento feito através da averiguação de imagens fotográficas é inoportuno ao processo penal, sendo patente sua integral inadmissibilidade, ante a manifesta lesão que esta prática provoca ao direito de inatividade processual do acusado (nemo tenetur se detegere).
Todavia, não se pode negar que pode ser admitida a utilização de fotografias para que seja estabelecido um modelo prévio de reconhecimento, no sentido de que, com base nas imagens visualizadas, a vítima ou a testemunha delineie as características do suspeito para que, posteriormente, seja procedida a competente verificação presencial, nos termos estabelecidos no art. 226, do CPP.
Com efeito, afora de qualquer tipo de resistência pragmática a uma forma de reconhecimento não previsto na legislação processual penal, consideramos que a imputação formal de um suspeito através de uma simples fotografia compromete a segurança jurídica do ato, ao passo que a exposição de imagens estáticas de diversas pessoas semelhantes pode, sem sombra de dúvidas, embaralhar a consciência de uma já traumatizada vítima (ou testemunha) e dar margem à eventual indicação equivocada de um indivíduo que, não obstante já possuir passagens nos protocolos policiais[8], pode não ter concorrido na infração penal apurada.