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Aspectos relevantes acerca do reconhecimento de pessoas ou coisas segundo o Código de Processo Penal e sua aplicação prática

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DO PROCEDIMENTO DE RECONHECIMENTO EM AUDIÊNCIA OU EM PLENÁRIO DO TRIBUNAL DO JÚRI

O Código de Processo Penal, na regulamentação do reconhecimento de pessoas em audiência ou no Plenário do Tribunal do Júri, traz apenas uma especificidade, consistente na inaplicabilidade do inciso III de seu artigo 226, que permite a utilização de artifício para impedir que o acusado, durante o ato de reconhecimento, consiga visualizar a testemunha ou o ofendido, causando-lhe intimidação ou outra influência.

Relegada a crítica à exceção para momento oportuno, verifica-se, prontamente, que a referida regra, contida no parágrafo único do artigo 226, impõe uma conclusão lógica, obtida a contrario senso: as demais formalidades previstas nos incisos I, II e IV do artigo 226 devem ser, obrigatoriamente, observadas no reconhecimento realizado em audiência ou em plenário.

A conclusão é reforçada pelo fato de o artigo 226, caput, não distinguir o reconhecimento realizado na fase pré-processual daquele realizado em juízo, trazendo uma regulamentação uniforme para os dois casos, salvo a excepcionalidade contida em seu parágrafo único. Ora, como se extrai da teoria geral do Direito e do disposto no artigo  11, inciso III, da Lei Complementar n. 95 de 1973, os incisos e parágrafos estão interrelacionados com o caput do artigo, que serve como vetor interpretativo.

Desse modo, por respeito ao devido processo legal (CRFB/88, art. 5º, LIV - “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”), quando houver a necessidade de se realizar o reconhecimento de pessoas em audiência ou em Plenário, deverão ser observadas as formalidades previstas no artigo 226, incisos I, II e IV do Código de Processo Penal, sob pena de a prova ser considerada ilícita e, portanto, inutilizável para a formação da convicção do julgador.

Todavia, embora a clareza da regra dispense maiores digressões interpretativas, a jurisprudência de nossos Tribunais Superiores se formou em sentido contrário, sendo posição dominante no Supremo Tribunal Federal e no Superior Tribunal de Justiça a concepção que reputa que o reconhecimento realizado em juízo prescinde das formalidades previstas no artigo 226 do Código de Processo Penal, já que realizado sob o crivo do contraditório.

Indo por tal enfoque, assim pontuou o Superior Tribunal de Justiça, ao julgar o AgRg no Ag nº. 972.072/SC, afirmando que a instrução processual, por sua própria natureza contraditória, prescinde da formalidade do reconhecimento, afastando eventual defeito procedimental em razão da inobservância do ritual previsto no art. 226. Assim:

PENAL. AGRAVO REGIMENTAL. ALEGAÇÃO DE NULIDADE NO ATO DE RECONHECIMENTO DO ACUSADO. IMPROCEDÊNCIA. PEDIDO DE ABSOLVIÇÃO. EXAME APROFUNDADO DAS PROVAS. VEDAÇÃO NA VIA ELEITA. CIRCUNSTÂNCIAS JUDICIAIS DESFAVORÁVEIS. PENA-BASE FIXADA ACIMA DO MÍNIMO LEGAL. REGIME MAIS GRAVOSO. POSSIBILIDADE.

1. Não se proclama a existência de nulidade do ato de reconhecimento do agravante, visto que sua condenação está amparada em idôneo conjunto fático-probatório, notadamente nos depoimentos prestados na fase judicial, impondo-se notar que o reconhecimento realizado com segurança pelas vítimas, em juízo, sob o pálio do contraditório, prescinde das formalidades previstas no artigo 226 do Código de Processo Penal.

2. A análise do pedido de absolvição por falta de provas demandaria o exame aprofundado das provas, providência incompatível com a via estreita do recurso especial.

3. Havendo circunstâncias judiciais negativas a recomendar o regime mais gravoso, mostra-se correta a estipulação do regime fechado, de acordo com o que preceitua o art. 33, §§ 2º e 3º, do Código Penal.

4. Agravo regimental a que se nega provimento.

(AgRg no Ag 972.087/SC, Rel. Ministro PAULO GALLOTTI, SEXTA TURMA, julgado em 26/05/2008, DJe 16/06/2008) (GRIFAMOS)

Alinhado a essa noção, igualmente se pronunciou o Supremo Tribunal Federal, no HC 77.576/RS:

EMENTA: Habeas Corpus. PENAL. PROCESSO PENAL. ÁLIBI. REPRESENTAÇÃO. OITIVA DE TESTEMUNHAS. RECONHECIMENTO DE PESSOAS. FORMALIDADES. REEXAME DA PROVA. 1. É inviável, nos limites do habeas, a verificação da ocorrência de álibi para demonstrar a inocência do paciente. 2. Nos casos de ação penal pública condicionada à representação, é suficiente a manifestação da vítima ou de seu representante legal, no sentido de ver desencadeado o processo. Não se exige formalidades para a representação. 3. A oportunidade para a defesa arrolar testemunhas, é a da defesa prévia (CPP, art. 395). O pedido para ouvir testemunhas em outro momento processual é absolutamente intempestivo. 4. O reconhecimento de pessoas, feito perante o juiz em audiência, é válido como meio de prova. Prescinde das formalidades previstas no CPP, art. 226, eis que ocorrido sob o princípio do contraditório. Ao contrário do que ocorre na fase pré-processual. No inquérito policial sim, deve ser obedecido o disposto no CPP, art. 226, com a lavratura do auto de reconhecimento. 5. O habeas não é meio para a revisão do processo penal. Inviável o reexame de prova no rito especial e sumário que o caracteriza. Habeas Corpus indeferido. (HC 77576, Relator(a):  Min. NELSON JOBIM, Segunda Turma, julgado em 02/02/1999, DJ 01-06-2001 PP-00077 EMENT VOL-02033-03 PP-00473) (GRIFAMOS)

É importante ressaltar que, no julgamento do remédio heroico acima citado, na edificação dos fundamentos que culminaram com a ementa supra exposta, restou vencido o Ministro Marco Aurélio, que menciona, em seu voto, que a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, felizmente, nem sempre se alinhou ao ali decidido, citando o precedente vertido no HC 74.704/SP (DJ 18-05-2001), do qual foi Relator e que tem a seguinte ementa:

COMPETÊNCIA - HABEAS-CORPUS - ATO DE TRIBUNAL DE ALÇADA CRIMINAL. Na dicção da ilustrada maioria, em relação à qual guardo reservas, compete ao Supremo Tribunal Federal julgar todo e qualquer habeas-corpus dirigido contra ato de tribunal, ainda que não possua a qualificação de superior. RECONHECIMENTO - FORMALIDADES - NATUREZA - INOBSERVÂNCIA. As formalidades previstas no artigo 226 do Código de Processo Penal são essenciais à valia do reconhecimento, que, inicialmente, há de ser feito por quem se apresente para a prática do ato, a ser iniciado com a descrição da pessoa a ser reconhecida. Em seguida, o suspeito deve ser colocado ao lado de outros que com ele tiverem semelhança, a fim de que se confirme o reconhecimento. A cláusula "se for possível", constante do inciso II do artigo de regência, consubstancia exceção, diante do princípio da razoabilidade. O vício não fica sanado pela corroboração do reconhecimento em juízo, também efetuado sem as formalidades referidas. Precedentes: habeas-corpus nºs 42.957/GB e 70.936/SP, relatados pelos Ministros Aliomar Baleeiro e Sepúlveda Pertence, perante a Segunda e Primeira Turmas, com arestos veiculados nos Diários da Justiça de 12 de outubro de 1966 e 6 de setembro de 1996, respectivamente. PROVA - ÔNUS - CRIME. Discrepa a mais não poder da ordem jurídica em vigor argumento, em reforço à condenação, no sentido de que as testemunhas da defesa nada souberam esclarecer sobre o crime. Ao Estado-acusador, e somente a este, cumpre desincumbir-se da prova da existência e autoria do crime. SENTENÇA CONDENATÓRIA - FUNDAMENTAÇÃO - INSUBSISTÊNCIA - REVISÃO CRIMINAL - SUPLEMENTAÇÃO. Descabe aduzir, em respaldo ao decreto condenatório, fundamentos a ele estranhos e, portanto, lançados quando do julgamento da revisão criminal. Tratando-se de medida para a qual somente a defesa é legitimada, o acórdão proferido não é passível de servir de suplementação à deficiência, seja de que natureza for, do título judicial revisando. (GRIFO NOSSO)

A principal celeuma estabelecida em relação à (des)necessidade de ser aplicada a fórmula procedimental estocada no art. 226, do CPP, diz respeito ao fato de que, na forma do anteposto, a jurisprudência das cortes Superiores reputam que a imposição do contraditório na fase judicial da investigação penal (instrução processual) torna prescindível o peremptório e solene modo ritualístico previsto no indigitado dispositivo legal especializado.

Entretanto, para além do entendimento atualmente adotado pelas cortes superiores, reputamos equivocada a compreensão que afasta a aplicação do art. 226, do CPP, na fase judicial.

Assim concebemos, em razão de, inicialmente, inexistir qualquer tipo de salvaguarda no teor semântico que estratifica a norma emanada pelo referenciado artigo, objeto do presente estudo.

Efetivamente, ao promovermos uma leitura – quer seja acelerada e leiga, quer seja pormenorizada e técnica – não se vislumbra qualquer expressão que limite a aplicação do dispositivo à fase de investigação preliminar, havendo, pois, plenitude em sua incidência em relação a todo e qualquer ato de reconhecimento a ser realizado durante a integralidade da persecução penal.

 Sem dúvidas, considerando o fato de que a redação do art. 226, do CPP, é categórica ao impor que “Quando houver necessidade de fazer-se o reconhecimento de pessoa, proceder-se-á pela seguinte forma […]”, sem que exista qualquer discriminação de aplicação do formato indicado na sequencia em específicas fases da cognição criminal, carece de razoabilidade pretender afastar da etapa Judicial tal formatação.

É de se notar que a existência do contraditório ao longo da instrução processual não se afigura como corolário do desdém à ritualística determinada pelo conteúdo do art. 226, do CPP.

A uma, porque a simples presunção da existência do contraditório, muitas vezes meramente formalizado a partir da presença de defensor dativo ou até mesmo ad hoc[9], não é capaz de, por si só, resguardar a mínima credibilidade na certeira indicação do acusado como a pessoa que, efetivamente, estava presente no cenário descrito na peça incoativa (denúncia ou queixa-crime).

No exercício prático do processo penal, no tocante a realização de audiências para a colheita de prova oral, a disposição cênica que se afigura impede, na maior parte das vezes, que a sedizente vítima ou testemunha tenha regular campo de visão para apreciar a figura do réu.

 Na oportunidade em que se encaminha para prestar depoimento perante o juízo da instrução criminal, o reconhecedor senta-se, inexoravelmente, defronte ao Magistrado Presidente da solenidade e em sentido transversal ao acusado, cenário esse que propõe o contato da suposta vítima e/ou testemunha com o acusado apenas em limitada visão periférica, sem que lhe seja requerida a frontal avaliação das características físicas do réu.

 Sem embargo, em não havendo momento específico reservado para que o depoente possa, de forma detida e pontualmente compromissada, efetivar – ou não – o reconhecimento do acusado durante a instrução criminal, tal questão restará consumida pela consagrada dialética estabelecida na solenidade, sobretudo para fins da indispensável coleta da prova oral, a qual é considerada a motivação mor da designação da audiência.

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 Ora, não há como admitir que a inocorrência da realização de mecanismo explicitamente propugnado na legislação durante instrução criminal seja convertido ao entendimento de que, por tal inobservância, merecem restar convertidos aos status de “prova” as informações (re)colhidas na fase investigativa, relegando a instrução criminal à inevitável absorção de demonstrativo formado em época inquisitiva, ao arrepio da disposição do art. 155, do CPP.

 É necessário ter em mente que a viabilidade de condenação é umbilicalmente dependente da formação de “provas”, elementos assim entendidos como tais[10], não podendo os mesmos serem confundidos com meros indícios/peças informativas extraídas na zona inquisitorial da persecução penal e carenados de validade por força de evidente utilitarismo.

 A duas, em virtude de ser a fórmula do reconhecimento previsto no art. 226, do CPP, meio cientificamente mais seguro de (re)cognição da situação processualmente verificada, conforme se explicará no tópico “5”, que sucede o ora empenhado, para onde remetemos o leitor, evitando reprisar o assunto desnecessariamente.

 Questão pertinente a ser observada para fins da realização do reconhecimento, é o indispensável assentimento do réu para que sua figura seja alvo da apreciação de sedizente vítima e/ou testemunha.

 Totalmente inadmissível conceber a coação do acusado à participar da exposição presencial de suas características, ante o postulado constitucional do nemo tenetur se detegere, estabelecido constitucionalmente como Garantia Fundamental do acusado, na forma do art. 5º, LXIII.

 Sem dúvidas, considerando a existência do postulado que reserva ao imputado – pessoa que conserva a presunção de inocência – a prerrogativa de não ver sua vida influenciada pela persecução penal que lhe atribui conduta penalmente reprimida, não haveria lógica para que se impusesse ao réu o ônus de cooperar com a investigação criminal (em nível policial ou judicial), devendo, então, haver sua expressa aceitação em participar, na condição de objeto de verificação, do reconhecimento pessoal a que se refere o presente trabalho.

 Outro ponto a ser imprescindivelmente considerado, correlato à realização do reconhecimento durante as audiências, é a (des)necessidade de a suposta vítima e/ou testemunha se defrontar com o acusado sem qualquer tipo de separação, de forma direta, dividindo o mesmo reduto do suspeito, estando imediatamente próxima e alcançável ao acusado, conforme preconiza o parágrafo único, do art. 226, do CPP.

 Segundo parte da doutrina, não obstante a existência de postulados principiológicos que, corretamente, pautem o decurso da investigação criminal, sobretudo o do princípio da não-culpabilidade, que preconizem que o réu não merece ser considerado perigoso por sua simples condição de imputado, no âmbito cotidiano, temos ciência de que determinados casos guardam dificuldades quanto ao encorajamento do reconhecedor em apontar o reconhecido de forma presencial-interativa, sem a existência de métodos de apartamento, tais como os vidros espelhados.

Daí, então, porque, tal seleção de pensadores defende o afastamento da obrigatoriedade de ser procedido o reconhecimento de modo direto, para que seja reservado ao ofendido ou à testemunha mínimos níveis de tranquilidade para exercitar a indicação que lhe compete. Raciocinando dessa forma, temos Guilherme de Souza Nucci (2007, p. 476): 

É nítida a finalidade da lei em preservar a pessoa colocada na difícil situação de reconhecer outra, normalmente um criminoso – e perigoso –, submetendo-se a situações de constrangimento de toda a ordem e impedindo-a, até mesmo, de proceder à formação da prova com a isenção e idoneidade demandadas pela busca da verdade real no processo penal. Assim, é totalmente incompreensível a vedação estabelecida para a preservação da imagem do reconhecedor frente ao reconhecido em juízo.         

Trafegando em sentido idêntico, verifica-se a preleção de Fernando Capez (2006, p. 348):

Por outro lado, atendo aos princípios do contraditório e da ampla defesa, e ciente da natureza acusatória do processo criminal brasileiro, pela qual o acusado tem o direito de conhecer todas as provas contra si produzidas, a lei proibiu a aplicação do mencionado artigo III em juízo, quer em plenário de julgamento, quer na fase de instrução criminal (CPP, art. 226, parágrafo único). Assim, a vítima ou testemunha terá de efetuar o reconhecimento frente a frente com o acusado, o que pode afetar o alcance da verdade real. Na prática, principalmente em processos crime de roubo, nos quais a palavra do ofendido assume valor preponderante, já que não conhece o réu e nem tem interesse em prejudica-lo, o inciso III do art. 226, tem sido largamente aplicado em audiência, sem que até hoje se tenha determinado a nulidade.

           

   E persiste em sua obra o renomado processualista, afirmando inexistir qualquer tipo de nulidade em situações onde, em audiências de instrução com destinação ao juízo monocrático ou em plenário que se direcione à jurados, seja aplicada a regra do inciso III, do art. 226, do CPP (2006, p. 348):

Tecnicamente seria uma prova ilegítima, dado que afronta norma de caráter processual; contudo, em atenção ao princípio da verdade real, da proteção ao bem jurídico e da proporcionalidade (também aplicável pro societate), entendemos não existir qualquer nulidade nesta prova. Reforça este entendimento o disposto no art. 217 do CPP, que autoriza a retirada do réu da sala de audiências, sempre que estiver incutindo fundado temor na testemunha ou vítima.

    Muito embora mereçam irrestrita deferência em relação ao posicionamento que adotam, no que se refere a inaplicabilidade do parágrafo único, do art. 226, do CPP, reputamos não se revestir de coerência a linha adotada pelos autores acima referidos.

   Percebe-se que ambos, ao justificarem as bases sustentadoras de seu entendimento, recorrem a conteúdos alienígenas e/ou ultrapassados do processo penal, tais como a verdade real e o princípio do in dubio pro societate.

  Ocorre, que os conceitos distanciam-se do processo penal enraizado em uma Constituição democrática como a que atualmente vige em nosso país, a qual, em nenhum momento, indica a existência de possibilidade de, defronte a dúvidas, ser a condição do réu alterada em “favor da sociedade” (in dubio pro societate) ou preconiza a possibilidade de um processo que possua a sobre-humana capacidade de revolucionar o tempo e recriar, no presente, um evento pretérito, em sua integral realidade, sem qualquer possibilidade de interferência (princípio da verdade “real”). 

  Ao inverso, a Carta Magna de 1988 irradia de si conceitos como processo pautado por contraditório e ampla defesa (art. 5º, LV), presunção de não-culpabilidade (art. 5º, LVII) e, acima de tudo, a legalidade penal (art. 5º, XXXIX).

  Dessa maneira, não há como, ao arrepio da norma penal vigente e baseado em postulados provenientes de local diverso da atmosfera constitucional, pretender afastar a aplicabilidade do parágrafo único, do art. 226, do CPP.

  Indo além de hipóteses isoladas em casos onde, eventualmente, se verifique receio da testemunha ou vítima em reconhecer o acusado, a aplicação do inciso III, do art. 226, na fase judicial, afigura-se incorreta e impraticável, na medida em que, além de negar vigência a inequívoco conteúdo legal, ainda cerceia do réu o direito de exercitar o contraditório perante o ato a que se propõe a realizar.

 Em razão da inabalável premissa do exercício do contraditório e da ampla defesa no processo judicial, mais do que simples apego burocrático, propugnar a aplicabilidade plena do parágrafo único atende ao fato de que, no âmbito do Poder Judiciário, é prerrogativa do acusado conhecer, de imediato, as imputações que lhe são atribuídas, para que possa repeli-las de pronto, evitando a preclusão da possibilidade do exercício de seu ônus processual.

 Sem embargo, ao se ver separado do reconhecedor, o reconhecido limita-se a obedecer eventuais ordens que lhe serão conferidas ao longo do ato, sendo-lhe tolhido ou, no mínimo, profundamente reduzido seu direito de autodefesa, conquanto não possa designar suas atitudes a partir da própria percepção.

Assim, por exemplo, a acusado inocente que seja fortemente semelhante com o real agente da infração penal, é vetada a possibilidade de expressar-se corporalmente da forma que lhe favoreça repudiar a similitude indicada pela testemunha ou vítima que, erroneamente, já tenha, em contexto inquisitivo, lhe atribuído a autoria de crime que não cometeu.

 Em consórcio ao entendimento por nós adotado, assim leciona Eugênio Pacelli de Oliveira (2007, p. 366):

O procedimento previsto no art. 226, III, do CPP, fundado no receio que a testemunha possa ter em relação à pessoa a ser reconhecida, é feito de modo sigiloso, isto é, impedindo que o reconhecido possa ver aquele que o reconhece. Em razão disso, a própria legislação estabelece não ser possível tal procedimento em juízo (art. 226, parágrafo único), em obediência às exigências da ampla defesa.

   Caso se exclua, efetivamente, a observância do parágrafo único, do art. 226, ter-se-á, sem dúvida, uma repetição do ato realizado no Distrito Policial, sem a homenagem da instantânea possibilidade de autodefesa do réu, tornando-se o reconhecimento, então, frívola formalidade, repetitiva e pragmática, sem em nada acrescentar na (re)cognição do juízo mediante a sintetização do exercício do contraditório, razão porque concebemos ser inequívoca a necessidade de o reconhecimento, na fase judicial, ser promovido mediante avistamento direto, sem a existência de mecanismos de alienação do acusado à pessoa que está a lhe avaliar e, eventualmente, atribuir-lhe a autoria de determinado delito.

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Sobre o autor
Affonso Celso Pupe da Silveira Neto

Advogado. Especialista em Direito e Gestão Empresarial com ênfase nas áreas de Contratos e Consultoria Corporativa. Master of Business Administration em Gestão Jurídica Aduaneira e Internacional.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PUPE NETO, Affonso Celso Pupe Silveira Neto. Aspectos relevantes acerca do reconhecimento de pessoas ou coisas segundo o Código de Processo Penal e sua aplicação prática. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3954, 29 abr. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/27796. Acesso em: 25 abr. 2024.

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