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Direito Penal brasileiro.

Do idealismo normativo à realidade prática

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Agenda 01/03/2002 às 00:00

Sumário: 1. Introdução - 2. Algumas regras para um Direito Penal de intervenção mínima - 3. Ligeiras reflexões sobre a realidade do Direito Penal brasileiro - 4. Algumas cautelas necessárias - 5. Sobre a lei 9.099/95 - 6. Sobre a lei 9.714/98 - 7. E a prevenção penal? - 8. Conclusão.


1. INTRODUÇÃO

Muito se tem discutido sobre a crise do Direito Penal, no Brasil e no mundo, e a discussão sobre o tema centra suas idéias fundamentais na necessidade de se rever o instituto da pena privativa de liberdade, as práticas punitivas em sentido amplo; de se estabelecer mecanismos despenalizadores ou descriminalizantes que passam pela intervenção mínima e pelos sistemas consensuais de justiça penal; a criação de um Direito Penal administrativo, como espécie dissidente do Direito Penal classicamente conhecido, que a partir de então poderia passar a ser chamado de Direito Penal de justiça[1]; de acentuar a aplicação das denominadas penas alternativas, ou substitutivos penais, como é da preferência de vários estudiosos da matéria, chegando-se ao extremo da proposta abolicionista, bem a gosto de Louk Hulsman.

Como a dinâmica social, a dinâmica dos estudos com base filosófica e cunho científico vem proporcionando várias reflexões, ao que tudo indica, mais na sociedade e nos aplicadores do direito, do que na maioria das autoridades que integram os Poderes Legislativo e Executivo, como provam as legislações mais recentes (pelo menos da última década), marcadas pela ausência de rigor técnico, fontes inesgotáveis de discussões jurídicas evitáveis e que só fazem tumultuar as instâncias recursais, sem contar, é claro, o característico distanciamento que se cria e sustenta diante dos anseios da sociedade e da comunidade jurídica, só superado pelo descaso explícito com relação a falta de estrutura que envolve a segurança pública lato sensu.

É evidente que a legislação penal brasileira precisa ser revista, contudo, não para se criar novas figuras penais, despenalizar condutas, aumentar ou reduzir drasticamente as penas, sem qualquer critério conhecido e aceitável, como vem ocorrendo. Por primeiro, destaca-se no panorama atual a necessidade de se rever a prática legislativa, estabelecendo rigor científico, sem descuidar da dogmática e dos princípios que informam a ciência penal, e, num segundo momento, administrar a segurança pública, ao menos aparelhando os mecanismos já existentes, de forma a viabilizar sua efetivação. Conforme asseverou José Carlos G. Xavier de Aquino[2], é chegada a hora de enxergar o sistema de uma forma científica, com os pés no chão e os olhos na realidade.

A bem da verdade, é passada a hora de se agir da forma acima sugerida.

Assim, o objetivo do presente trabalho é apenas estabelecer algumas considerações sobre a influência das Leis 9.099/95 e 9.714/98 no Direito Penal brasileiro, destacando alguns aspectos que distanciam o ideal normativo da realidade prática, tão evidentes e de resultados deletérios.


2.Algumas regras para um Direito Penal de intervenção mínima

No dizer de Maurício Antonio Ribeiro Lopes[3], "o princípio da intervenção mínima foi produzido por ocasião do grande movimento social de ascenção da burguesia, reagindo contra o sistema penal do absolutismo, que mantivera o espírito minuciosamente abrangente das legislações medievais. Montesquieu tomava um episódio da história do direito romano para assentar que "quando um povo é virtuoso, bastam poucas penas"; Beccaria advertia que "proibir uma enorme quantidade de ações indiferentes não é prevenir os crimes que delas possam resultar, mas criar outros novos"; e a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão prescrevia que "a lei não estabelecesse senão penas estritas e evidentemente necessárias" (art. VIII)".

Conforme assevera Claus Roxin[4], o direito penal é de natureza subsidiária. "Ou seja: somente se podem punir as lesões de bens jurídicos e as contravenções contra fins de assistência social, se tal for indispensável para a vida em comum ordenada. Onde bastem os meios do direito civil ou do direito público, o direito penal deve retirar-se".

Estabeleceu-se, nessa ordem de idéias, que o direito penal deve ser considerado a ultima ratio da política social, demonstrando a natureza fragmentária ou subsidiária da tutela penal. Só deve interessar ao direito penal e, portanto, ingressar no âmbito de sua regulamentação, aquilo que não for pertinente a outros ramos do direito.

Bem ao contrário da política criminal e da recomendação doutrinária que ora se adota, vemos no Brasil um direito penal absolutamente desproporcional aos limites de seu âmbito científico, vale dizer, há muito no direito penal que não é, ou pelo menos não deveria ser, de direito penal.

A denominada inflação legislativa no âmbito do direito penal, desproporcional à realidade que a recebe, e desacompanhada de qualquer estruturação administrativa para a aplicação efetiva das normas, gerou o caos normativo e a desordem prática, de maneira que não se pode afirmar, com segurança, qual o pensamento do legislador penal brasileiro; qual a finalidade do direito penal brasileiro, e de conseqüência, qual a finalidade da pena no direito brasileiro.

É preciso delimitar o âmbito de interesse do direito penal, e saber que o sucesso da intervenção mínima pressupõe, também, um mínimo de condições de aplicabilidade das normas, o que reclama, no mínimo, uma legislação técnica e coerente, além da necessidade de estruturação dos órgãos de jurisdição, e aparelhamento dos mecanismos de execução das penas.


3. Ligeiras reflexões sobre a realidade do direito penal brasileiro

Com arguta visão e notável poder de síntese, Jorge Henrique Schaefer Martins[5] assim descreve a realidade nacional: "... a criminalidade tem raízes muito mais profundas que uma análise rápida pode expor: a problemática social, a perspectiva de ascensão célere no meio marginal, impensável com o dispêndio de trabalho honesto, a excessiva procura por drogas, a ganância, o desprezo pelas gerações futuras, tudo produzindo o crescimento desordenado da marginalidade, em contraposição às dificuldades do Estado em preservar a segurança dos cidadãos, seja pelo não aparelhamento e pela má remuneração daqueles dela encarregados, como pela visão míope do problema. Acresce-se a isso o fato de o sistema carcerário brasileiro ser considerado como um dos piores do mundo, devido à superlotação nas prisões e à violação dos direitos humanos".

Por isso, correta a afirmação de Marco Antonio de Barros[6] no sentido de que "a dignidade do Direito Penal está seriamente abalada em nosso País".

Não são poucas, evidentemente, as causas que concorrem para o descontrole dos índices de criminalidade, que só fazem crescer.

A maior razão da propalada crise de efetividade da jurisdição, e da pena, no direito penal brasileiro, decorre da ausência de uma adequada visão do problema e da ausência de uma política criminal acompanhada de legislação correspondente. Conforme advertência de Claus Roxin[7], "o direito penal é muito mais a forma, através da qual as finalidades político-criminais podem ser transferidas para o modo da vigência jurídica".

As estatísticas revelam o aumento quantitativo da população, o baixo aproveitamento em todos os graus de ensino, a ausência de capacitação profissional da maioria, os índices de desemprego. A educação é falha e os estímulos para uma boa formação moral são quase inexistentes, restam pequenos oásis. A má formação das crianças e adolescentes, a desesperança, os exemplos de impunidade, a ausência de punição severa em relação aos crimes graves, os domínios do crime organizado, do crime globalizado e do narcotráfico, os incontáveis problemas sociais, são só alguns fatores, que aliados ao descaso para com a Justiça, contribuem de forma decisiva para a elevação dos índices de criminalidade.

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Em contrapartida, sem que se perceba qualquer preocupação, e principalmente um agir efetivo, no sentido de viabilizar a eficácia dos órgãos incumbidos da persecução penal em sentido amplo, e de proporcionar a completa aplicação da Lei de Execução Penal[8], que é de 11 de julho de 1984, o legislador se prodigaliza na criação de leis e mais leis penais, para que não sejam cumpridas. Leis confusas, pessimamente elaboradas, que só fazem tumultuar as lides penais e as instâncias recursais, conforme acima afirmado, difundindo insegurança e incerteza junto a população e aos profissionais compromissados com a distribuição da justiça.

Como marco inicial da última década, no tocante aos "equívocos" legislativos que provocaram incontáveis discussões e recursos criminais evitáveis, utilizo mais uma vez as palavras do Magistrado Jorge Henrique Schaefer Martins[9], que assim se expressa: "Dentre inúmeros exemplos, destaca-se a redação do Estatuto da Criança e do Adolescente que, buscando resguardar o objeto de suas deliberações, criou parágrafos únicos aos arts. 213 (estupro) e 214 (atentado violento ao pudor), nos quais estipulava formas qualificadas quando tais tipos de delitos fossem praticados contra crianças. Ocorre que o ECA só passou a viger seis meses após sua publicação e, nesse ínterim, entrou em vigor a Lei dos Crimes Hediondos, que redesenhou as penas previstas pelo caput dos dois artigos do Código Penal mencionados, tornando-as muito mais gravosas. Esqueceu-se o legislador, no entanto, de mencionar expressamente a revogação dos parágrafos únicos, os quais, de forma paradoxal, tratando de condutas qualificadas, continham penas inferiores aos crimes praticados em sua forma simples. Isso provocou manifestações doutrinárias divergentes, julgados díspares, por entenderem alguns ter havido a derrogação da norma inserida pelo ECA, enquanto outros diziam da imprescindibilidade da disposição expressa. A correção ocorreu somente anos após".

Mas não é só. Num breve rol de imperfeições técnicas, inadmissíveis ao legislador sábio e prudente, poderíamos citar[10] a questão da aplicação, ou não, do artigo 9º da Lei dos Crimes Hediondos; as inúmeras discussões que se estabeleceram sobre regras dúbias de alguns institutos da Lei 9.099/95; a Lei 9.268/96, que aniquilou a pena de multa e criou discussões as mais variadas quanto a legitimação ativa para a execução, o juízo competente, a própria natureza jurídica do instituto, etc.; a Lei 9.271/96, com a discussão que se instalou sobre sua retroatividade total ou parcial, ou sua irretroatividade, a natureza de suas regras (processuais, penais, ou mistas); a "Lei de Tortura"[11], que permitiu a progressão de regime nos crimes que elenca, mesmo sendo hediondos, quando há vedação na Lei dos Crimes Hediondos, estabelecendo discussão também quanto a sua extensão, que não foi explicitada pelo legislador, que nos parece ter agido de forma desatenta quando da permissão, na contramão do momento; as impropriedades do Código de Trânsito brasileiro[12] (até no nome); a "Lei dos Remédios" punindo a adulteração/falsificação de cosméticos, na mesma intensidade que os remédios propriamente ditos; e para não alongar demais o rol, a "Lei de Armas de Fogo"[13], que apenas em relação a data de sua entrada em vigor permitiu a formação de quatro correntes jurisprudenciais. Poderíamos citar, ainda, e por fim, a Lei 9.714/98, conhecida como a "Lei das Penas Alternativas", cujo rol de impropriedades e ausência de rigor técnico é maior do que a própria lei.


4. Algumas medidas necessárias

Adotando-se o direito penal de intervenção mínima para o modelo brasileiro, é inafastável a necessidade de se proceder a um estudo profundo, por Doutores no assunto, providenciando-se uma proposta em termos de codificação dos tipos penais e processuais penais, e o necessário no âmbito político-legislativo para as adequadas modificações, que não podem emergir do pântano atual sem muita cautela.

Como já advertia Cesare Beccaria[14] "uma boa legislação não é mais do que a arte de propiciar aos homens a maior soma de bem-estar possível e livrá-los de todos os pesares que se lhes possam causar, conforme o cálculo dos bens e dos males desta existência". E arrematava o ilustre filósofo: "Desejais prevenir os crimes? Fazei leis simples e evidentes".

Tais mudanças reclamam uma exata compreensão dos limites e do alcance que se deve dar ao direito penal, deixando para as demais áreas de atividades do Estado aquilo que a cada uma couber com exclusividade.

À cada ramo do direito o que lhe pertence, com as sanções correspondentes, onde houver.

Não basta, contudo, a mudança na prática legislativa, que deve pautar por um melhor rigor técnico e científico, de forma a reduzir o âmbito de atuação do direito penal aos limites de seu efetivo interesse enquanto ciência, sem provocar aqueles indesejados e evitáveis debates estéreis decorrentes da prática oposta.

Tais mudanças, se desacompanhadas de uma necessária reflexão e tomada de postura frente ao problema da falta de estrutura dos órgãos do Poder Judiciário e de execução penal (que fazem muito pelas condições de que dispõem), de nada adianta.

A título de exemplo, dentro dessa ordem de idéias, calha mencionar que Rui Stoco[15] apresenta o seguinte rol, que denominou causas supralegais de impunidade (voluntárias, involuntárias, naturais e culturais): 1. Desaparelhamento do Poder Judiciário; 2. número insuficiente de Juízes (o Poder Judiciário de São Paulo está com mais de 500 cargos vagos, de forma crônica, pois não consegue preenchê-los); 3. insuficiência de recursos para o Poder Judiciário; 4. lentidão da Justiça, provocando a prescrição retroativa ou intercorrente, em razão dos prazos prescricionais curtos, principalmente nos crimes não violentos, nos de natureza financeira, negocial, empresarial e nos delitos decorrentes das relações de consumo; 5. pais que não educam corretamente os filhos, deixando de corrigi-los adequadamente; 6. ausência, por parte do professor, de orientação e transmissão aos alunos da noção de valores sociais e sua preservação; 7. sistema prisional inadequado em todo o país; 8. carência de penitenciárias, casas de detenção e institutos penais. 9. desaparelhamento de pessoal e material nas polícias Civil e Militar; 10. falta de preparo e especialização da força policial.

As advertências não são feitas por acaso, conforme procurarei demonstrar nas reflexões que seguem.


5. Sobre a lei 9.099/95

Conhecidas as ponderações acima, quadro evidente da realidade, não se pode negar a propalada crise do Direito Penal.

Com efeito, do interior dessa crise, assevera Edison Miguel da Silva Jr.[16], das suas contradições, emerge a Lei 9.099/95 – parte criminal. Trata-se de algo tão diferente e tão outro que será absurdo falar em continuidade ou avanço do sistema punitivo – é um novo sistema penal.

Admita-se. Trata-se de um novo sistema penal, ou, como prefere Maurício Antonio Ribeiro Lopes[17], um microssistema de justiça penal, que apesar de seu pretendido avanço, não está isento de críticas fundadas.

A Lei 9.099/95, dentre tantas inovações, abriga os princípios da oralidade, informalidade, economia processual e celeridade, objetivando, sempre que possível, a reparação dos danos sofridos pela vítima e a aplicação de pena não privativa de liberdade (art. 62). Estabelece a necessária tentativa de composição civil, que se frutífera acarretará a extinção da punibilidade (art. 74); prevê a possibilidade de suspensão condicional do processo (art. 89), e, ainda, insere a representação como condição de procedibilidade nas ações penais por crimes de lesões corporais dolosas leves e lesões culposas (art. 88).

No tocante aos princípios a prática tem demonstrado que a oralidade continua sendo escrita; a informalidade se ajustou ao cotidiano, e de certa forma, também a economia processual e a celeridade, exceto no que tange a inafastável necessidade de expedição de cartas precatórias nos casos em que a prática de determinados atos devem ocorrer fora dos limites da comarca processante. Entretanto, como decorrência da não instalação dos Juizados Especiais, como determina a Lei, a celeridade fica mitigada, porquanto sujeita à acomodação da pauta do Juízo Comum.

A reparação dos danos tem se revelado de difícil alcance, não só em razão das dificuldades que decorrem da apuração dos valores envolvidos, mas, sobretudo pela falta de disposição das partes, ou pelo menos de uma delas, que prefere(m), no mais das vezes, percorrer os caminhos da morosidade na jurisdição civil.

Em torno da suspensão condicional do processo as discussões jurisprudenciais e doutrinárias não são poucas, mesmo assim, quer nos parecer que o instituto tem alcançado seu objetivo, atendendo ao ideal normativo.

No tocante a representação do ofendido, como já acentuei em outra ocasião[18], importa destacar que segundo lição de José Frederico Marques,[19] a ação penal pública condicionada pode depender de representação do ofendido, nos casos taxativamente previstos em lei. Embora o crime atinja um bem jurídico, cuja tutela penal interessa precipuamente ao Estado, figuras delituosas existem em que a pretensão punitiva somente surge quando o sujeito privado, que desse bem jurídico é titular, também tenha interesse na punição do autor da infração penal, e isso por motivos vários, que vinculam a própria tutela penal ao poder dispositivo do sujeito passivo do crime. Quando mais acentuada essa subordinação, o Estado transfere ao titular do bem jurídico, atingido ou ameaçado, o direito de ação e o direito de acusar: são os casos de ação penal privada. Hipóteses existem, no entanto, em que o interesse público na punição do crime fica menos subordinado à vontade do ofendido, e, por isso, lhe não transfere o Estado o direito de acusar, mas tão-só condiciona à sua provocação o início da persecutio criminis: são as hipóteses de ação penal pública dependente de representação.

Nos crimes de ação penal pública condicionada à representação, esta deve ser o primeiro ato do processo penal em sentido amplo, cuja primeira fase é o inquérito, de regra, porquanto não imprescindível, e este não pode ser iniciado sem aquela.

No quadro dos direitos subjetivos, é ela de natureza pública e se enquadra como notícia de crime, dentre os direitos emanados do status activae civitatis da classificação de Jellinek.

Mas a representação não é só notitia criminis,[20] uma vez que contém indisfarçável sentido postulatório. Quem se apresenta ao juiz, promotor ou autoridade policial não lhes está dando apenas conhecimento de um delito, mas também pedindo a prática de atos persecutórios e a própria propositura da ação penal. E esse pedido nada mais traduz, nos quadros dos direitos públicos subjetivos, que o exercício de um direito cívico, isto é, de um direito filiado ao status civitatis. Esta, aliás, é a conceituação de Battaglini ao estudar o direito de querela.

Adotando os ensinamentos de Tourinho Filho,[21] cumpre ponderar que, na doutrina, inúmeros juristas têm profunda aversão em reconhecer a influência da vontade particular quanto à aplicação da lei penal. Binding, no seu Handbuch, n. 1.706, apresentou sete inconvenientes e que são conhecidos como o "ato de acusação de Binding". Ei-los: 1º. prejuízo do Estado, como titular do jus puniendi e do poder de indultar; 2º. prejuízo do ofendido, a quem não foi possível apresentar a tempo a representação, ou que teve um representante inativo; 3º. lesão ao princípio de justiça de que toda a culpa deve ter sua retribuição; 4º. abandono da autoridade do Estado ao arbítrio privado; 5º. condições favoráveis ao criminoso, que, com freqüência, se subtrai à pena; 6º. condição favorável para o ofendido, que, às vezes, comercia o seu direito e é impelido a extorsões; 7º. facilidade do representante legal do ofendido para descuidar, sem consciência, dos interesses do representado.

E segue o Ilustre Professor: "No mesmo sentido, as objeções de Tolomei, Ottorino Vannini, Ricio, Florian, Ferri, Maggiore e outros. Maggiore entende que não se concebe permitir-se tal direito ao particular. Só o Estado é que deve ser o árbitro sobre o direito de se proceder ou não".

É certo e reclama destaque, por conseguinte, que condicionar a ação penal à representação do ofendido restringe demasiadamente a atividade persecutória do Estado, uma vez que se extingue a punibilidade, por ocorrer a decadência,[22] se o ofendido, ou seu representante legal, em sendo o caso, não a apresentar dentro de seis meses, de regra contados do dia em que se tomou conhecimento de quem foi o autor do ilícito.[23]

Comentava-se, não faz muito tempo, e as estatísticas da época comprovaram, que grande parte dos processos criminais em curso tratava de crimes de lesões corporais dolosas, de natureza leve, e culposas, notadamente aquelas decorrentes de acidentes de trânsito.

Para resolver o problema do numeroso volume de processos criminais, qual foi a solução adotada pelo legislador?

O procedimento célere, informal e econômico da Lei 9.099/95?

Não só.

A solução encontrada e aplicada naquele momento veio regulada notadamente pelos arts. 88 e 91 da lei que instituiu os Juizados Especiais Criminais e que condicionou as ações penais nos crimes de lesões corporais dolosas, de natureza leve, e culposas, à representação do ofendido. De públicas incondicionadas passaram a públicas condicionadas.

Foi o que bastou. O resultado da alteração é cediço.

A maior parte das vítimas não oferece representação. A nosso sentir e experiência, não por opção, mas por falta de cultura, orientação etc. Contribui para o quadro o fato dos Juizados Especiais Criminais ainda não estarem instalados conforme estabelecidos em Lei e a ausência de estrutura, que dificulta a aplicação eficaz das normas ditadas.

No geral, não se trata de uma visão pessimista, pura e simplesmente. Trata-se da realidade prática, à qual não corresponde o anunciado ideal normativo.

Com efeito. Também importa destacar que o Código Penal estabelece em seu artigo 44 que as penas restritivas de direitos são autônomas e substituem as privativas de liberdade, portanto, aquelas não são aplicadas diretamente, apenas de forma substitutiva. Mesmo assim, nos termos da Lei 9.099/95, não se permite, pela via da transação penal, a aplicação de pena privativa de liberdade. Aplica-se, portanto, de forma direta, pela via da transação homologada, penas restritivas de direitos ou multa.

E mais. Sem ingressar na pertinente questão da culpa penal na lei 9.099/95, outros problemas chamam a atenção quando se põe em prática a citada lei.

Exemplo claro de inquietação refere-se às conseqüências do não cumprimento da transação homologada, já que sobre o tema não há consenso doutrinário e jurisprudencial.

Há quem entenda que "homologada a transação penal realizada nos termos do art. 76 da Lei n.º 9.099/95, com efeito de coisa julgada, o não recolhimento da multa imposta possibilita apenas a sua execução, e não o prosseguimento do feito"[24]. "No caso de não ser a multa recolhida pelo acusado, caberá ao Juízo promover-lhe a execução, e não receber denúncia ofertada pelo Ministério Público, eis que, com a transação homologada, fica exaurida a prestação jurisdicional"[25].

Por outro lado, não são poucas as decisões no sentido de que "a homologação da transação penal prevista no art. 76 da Lei n.º 9.099/95 gera, única e exclusivamente, coisa julgada formal, em face do princípio rebus sic stantibus, e, sendo assim, a partir do momento em que o autor da infração descumpre o acordo firmado com o Membro do Parquet, não se submetendo às regras de conduta impostas pela decisão homologatória, o que foi transacionado perde sua eficácia e surge para o Ministério Público o dever de promover a Ação Penal, tornando-se insubsistente a transação que não foi honrada"[26].

Quanto a possibilidade de conversão da transação pecuniária não cumprida, já se decidiu que "em nosso atual sistema penal não existe mais a possibilidade de a multa ser convertida em detenção, uma vez que revogados os arts. 51 e parágrafos, do CP e 182 da LEP, com o advento da Lei n.º 9.268/96, devendo, pois, a execução da pena pecuniária ocorrer nos termos da nova redação do art. 51 do CP, c.c. art. 164 da Lei n.º 7.210/84"[27], e que "é inadmissível a conversão de pena pecuniária em restritiva de direito a réu condenado ao pagamento de multa, resultante de transação prevista no art. 72 da Lei 9.099/95, por ausência de critério legal, devendo tal dívida ser inscrita para cobrança judicial"[28], pois, "no sistema do nosso Código Penal jamais houve previsão para admitir-se a pretendida conversão da multa em pena restritiva de direitos. Nesse Código, as penas restritivas de direito só são admitidas como penas substitutivas da pena corporal, não existindo a possibilidade legal de substituírem a sanção pecuniária. É o que se infere do que vem disposto no art. 44, caput, do Código Penal: "As penas restritivas de direitos são autônomas e substituem as privativas de liberdade..."[29].

Mas também tem se decidido que "a falta de recolhimento da pena de multa, acordada na audiência preliminar, enseja a aplicação do art. 85 da Lei dos Juizados Especiais Criminais, i.e.: será feita a conversão em pena privativa de liberdade, ou restritiva de direitos, nos termos previstos em lei"[30]. e também que "o art. 51 do Cód. Penal, com a nova redação que lhe deu a lei n.º 9.268/96, não impede a conversão da multa em pena restritiva de direitos; defesa é unicamente sua conversão em pena privativa de liberdade. Pelo que, se o autor do fato, havendo aceito a proposta de transação, recusa-se a recolher a multa, cabe substituí-la por pena restritiva de direitos, v.g.: prestação de serviços à comunidade"[31].

E as penas restritivas de direitos, decorrentes de transação homologada e não cumprida? Conversão? Em que? É constitucional convertê-las em prisão?

Obrigar o apenado à prestação forçada é impossível.

E a estrutura dos Juizados Especiais Criminais, até hoje inexistente?

O ideal normativo corresponde à realidade prática? Quais as razões?

É forçoso concluir que a excessiva falta de rigor técnico na elaboração de nossas leis penais tem levado o aplicador do Direito à preocupações e discussões em todas as instâncias recursais, absolutamente evitáveis.

Avoluma-se o rol de inquietações com a ausência de recursos e de estrutura para a aplicação eficaz da Lei, ainda que nos termos em que se encontra.

Sobre os autores
Bruno Marcon

acadêmico de Direito na Universidade Paulista

Renato Marcão

Membro do Ministério Público do Estado de São Paulo. Mestre em Direito. Professor convidado no curso de Pós-Graduação em Ciências Criminais da Rede Luiz Flávio Gomes. Membro da Association Internationale de Droit Pénal (AIDP), do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM), do Instituto de Ciências Penais (ICP) e do Instituto Brasileiro de Execução Penal (IBEP). Autor dos livros: Tóxicos (Saraiva); Curso de Execução Penal (Saraiva); Estatuto do Desarmamento (Saraiva); Crimes de Trânsito (Saraiva); Crimes Ambientais (Saraiva); Crimes contra a Dignidade Sexual (Saraiva); Prisões Cautelares, Liberdade Provisória e Medidas Cautelares Restritivas (Saraiva); dentre outros.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MARCON, Bruno; MARCÃO, Renato. Direito Penal brasileiro.: Do idealismo normativo à realidade prática. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 7, n. 55, 1 mar. 2002. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/2780. Acesso em: 5 nov. 2024.

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