III - QUESTÕES ÉTICAS
III.1 - Embriões excedentários
A fecundação in vitro, embora seja cada vez mais utilizada, ainda desperta polêmicas. Em cada tratamento geralmente são fecundados de 10 a 15 óvulos, os quais a maioria se desenvolve, originando embriões. Alguns dias depois, mais de um embrião será selecionado e implantados no útero da mulher (o número de embriões a serem implantados depende da idade da doadora), tendo em vista que a chance de sucesso nessa etapa é da ordem de 25%. Os demais embriões são congelados em nitrogênio líquido, a uma temperatura de cerca de - 196°C, para serem utilizados no caso da primeira operação não ter sucesso, ou se o casal desejar ter outros filhos mais tarde.
O que fazer com os embriões não utilizados? Eles devem permanecer congelados indefinidamente ou podem ser jogados fora? Podem ser doados ou vendidos a outra pessoa? Afinal de contas, todos os embriões que se desenvolvem em um processo de fecundação in vitro são irmãos daquele que se desenvolveu? Descartá-los seria equivalente a um aborto? Se adotarmos o critério celular como início da vida, não estaremos condenando uma séria de embriões (vidas humanas) à morte? Por que esta prática é permitida e o aborto não?
Outras questões também surgem: quando começa a vida? O pré-embrião e o embrião congelados têm status de pessoa? Possuem alma? A quem cabe decidir sobre seus destinos?
Nas palavras de Miguel Angel Monge Sánchez, esse é o principal problema ético que se apresenta na FIV “com o que podemos considerar o estatuto do embrião humano: é um ser humano em fase embrionária ou se trata de uma ‘coisa’? A resposta é decisiva posto que na FIV há perdas de embriões em diferentes fases do processo; há também excedentes que são descartados ou que são usados para investigação.”8
O Supremo Tribunal Federal abordou a questão ao julgar improcedente, em 29/05/2008, a ação direta de inconstitucionalidade --- ADI 3510/DF--- da Lei de Biossegurança (Lei n° 11.105/2005), que admite a pesquisa com células troncos embrionárias em pesquisas científicas para fins terapêuticos, fundamentando a “inexistência de ofensas ao direito à vida e da dignidade da pessoa humana, pois a pesquisa com células tronco embrionárias (inviáveis biologicamente ou para os fins a que se destinam) significa a celebração solidária da vida e alento aos que se acham à margem do exercício concreto e inalienável dos direitos à felicidade e do viver com dignidade”.
Concluindo que “para que ao embrião ‘in vitro’ fosse reconhecido o pleno direito à vida, necessário seria reconhecer a ele o direito a um útero”.
Especificamente com relação à proteção constitucional do direito à vida e dos direitos infraconstitucionais do embrião pré-implanto, aquele v. acórdão fundamentou que:
“O Magno Texto Federal não dispõe sobre o início da vida humana ou o preciso instante em que ela começa. Não fez de todo e qualquer estádio da vida humana um autonomizado bem jurídico, mas a vida que já é própria de uma concreta pessoa, porque natitiva (‘teoria natalista’, em contraposição às teorias ‘concepcionista’ ou da ‘personalidade condicional’). E quando se reporta a ‘direitos da pessoa humana’ e até dos ‘direitos e garantias individuais’ como cláusula pétrea está falando de direitos e garantias do indivíduo-pessoa, que se faz destinatário dos direitos fundamentais ‘à vida, á liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade’, entre outros direitos e garantias igualmente distinguidos com o timbre da fundamentalidade (como o direito à saúde e ao planejamento familiar). Mutismo constitucional hermeneuticamente significante de transpasse de poder normativo para a legislação ordinária. (...). Mas as três realidades não se confundem: o embrião é o embrião, o feto é o feto e a pessoa humana é a pessoa humana. O embrião referido na Lei de Biossegurança (“in vitro” apenas) não é uma vida a caminho de outra vida virginalmente nova, porquanto lhe faltam possibilidades de ganhar as primeiras terminações nervosas, sem as quais o ser humano não tem factibilidade como projeto de vida autônoma e irrepetível. Os momentos da vida humana anteriores ao nascimento devem ser objeto de proteção pelo direito comum. O embrião pré-implanto é um bem a ser protegido, mas não uma pessoa no sentido biográfico a que se refere a Constituição.” (Grifou-se)
E sobre a problemática do aborto:
“A Lei de Biossegurança não veicula autorização para extirpar do corpo feminino esse ou aquele embrião. Eliminar ou desentranhar esse ou aquele zigoto a caminho do endométrio, ou nele já fixado. Não se cuida de interromper a gravidez humana, pois dela aqui não se pode cogitar. A “controvérsia constitucional em exame não guarda qualquer vinculação com o problema do aborto.” (Grifou-se)
Como se pode depreender do julgamento da ADIN acima referida, o Supremo Tribunal Federal, guardião maior dos postulados constitucionais, como o inalienável direito à vida, equiparou o embrião não implanto a “coisa” (nas palavras de Miguel Angel Monge Sánchez, acima citado), não lhe estendendo o direito à vida e outros direitos dela decorrentes.
III.2 - Eugenia
Não obstante a Resolução do Conselho Federal de Medicina proibir a escolha do sexo, bem como outras características genéticas do bebê, na prática, no dia a dia das clínicas brasileiras, a única bússola que norteia os procedimentos são os escrúpulos – ou a falta deles – dos especialistas. Assim, tem-se que é muito fácil driblar as poucas normas existentes.
A tecnologia já existe para tanto. Assim, caso seja possibilitada a manipulação genética para “projetar” bebês com determinadas características físicas e genéticas, de forma criar homens programados ou geneticamente superiores, estaremos frente à eugenia, verdadeira retificação do ser humano em sua etapa embrionária de vida.
Mesmo não seja realizada a manipulação do material genético em laboratório, tem-se que também é possível escolher as características fenótipas do embrião, como a cor dos cabelos, dos olhos, da pele, etc, por meio de compra de óvulos --- mercado disponível na internet. A escolha por tais características não equivale a valorizar determinado tipo de humano em detrimento de outro? Quem paga pelo material genético de terceiro tem direito de escolher as características genéticas de seu filho?
João Álvaro Dias9, ao dissertar sobre a questão alerta que “de resto, motivações eugênicas e de pura experimentação são sempre uma realidade a ter em conta, realidade que pode pôr em causa o que há de mais essencial no gênero humano – o problema da origem da vida e o respeito intrínseco que à própria vida humana é devido, mesmo antes de adquirida a personalidade jurídica.”
III.3 - Bancos de esperma/óvulos/embriões e barrida de aluguel
Severo Hryniewicz e Regina Fiuza Sauwen salientam que por meio da Fecundação In Vitro “hoje é possível, ao bel prazer do cientista ou do técnico, dissociar geração de gestação e de nascimento. Se no processo natural da reprodução tal acontece sem grandes preocupações, é natural que ocorram problemas de ordem psicológica (o trauma da mãe que perde um filho), a interrupção artificial da vida de um feto “in vitro” constitui-se em hedionda agressão contra a vida da pessoa humana”10.
É correto utilizar-se de material genético ou órgão (útero) de terceiro para se ter um filho que geneticamente não vai ser seu, ou que não vai ser concebido por sua mãe biológica? O que é, nesta nova perspectiva, ser mãe? O feto passará nove meses se nutrindo biológica e afetivamente de alguém que não será a sua mãe. Será que tanto não fere a sua liberdade?
No caso da fecundação heteróloga, em que o filho não terá o mesmo material genético dos pais, será que não se está ferindo o direito de liberdade e dignidade do embrião e da pessoa a ser concebida de contar com equivalência social e biológica?
Existe também a chamada "turbinada" nos óvulos. Trata-se da transferência de parte do citoplasma do óvulo de uma mulher jovem para o óvulo de uma mulher madura. Desenvolvida pelo holandês Jacques Cohen há cerca de dez anos, em sua clínica no estado americano de Nova Jersey, essa prática tem o objetivo de melhorar a qualidade dos óvulos de mulheres na faixa dos 40 anos, com poucas chances de engravidar. Trata-se de um procedimento controverso: o citoplasma carrega uma organela, a mitocôndria, dotada de material genético. Transferir o citoplasma do óvulo de uma mulher para o de outra significa, assim, acrescentar DNA de uma terceira pessoa a um embrião. "O princípio ético tácito é que não se pode alterar a genética de uma pessoa", diz o geneticista Walter Pinto Junior, professor da Universidade Estadual de Campinas11.
Há que se falar, ainda, na possibilidade de que de diversas fecundações com o material genético do mesmo doador decorra um descontrole genético, através da proliferação de doenças genéticas e da possibilidade de casamentos consaguíneos.
Perquire-se, também, sobre o direito da pessoa que nasceu de fecundação heteróloga de conhecer a identidade do doador. Trata-se de colisão de direito: de um lado o direito do doador de permanecer anônimo, em atenção à sua dignidade e intimidade, de outro, o direito da pessoa que foi gerada de conhecer a sua identidade genética, com fundamento no mesmo princípio da dignidade que impulsiona a busca pela informação.
Ana Cláudia S. Scalquete12 defende o direito de se conhecer a identidade do doador, uma vez que a relação biológica é mantida para efeito de impedimentos patrimoniais e em relação a adoção13, já se permitiu a investigação biológica para atender a necessidade psicológica de conhecimento de seus ancestrais ou para garantir a saúde do filho ou pais biológicos em caso de doença grave.
III.4 - Utilização da técnica por mulheres solteiras e de idade avançada
A Fecundação in Vitro, assim como a pílula anticoncepcional, teve grande impacto social ao permitir às mulheres que estão no mercado de trabalho a adiarem a maternidade, aumentando a sua idade reprodutiva para além dos 40 anos, e às solteiras se tornarem mães, mesmo sem um parceiro.
Por outro lado, acontecimentos dão conta da necessidade de uma seleção mais criteriosa dos candidatos à fertilização e uma regulamentação mais estrita das clínicas que disponibilizam a técnica. Uma das polêmicas ocorreu quando Carmen Bousada14, uma espanhola solteira que deu à luz gêmeos aos 67 anos, recorrendo à técnica, e que morreu no de câncer, deixando órfãos os filhos de apenas dois anos e meio.
III.5 - Ainda pairam dúvidas a respeito da existência de eventuais “efeitos colaterais” da técnica
Alguns estudos clínicos demonstram existir um vínculo entre a ocorrência de doenças raras e a Fecundação In Vitro, embora alguns especialistas afirmem que esta relação não é conclusiva. Cientistas franceses revisaram, em junho, todos os nascimentos assistidos em 33 clínicas registradas na França entre 2003 e 2007, e que resultaram no nascimento de mais de 15 mil crianças no total. Eles encontraram grandes más-formações congênitas em 4,24% dos nascimentos, enquanto na população em geral esta proporção varia entre 2% e 3%. Os principais problemas detectados foram doença cardíaca e no sistema urogenital, com mais frequência em meninos15.
Um estudo realizado pela Academia Americana de Pediatria, e apresentado durante a Conferência Nacional de Exposições, em Nova Orleans, nos Estados Unidos também acusa uma relação entre o método e as doenças congênitas. As crianças que nasceram por meio de fertilização apresentam problemas principalmente nos olhos, coração, sistema urinário e órgãos reprodutivos16.
IV - CONCLUSÃO.
Por meio deste artigo, explicou-se, em linhas gerais, a técnica e origem histórica da Fecundação in Vitro, os avanços ocorridos em relação a tal técnica, a sua repercussão social, regulamentação hoje existente, para se chegar as principais implicações éticas envolvendo a questão.
Por meio da Fecundação in vitro o homem não só pode alterar o ritmo natural da vida, na medida em que é possível “fabricação” de bebês em laboratório, dissociando a geração de vida do ato sexual, como também a manipulação do seu material genético. A repercussão social da técnica é evidente, pois com ela pessoas até então com problemas de infertilidade e mulheres com idade avançada podem ter filhos. Da mesma forma, permite que casais com problemas genéticos possam gerar filhos isentos do “gene doente” e, também, que casais homossexuais ou mulheres solteiras possam ter filhos.
A técnica é atualmente muito difundida e utilizada, entretanto, a falta de legislação e uma fiscalização efetiva das clínicas e, ainda, a falta de bom senso, em alguns casos, causam preocupação. Certo é, também, que é difícil legislar a respeito, quanto mais porque a questão envolve pressupostos filosóficos e bases empíricas. Questiona-se, até mesmo, se é possível legislar sobre a questão, tendo em vista que a tecnologia avança em descompasso com o processo legislativo.
O lado negativo da Fecundação in vitro é a possibilidade de “coisificação” da vida. Em uma sociedade de consumo em que tudo se compra e que bebês podem ser “fabricados” em laboratório (e também lá descartados), escolhendo-se tal e qual característica física e genética em detrimento de outra, alugam-se úteros --- não que tais práticas sejam legais ou éticas, mas são possíveis! --- questiona-se se tal técnica, ao mesmo tempo em que configura um avanço da Biociência e Tecnologia, também não equivaleria a um retrocesso.
Nos tempos remotos, em histórias míticas e bíblicas, já se antevia a possibilidade da reprodução do homem sem sexo, contudo, certamente lá não se imaginaria que seria necessário o enfrentamento jurídico e ético-social de todas as questões polêmicas hoje existentes decorrentes da Fecundação in vitro.
De fato, a sociedade tem preocupação crescente com a incorporação de conquistas sociais que possibilitem que os seres humanos, independentemente de credos, condição econômica ou opção sexual, alcançarem a felicidade. Contudo, o preço de tudo isso não pode ser o desrespeito da vida humana em si mesma, quanto mais quando não há certeza científica sobre o início da vida humana. “Esta, aliás, é uma das grandes preocupações atuais. Definir limites capazes de assegurar o respeito à vida humana, considerada em sim mesma, bem como enquanto direito essencial para a preservação da própria espécie e, ao mesmo tempo, não coibir o avanço da pesquisa médica é tarefa árdua, em que o bom senso e o sopesar preciso de avanços e retrocesos são determinantes”17.