1 – INTRODUÇÃO
O título proposto para este trabalho é formulado como uma indagação. E não poderia ser diferente, pois o que se pretende é suscitar o debate, possibilitando uma revisão crítica de certos conceitos que se tornaram praticamente indiscutíveis, sendo repetidos sem maiores meditações acerca de seu real alcance e conteúdo.
Responder à questão sob o prisma técnico seria realmente missão hercúlea, implicando a necessidade do conhecimento das mais diversas áreas da cultura e da ciência. Para esse objetivo nem o estreito espaço reservado a este breve artigo, nem muito menos o rol de conhecimentos (bastante limitado) do autor seriam suficientes.
Ainda que se pretendesse apresentar uma resposta mais geral, versando somente sobre a viabilidade da apresentação de um projeto amplo de desenvolvimento baseado no conceito de sustentabilidade, parece que tal empreitada não seria tão simples e, mais importante que isso, precisaria passar por uma prévia avaliação da validade ou legitimidade, sob o ponto de vista ecológico, da idéia de “desenvolvimento sustentável”. Antes de pensar em como aplicar a idéia em discussão nas diversas áreas da atividade humana, empreendendo os necessários estudos técnicos especializados, é imprescindível questionar se a concepção de um chamado “desenvolvimento sustentável”, expressão tão corrente nestes dias, corresponde realmente a uma nova alternativa, a uma verdadeira e profunda mudança paradigmática, que vá reverter o quadro de crise ecológica; ou se é apenas mais uma expressão vazia que só maquia, troca nomes, mas corresponde à continuidade de um modelo antiecológico.
Pretende-se, portanto, simplesmente lançar a questão, propondo o debate mediante a necessária revisão crítica do tema, a fim de que não prolifere a repetição automática de um jargão, sem a imprescindível reflexão de seu significado e implicações. Afinal, embora seja ecologicamente correta a luta em defesa das aves em extinção, nem por isso devem os ecologistas se permitir transformarem-se em papagaios que repetem e não refletem.
2 – MUDANÇA OU CONTINUÍSMO?
É um lugar comum nos discursos sobre o enfrentamento da crise ecológica a alusão à emergência da adoção de um modelo inovador de “desenvolvimento sustentável”.
O uso dessa terminologia teve sua raiz na Conferência Mundial de Meio Ambiente de 1972, em Estocolmo. Daí em diante o termo tem sido repetido continuamente, sendo fato que na ECO – 92 foi empregado em “onze de seus vinte e sete princípios”.[1]
Em resumo, a idéia do “desenvolvimento sustentável” consiste no reconhecimento de que os “recursos naturais” não são inesgotáveis, de modo que as atividades econômicas e industriais não podem se desenvolver ignorando ou desprezando esse importante dado. Segundo Fiorillo, “o princípio do desenvolvimento sustentável tem por conteúdo a manutenção das bases vitais da produção e reprodução do homem e de suas atividades, garantindo igualmente uma relação satisfatória entre os homens e destes com o seu ambiente, para que as futuras gerações também tenham oportunidade de desfrutar os mesmos recursos que temos hoje à nossa disposição”.[2]
Não deixa de ser um progresso a tomada de consciência, embora tardia, quanto à necessidade de preservação ambiental. É positiva a iniciativa de pôr freios ao desenvolvimento depredador da natureza, destacando o fato concreto de que o destino da própria humanidade encontra-se ameaçado em virtude dessa prática irresponsável.
Inobstante verifica-se sem muita dificuldade, que o conceito e o sentido dado ao chamado “desenvolvimento sustentável” não altera o paradigma antropocêntrico e utilitário que tem marcado tradicionalmente a relação entre a humanidade e a natureza. Esta continua sendo enfocada sob um ponto de vista meramente instrumental, servindo sempre e somente para a satisfação das necessidades e dos interesses humanos.
Sem pretender levar a reflexão somente para o campo dos significado das palavras, mas considerando também relevante esse aspecto, é interessante notar que a própria insistência no termo “desenvolvimento” já indica uma tendência à perpetuação do modelo antiecológico dualista que promove uma ruptura entre o homem e o restante da natureza.
Como alerta Gonçalves, pagamos um preço “por não analisar o significado do que seja desenvolvimento que, antes de qualquer outra coisa, é des (+) envolver, isto é, quebrar o envolvimento dos homens e mulheres entre si e com a terra, com a água, com as plantas, com os animais, com o sol, com a lua (...). Assim, des (+) envolver é separar aqueles homens e aquelas mulheres da natureza; é torná-los livres dela. A natureza, assim, também separada desses homens e mulheres, deve estar livre para ser transacionada e apropriada por alguém que, como é da lógica desse processo, não é mais aquele que dela antes já dispunha sem precisar comprá-la”.[3]
A solução para a crise ecológica não pode ser satisfeita com essa espécie de concepção. Ao contrário do dualismo, da separação ou ruptura, está a exigir uma nova visão moldada sob uma ótica integradora do homem junto à natureza.
Portanto, há que ter em mente que “a expressão ‘sustentabilidade do desenvolvimento’, não significa um ajustamento complementar à racionalidade do desenvolvimento moderno (...). A sustentabilidade do desenvolvimento é um problema complexo, porque a sua essência está imbricada em um tecido de problemas inseparáveis, exigindo uma reforma epistemológica da própria noção de desenvolvimento”.[4]
Quando se fala em “desenvolvimento sustentável” deve-se ter clara essa noção de que uma verdadeira mudança de paradigma se impõe, inclusive superando o próprio significado literal e usual das palavras. Sem essa guinada radical, a expressão enfocada passa a fazer parte de um palavrório estéril que nada de revolucionário comporta e não pode contribuir efetivamente para a conformação de um novo modelo sócio – econômico voltado para princípios ecológicos de respeito à natureza.
No máximo, o que pode representar o chamado “desenvolvimento sustentável”, desprovido dessa ótica inovadora, é um retardamento dos processos de exploração e deterioração ambientais, mas não uma efetiva mudança de rumos.
Michel Serres exemplifica esse fenômeno com a metáfora de um navio que avança em alta velocidade na direção de uma rocha com a qual se chocará. Devido a isso, o Capitão determina que simplesmente se reduza a velocidade, esquecendo o essencial, que seria a alteração da rota. [5]
Sem perscrutar um sentido mais profundo de caráter revolucionário e inovador, “a expressão ‘desenvolvimento sustentável’ confunde e não simboliza uma nova forma de se pensar o mundo”. O desenvolvimento atrelado ao velho modelo espoliador e dominador “apresenta-se apenas como material e unidimensional, portanto, como mero crescimento” e “a sustentabilidade é apenas retórica e ilusória”.[6]
Como bem expõe Gudynas, “as atuais posturas de desenvolvimento sustentável exigem um enfoque crítico cauteloso. Nelas não se renuncia ao velho paradigma do desenvolvimento pelo crescimento econômico; pelo contrário, ele é ajustado a uma dimensão ecológica. Assim, a disseminação de uma nova política neoliberal, que enfatiza o mercado como cenário privilegiado das relações sociais, também está gerando sua própria política ambiental”.[7]
3 – CONCLUSÃO
No decorrer deste trabalho levou-se a efeito uma revisão crítica do conceito disseminado de “desenvolvimento sustentável”, apontando-se para seu uso indiscriminado e acrítico, num contexto de reprodução e continuidade de um modelo antropocêntrico e antiecológico de domínio e exploração do mundo natural.
Repensar os conceitos de desenvolvimento e sustentabilidade é um projeto emergencial que impõe uma mudança muito mais profunda do que simples paliativos ou processos de retardamento de um inevitável esgotamento das fontes de “recursos naturais”[8], sob pena de, ao invés de promover verdadeiras mudanças do modelo sócio – econômico no aspecto ecológico, simplesmente travestir o velho paradigma com uma nova roupagem, o que em nada contribui para a solução da crise ecológica, mas somente conduz à sua ocultação ou dissimulação, fato este que tem o potencial de torná-la ainda mais perigosa, pois quando descoberto o equívoco, talvez já seja tarde demais.
A própria pretensão de manter uma coexistência equilibrada entre a preservação ambiental e o desenvolvimento econômico, “de modo que aquela não acarrete a anulação deste”[9], tendo como objetivo o crescimento ilimitado dentro do modelo econômico consumista do capitalismo, é algo que merece uma restrição severa quando de uma análise crítica séria de sua viabilidade. Em muitas situações ditos objetivos são mutuamente excludentes, de modo que a mudança paradigmática deve ser bem mais radical do que uma pretensa postura eclética, que pretende teoricamente conciliar o inconciliável.
Como esclarecido inicialmente, o objetivo deste trabalho não foi a apresentação de soluções para o problema ecológico em face do desenvolvimento, mas sim o levantamento de um questionamento imprescindível como prévio requisito para qualquer abordagem séria do tema. Ficam, portanto, ao final, as perguntas: É sustentável a tese do desenvolvimento sustentável? Quais são as verdadeiras alternativas para a crise ecológica contemporânea? Qual seria um novo modelo sócio – econômico que superasse o antropocentrismo e respeitasse os princípios ecológicos? Qual o papel de cada um e das instituições (em especial da universidade) na construção de um novo paradigma ecologicamente correto?
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BOFF, Leonardo. Ecologia: grito da terra, grito dos pobres. Rio de Janeiro: Sextante, 2004.
COIMBRA, José de Ávila Aguiar (org.). Fronteiras da Ética. São Paulo: Senac, 2002.
FIORILLO, Celso Antonio Pacheco. Curso de Direito Ambiental Brasileiro. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 2004.
GUDYNAS, Eduardo. Ética, ambiente e ecologia: uma crise entrelaçada. Revista Eclesiástica Brasileira. Petrópolis: Vozes, nº. 52, fascículo 205, mar., 1992, p. 64 – 74.
MORIN, Edgar, TERENA, Marcos. Saberes Globais e Saberes Locais. 3ª ed. Trad. Paula Yone Stroh. Rio de Janeiro: Garamond, 2001.
SERRES, Michel. O Contrato Natural. Trad. Serafim Ferreira. Lisboa: Instituto Piaget, 1994.
[1] FIORILLO, Celso Antonio Pacheco. Curso de Direito Ambiental Brasileiro. 5a. ed. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 24.
[2] Op. cit., p. 25.
[3] GONÇALVES, Carlos Walter Porto. Natureza e sociedade: elementos para uma ética da sustentabilidade. In: COIMBRA, José de Ávila Aguiar (org.). Fronteiras da Ética. São Paulo: Senac, 2002, p. 259.
[4] MORIN, Edgar, TERENA, Marcos. Saberes globais e saberes locais. 3ª ed. Trad. Paula Yone Stroh. Rio de Janeiro: Garamond, 2001, p. 9.
[5] O Contrato Natural. Trad. Serafim Ferreira. Lisboa: Instituto Piaget, 1994, p. 54.
[6] BOFF, Leonardo. Ecologia: grito da Terra, grito dos pobres. Rio de Janeiro: Sextante, 2004, p. 97.
[7] GUDYNAS, Eduardo. Ética, ambiente e ecologia: uma crise entrelaçada. Revista Eclesiástica Brasileira. Petrópolis: Vozes, nº. 52, fasc. 205, mar., 1992, p. 68 – 69.
[8] Eis outra expressão de forte conteúdo antropocêntrico e antiecológico em cuja análise crítica não se adentrará neste trabalho, mas bem pode ser um excelente tema para reflexões futuras.
[9] FIORILLO, Celso Antonio Pacheco. Op. cit., p. 26.