É fato indubitável que o direito processual civil, em nível mundial, passou por enormes transformações até alcançar sua forma atual.
Desde os primórdios da civilização organizada, até os dias atuais, os povos têm tido como preocupação constante a busca de um instrumento efetivo para a pacificação social.
Nesse sentido, as diversas sociedades evoluíram de modo a encontrar a melhor maneira de solucionar seus conflitos.
Nesse caminho percorrido [1], desde a época do Código de Hamurabi, podemos identificar essas formas de solução de litígios, conhecidas hoje como substitutos (ou equivalentes) jurisdicionais, a saber, autodefesa, auto-composição e mediação.
Essa busca encerra-se, de certo modo, com a adoção da jurisdição, que, a partir de meados do século XIV, torna-se a forma predominante de solução dos litígios [2].
Desde então, a jurisdição passa às atribuições do Estado. O Poder Estatal passa a ser enxergado como um todo que é exercido em três vertentes distintas, conforme sua área de atuação.
A partir daí, delineiam-se as três funções do Estado: administrar, legislar e julgar. É nesse contexto que o Estado-Juiz assume a responsabilidade de exercer a jurisdição, compondo de forma imperiosa e definitiva os litígios [3].
A Jurisdição apresenta, portanto, como vantagens, a imparcialidade, a defesa dos direitos da sociedade e a autoridade e capacidade de impor a decisão tomada. Seus elementos básicos são a lide [4] (existência de uma demanda ajuizada, ou seja, um autor que vem a juízo a fim de deduzir sua pretensão e obter a prestação jurisdicional do Estado-Juiz), a inércia [5] (o fato de o juiz não agir de ofício, mas somente quando provocado pelas partes), a substitutividade [6] (o monopólio da função jurisdicional) e a definitividade [7] (caber ao Judiciário dar a palavra final nos conflitos e questões jurisdicionalmente suscitados).
Essas quatro características traduzem a própria jurisdição exercida pelo Estado-Juiz, através de um instrumento denominado processo. Assim, o Juiz irá adequar aquele caso concreto que lhe é submetido à "moldura legal" [8], aplicando o dispositivo legal pertinente à questão, e solucionando o conflito de forma a garantir seja proporcionada aos membros da sociedade a justiça por eles esperada quando elegeram o Estado-Juiz como "único solucionador" de seus conflitos.
Esta é a realidade que prepondera hoje de forma quase absoluta na ordem processual mundial.
Ocorre que, a jurisdição, com o passar do tempo, tem se mostrado ineficaz em diversas situações, pelos mais variados motivos.
Tal situação, confrontada com a crescente modificação da sociedade, vem ensejando uma busca por novos instrumentos jurisdicionais [9].
Nessa esteira, na ordem jurídica processual foram inseridos dispositivos que procuravam diminuir o nível de obstrução das vias jurisdicionais.
No Brasil foram adotadas basicamente duas formas de atuação.
Numa primeira linha foram criados e desenvolvidos mecanismos de tutela de interesses metaindividuais, tais como a ação popular, a ação civil pública, o mandado de segurança coletivo e outras ações coletivas, previstas não só na Lei nº 7.347/85, mas também no Código de Defesa do Consumidor e no Estatuto da Criança e do Adolescente, entre outros.
Numa segunda linha, a ação foi diversificada; numa primeira vertente, os procedimentos tradicionais foram abreviados, suprimindo-se fases desnecessárias ou aperfeiçoando-se a redação dos dispositivos legais, evitando-se assim maiores delongas processuais em razão de divergência de interpretação acerca dos mesmos [10]. Numa segunda vertente, procurou-se simplificar alguns procedimentos, (principalmente aqueles que versavam sobre pequenas disputas, na área cível, e infrações de menor potencial ofensivo, na área criminal) através da adoção de princípios como a oralidade, imediatidade, concentração e informalização, todos envoltos numa atmosfera conciliatória.
Seguindo a primeira linha de atuação, foi editada no Brasil a Lei nº 7.347/85, que disciplinou a ação civil pública [11].
Contudo, o aparelho judiciário, apesar de inúmeras tentativas de melhora, tem se mostrado lento na compreensão das questões coletivas [12], o que desperta, cada vez mais, a atenção dos doutrinadores para a questão do acesso à justiça, sobretudo na jurisdição coletiva.
O acesso à justiça é sem dúvida o tema mais em voga nos dias atuais. Não apenas por sua estreita relação com a viabilidade política de um Estado Democrático de Direito, mas principalmente ante os recentes episódios que se passaram em nosso país e que acabaram por culminar num grande Projeto de Reforma do Poder Judiciário.
Ocorre que, como adverte Kazuo Watanabe [13], esta questão é bastante complexa, pois é necessária uma nova mentalidade a fim de que se assegure o acesso à ordem jurídica justa.
Ampliando essa ótica, e trazendo novas luzes, J.J. Calmon de Passos afirma ser necessário conceber o processo como instrumento de realização efetiva dos direitos individuais e coletivos, sendo então, em última análise um instrumento político de participação social [14].
Essa perspectiva é suficiente para que se tenha uma idéia do que seja o acesso à justiça e de sua importância.
De se ressaltar, contudo, ter tal importância alçado, há muito, foros internacionais, por intermédio das obras do insuperável Mauro Cappelletti [15].
Dessa forma, Mauro Cappelletti introduz e apresenta ao mundo suas "Ondas Renovatórias do Direito Processual" que vêm sendo estudadas como a base do moderno direito processual, não mais cegamente vinculado a regras formais, mas sim comprometido com as novas necessidades sociais, e atento às modificações em todos os ramos da vida humana.
Isto se dá como verdadeira necessidade de sobrevivência de qualquer disciplina jurídica.
Assim, se o direito é necessário para regulamentar a vida em sociedade e se é certo que essa sociedade está em permanente evolução, a ciência jurídica encontra-se, inexoravelmente, no seguinte dilema: ou acompanha a evolução, fornecendo as soluções adequadas e necessárias a se manter a ordem no Estado Democrático de Direito, evitando de um lado o autoritarismo e de outro a anarquia, ou torna-se obsoleta e desprovida de qualquer serventia, o que acarretará sua mais perfeita falta de efetividade, utilizando-se aqui o termo no contexto proposto por Luis Roberto Barroso [16], para quem isto significa "a realização do Direito, o desempenho concreto de sua função social", bem como "a materialização, no mundo dos fatos, dos preceitos legais e simboliza a aproximação, tão íntima quanto possível, entre o dever-ser normativo e o ser da realidade social".
Tendo em vista todas as considerações acima aduzidas, não fica difícil perceber a grande importância de um estudo mais aprofundado do direito processual, o que, indubitavelmente, só pode ser feito dentro de uma perspectiva voltada ao acesso à justiça.
Entretanto, tal estudo torna-se mais específico na medida em que este acesso à justiça deve ser garantido numa ordem civil constitucional, e não apenas nas demandas individuais, mas também, e principalmente, nas coletivas, pois aí residem as grandes carências e necessidades da sociedade de massa.
É nesse contexto que voltamos ao pensamento de Cappelletti para concluir que o direito, tanto material como processual, não pode ficar estagnado, sob pena de cair em desuso ou, ou que é pior, deixar de atender aos anseios sociais, perdendo assim sua razão de ser [17].
Destarte, torna-se imperioso nos dias de hoje, quando estamos imersos numa ordem coletiva, investigar qual é o meio mais eficaz para a proteção dos direitos transindividuais [18].
Isto porque vivemos em uma sociedade de produção em massa; temos relações de troca e de consumo em massa, bem como conflitos de massa.
Desta forma, não mais procurar-se-á a Justiça apenas para dirimir-se conflitos de caráter meramente individual, mas também para a solução doutros de natureza eminentemente coletiva, já que envolvem grupos, classes e coletividades. Em outras palavras, trata-se de "violações de massa" [19].
Na realidade, a complexidade da sociedade moderna, com intrincado desenvolvimento das relações econômicas, dá lugar a situações nas quais determinadas atividades podem trazer prejuízos aos interesses de um grande número de pessoas, fazendo surgir problemas desconhecidos às lides meramente individuais. Assim, os direitos e os deveres não se apresentam mais, como nos Códigos tradicionais, de inspiração liberal-individualística, como direitos e deveres essencialmente individuais, mas meta-individuais e coletivos.
Portanto, continuar, conforme a tradição individualística, a atribuir direitos exclusivamente a pessoas individuais significaria tornar impossível uma efetiva proteção jurídica dos direitos coletivos, exatamente na ocasião em que surgem como elementos cada vez mais essenciais para a vida civil (direito ao meio-ambiente, à saúde, segurança social em sentido lato, etc.). Em suma, os direitos transindividuais pertencem, em última análise, à coletividade.
A tutela dos direitos coletivos traz em si uma grande dificuldade. Se esses direitos pertencem a todos, quem vai tutelá-los? É verdade que cada cidadão possui uma "cota-parte" desse direito. Entretanto, a fim de ser ele bem defendido, é necessária a fixação de uma instituição que o titularize e tenha reais condições de desempenhar um bom trabalho.
De nada adiantaria criar um direito coletivo sem que uma pessoa processual recebesse a incumbência de defendê-lo, uma vez que os interesses dessa magnitude são bastante amplos, o que torna inviável sua defesa por apenas uma pessoa.
A questão passa a ser então qual seria o ente mais adequado para formular tal defesa?
A resposta é automática no ordenamento brasileiro: o Ministério Público.
Não se está aqui defendendo que o Parquet tenha a titularidade privativa para a defesa desse direito. No entanto, é muito difícil combater o fato de que o Ministério Público é parte prioritária ou a pessoa processual mais bem preparada para tanto [20], como, aliás, foi constatado cabalmente pela pesquisa de campo levada a efeito recentemente na Uerj, sob a coordenação do Professor Paulo Cezar Pinheiro Carneiro [21].
Essa mesma pesquisa apontou ainda um baixo número de ações propostas por associações civis, o que denota o tímido grau de organização da sociedade brasileira, e que vem ao encontro da posição acima sustentada no sentido de que deve o Ministério Público suprir esta deficiência até que ela seja sanada, através de uma conscientização social.
Por outro lado, é de se frisar que em determinados casos, há um grande poder econômico ou político em jogo, que reflete de forma negativa no autor da ação.
Eis mais uma razão para o acerto da solução em se reconhecer sempre a legitimação do Parquet, pois enquanto instituição autônoma, independente frente às três funções do Poder Público, e dotada de estrutura organizada, tem maiores e melhores condições de obter um resultado processual positivo.
Todas essas considerações devem ser colocadas num ambiente processual renovado; em outras palavras, as velhas regras e estruturas processuais em questão de legitimação e interesse de agir, de representação e substituição processual e de limites subjetivos e objetivos da coisa julgada precisam ser urgentemente revistas e alteradas em prol da defesa da sociedade.
Nesse sentido, Paulo Cezar Pinheiro Carneiro [22], propõe um re-estudo da garantia constitucional do acesso à justiça, a partir de quatro grandes princípios, a saber: acessibilidade, operosidade, utilidade e proporcionalidade.
A acessibilidade significa a existência de sujeitos de direito, capazes de estar em juízo, sem obstáculos de qualquer natureza, utilizando adequadamente o instrumental jurídico, e possibilitando a efetivação de direitos individuais e coletivos.
Isto se dá através do direito à informação, da garantia de uma legitimidade adequada e da gratuidade da justiça para os necessitados.
Operosidade, a seu turno, significa que todos os envolvidos na atividade judicial devem atuar de forma a obter o máximo de sua produção, para que se atinja o efetivo acesso à justiça.
Este princípio se aplica no campo subjetivo a partir de uma atuação ética de todos os sujeitos do processo, os quais devem sempre zelar pela efetividade da atividade processual. No campo objetivo, pode ser instrumentalizado através da utilização correta dos meios processuais, priorizando sempre a busca da verdade real e a índole conciliatória.
Por utilidade entende-se que o processo deve assegurar ao vencedor tudo aquilo a que ele tem direito a receber, da forma mais rápida e proveitosa, garantindo-se, contudo, o menor sacrifício para o vencido. Isto é instrumentalizado através dos seguintes fatores: a) superação da dicotomia segurança versus celeridade, binômio que deve ser aquilatado caso a caso, no curso do feito; b) utilização das espécies de tutela de urgência; c) concretização da execução específica como regra, adotando-se a genérica apenas excepcionalmente; d) fungibilidade da execução, especificamente no campo dos direitos do consumidor (art. 6º, inciso V do C.D.C.), propondo o autor, o aumento da incidência dessa regra para outros campos do direito; e) alcance subjetivo da coisa julgada, sobretudo nas ações coletivas; e f) limitação da incidência das nulidades, como corolário do princípio da instrumentalidade do processo.
Por fim, o princípio da proporcionalidade, que se traduz pela escolha a ser feita pelo julgador quando existem dois interesses em conflito. Deve ele se orientar por privilegiar aquele mais valioso, ou seja, o que satisfaz um maior número de pessoas.
Dessa forma, um direito coletivo deve ter "mais valor" [23] do que um individual. Esse princípio deve se manifestar tanto no que pertine à legitimidade, concessão de medidas de urgência, ônus da prova (inversão), utilização de prova ilícita, fungibilidade de execução e coisa julgada.
Toda essa concepção deve ser compatibilizada, ou melhor dizendo, deve ser adotada pelo Poder Judiciário, hoje tão em voga nos noticiários.
A bem da verdade, talvez entre todos os sujeitos processuais, seja o Juiz aquele que mais necessite modificar sua mentalidade [24], a fim de adequá-la aos modernos postulados do direito processual coletivo.
Não nos cabe aqui exemplificar ou especificar esta afirmação. Contudo, é certo que não raros autores vêm se dedicando a esse mister, não com intuito destrutivo ou de atacar a magistratura enquanto instituição, mas no intuito de contribuir para a adoção de uma nova postura [25].
Para contribuir na execução desta tarefa [26], em 1992 foi encaminhado ao Congresso Nacional o Projeto de Emenda Constitucional nº 96, hoje transformado em 96-A, acrescido de diversos substitutivos, de autoria original do Deputado Hélio Bicudo.
Posteriormente, foi publicado o Relatório Final do referido Projeto [27], cuja relatoria coube, inicialmente ao Deputado Aloysio Nunes Ferreira, e, posteriormente, à Deputada Zulaiê Cobra. A votação já foi iniciada, mas tem se prolongado em razão da complexidade da matéria [28]- (29).
Dentre as principais soluções apontadas no Projeto de Emenda Constitucional em referência, exsurge a instituição do Controle Externo do Poder Judiciário, através de um órgão denominado Conselho Nacional da Justiça, previsto e regulamentado na nova redação do artigo 103-A [30].
Entretanto, pensamos que o Projeto de Emenda à Constituição poderia ter avançado um pouco mais no que tange à proteção dos direitos coletivos.
Soluções mais práticas como a utilização dos juizados especiais cíveis e da arbitragem em sede de ação coletiva poderiam ser implementadas sem um esforço muito grande e, em determinados casos, poderiam surtir excelente efeito [31].
Por outro lado, o próprio direito processual tradicional deve se reciclar, a exemplo do que vem sendo feito pelo direito civil, a fim de ganhar fôlego para enfrentar o próximo milênio, onde uma sociedade de massa, cada vez mais globalizada, recorrerá ao Poder Judiciário deduzindo pretensões coletivas e de extensão social.
Novamente aqui a questão se põe em foco; ou o direito processual civil se renova e se adequa às novas necessidades sociais, ou perderá em grande parte sua efetividade e contribuirá para elevar o nível de tensão social, na medida em que estará falhando em seu objetivo de promover a paz e o bem comum na sociedade [32].
Para que isso se implemente, é necessário mudar o enfoque das relações processuais do âmbito individual e patrimonial para o eixo da indisponibilidade, quando se tratar de uma demanda coletiva.
Em outras palavras, se há alguns anos atrás o mestre Cândido Dinamarco [33] revolucionou o direito processual através do postulado da instrumentalidade do processo, faz-se necessário agora um novo avanço – dar mais um passo – qual seja promover a despatrimonialização do direito processual, até mesmo para manter esse sentido de instrumentalidade atualizado.
Isto implica, diretamente, na adoção de uma mentalidade que privilegie o caráter indisponível dos direitos tutelados por meio da ação coletiva, dada a sua clara extensão social.
Não basta, pois, a existência de um direito civil constitucionalizado; há que haver também um direito processual civil efetivamente dotado de carga constitucional, sobretudo em sede de jurisdição coletiva [34].
Somente dessa forma estaremos adequando o direito adjetivo aos modernos avanços da ciência jurídica e promovendo a real e concreta executoriedade do mandamento constitucional do acesso à justiça.
Isto porque, de nada adianta a existência de um dispositivo constitucional amplo e de aplicação imediata e abstrata se os operadores do direito buscam desculpas ou às vezes brechas no sistema legal para, por intermédio de uma interpretação literal, forçar um retrocesso histórico que só atende a alguns poucos interesses individuais, em detrimento do amplo e predominante interesse público.
Por outro lado, é forçoso reconhecer que a jurisdição coletiva apresenta-se como uma das grandes soluções para o crônico problema da obstrução das vias jurisdicionais [35].
Tem ela a capacidade de fazer convergir, em uma única relação processual, uma enorme gama de interesses.
Isso é benéfico à sociedade, pois haverá um processo mais consistente, onde as chances de vitória do autor são maiores, e à própria administração da Justiça, já que um processo coletivo evita o ajuizamento de dezenas, centenas, ou, até mesmo, milhares de ações individuais.
Finalmente, essa evolução no direito material e no direito processual só se tornará plenamente efetiva com a própria evolução da atuação do Ministério Público como órgão agente nas demandas coletivas.
É necessário, destarte, adotar uma nova mentalidade na concepção das questões processuais em sede de jurisdição coletiva.
Não é possível a cega utilização dos institutos tradicionais do direito processual civil, tais como legitimidade, litisconsórcio, condições para o regular exercício do direito de ação e coisa julgada, às novas questões sociais que surgem, eis que presenciamos hoje o surgimento de um direito processual eminentemente coletivo.
Esta é a tarefa para qual todos somos chamados nos dias atuais. Cabe a nós aceitar o desafio e ajudar a manter e efetividade do direito processual ou rejeitar a oferta, contribuindo, assim, voluntária ou involuntariamente, para o desuso da jurisdição como instrumento de solução de conflitos, e aumento do nível de tensão social.