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O adicional noturno e sua compatibilidade com o subsídio:

respeito aos princípios reitores do Estado Democrático de Direito

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Agenda 09/05/2014 às 13:34

O adicional noturno aos servidores remunerados por subsídio configura, além de direito deles e dever do Estado, à luz dos princípios da dignidade da pessoa humana, da isonomia e da proibição do retrocesso dos direitos fundamentais, um prestígio àqueles que atuam em uma situação fisiológica, psicológica e social mais desfavorável.

Resumo: O sistema remuneratório dos servidores públicos, antes formado por vencimento e remuneração, passou a contar, a partir da Emenda Constitucional nº19/98, com um terceiro ente, o subsídio, que veio a ser previsto como “parcela única, vedado o acréscimo de qualquer gratificação, adicional, abono, prêmio, verba de representação ou outra espécie remuneratória”. Desde o advento da Medida Provisória nº 305/2006, convertida na Lei 11.358/2006, diversas espécies remuneratórias, antes destinadas aos agentes públicos subvencionados pelo Executivo Federal, dentre elas o adicional noturno, foram excluídas. O presente trabalho visa a tratar do aparente conflito entre a norma constitucional que aborda o sistema remuneratório do subsídio e a que alberga o direito que assiste aos ocupantes de cargos públicos, contemplado no art. 39, § 3º, da Magna Carta, que ordena que seja aplicado a eles o direito à remuneração do trabalho noturno superior à do diurno. Ao final, o objetivo é mostrar que a manutenção do adicional noturno configura, além de um direito do servidor e um dever do Estado, à luz dos princípios da dignidade da pessoa humana, da isonomia e da proibição do retrocesso dos direitos fundamentais, um prestígio àqueles que atuam em uma situação fisiológica, psicológica e social mais desfavorável, sendo que interpretação diversa deve ser dada por inconstitucional.

Palavras-chave: Direitos fundamentais. Direitos sociais. Subsídio. Adicional noturno. Isonomia. Proibição de retrocesso.


1. INTRODUÇÃO

O Estado de Direito, como o concebemos nos dias atuais, passou por longas transformações ao longo da história, transmutando-se desde um Estado Absolutista até um Estado democrático de Direito, trajetória essa pautada por muitas lutas na persecução de direitos, sobrevindo, primeiramente, os ditos direitos individuais, aos quais se somaram os direitos sociais e, por fim, os meta-individuais.

O presente trabalho pretende se ater aos direitos sociais em nossa ordem constitucional, em especial ao direito à percepção de remuneração do trabalho noturno superior à do diurno (comumente conhecido como adicional noturno), e ao conflito entre a norma constitucional que manda sejam aplicados, aos ocupantes de cargo público, referida remuneração, contemplada no art. 39, § 3º, da Magna Carta, e a norma insculpida também no art. 39, em seu § 4º, que prevê para estes mesmos servidores, quando subvencionados pelo Executivo Federal, o ente remuneratório do subsídio, “parcela única, vedado o acréscimo de qualquer gratificação, adicional, abono, prêmio, verba de representação ou outra espécie remuneratória”.

Ver-se-á que, diante os princípios reitores de nosso Estado democrático de Direito e da aplicação das regras de hermenêutica constitucional, tal conflito é tão-somente aparente, e que o direito à remuneração diferenciada entre o trabalho em turnos/noturno e o diurno, mais que um direito fundamental social, conquistado, como tantos outros, a duras penas, durante séculos de evolução histórica do Estado de Direito, configura-se num prestígio àqueles servidores que atuam em uma situação fisiológica, psicológica e social mais adversa.


2. A EVOLUÇÃO DO ESTADO DE DIREITO E AS GERAÇÕES DE DIREITOS FUNDAMENTAIS

A evolução dos direitos fundamentais está intimamente ligada à evolução do Estado, posto que antes de se submeter ao império das leis, ou seja, antes de se transmutar em um Estado de Direito, de um modo geral, o Estado era personificado por um único homem ou grupo de homens, fosse ele chamado imperador, faraó, césar, senado, czar, senhor feudal, rei (lembremo-nos da lendária frase atribuída ao monarca absolutista francês Luiz XIV: l'etat c'est moi) que detinha características de divindade suprema, fonte de todo o ordenamento jurídico, mas imune a ele. Assim, livre para não se submeter a suas próprias leis, tal Estado não tinha obrigação para com seus súditos, tidos estes com simples sujeitos de obrigações e não de direitos.

É certo que a antiguidade clássica não ficou na completa escuridão frente às ideias dos direitos fundamentais, em que o pensamento sofístico se aproximava da ideia de igualdade natural e de humanidade tendo por base a mesma natureza biológica de todos os homens; que em Roma, no plano filosófico e político (e apenas nestes) a ideia de igualdade de direitos entre os homens também floresceu; que tais ideias também floresceram dentro das concepções cristãs medievais do direito natural elaboradas por São Tomás de Aquino e que os direitos fundamentais tiveram, para alguns, seus primeiros esboços nas cartas de franquia medievais, dentre as quais se destaca a Magna Charta Libertatum de 1215, que vinculava a obediência a certos direitos de supremacia do rei à obediência deste para com certos direitos de liberdade estamentais dos senhores feudais. Também não se pode negar que as ideias de “contrato social”, estatuídas por Hobbes, ainda que legitimassem o absolutismo, também levaram, a partir das ideias de Locke, à defesa da autonomia privada, e, notadamente do direito à vida, à liberdade e à propriedade (CANOTILHO, 1997).

Entretanto, foi tão somente com a luta da burguesia pela não intervenção do Estado (antes tido por Absolutista) na autonomia privada, pelos chamados direitos de defesa dos cidadãos perante o Estado, que culminou com a Revolução Francesa, que as primeiras sementes dos direitos fundamentais realmente brotaram de fato, nascendo consigo o Estado de Direito, definido como “aquele Estado cujo poder e atividade estão regulados e controlados pela lei, entendendo-se direito e lei, nesse contexto, como expressão de vontade geral” (grifo no original) (DÍAZ, 1975, p. 13 apud MENDES, COELHO, BRANCO, 2009, p. 64).

De se notar que esta passagem de Estado Absolutista para Estado de Direito (e este por suas diversas fases: liberal, social e democrático) não se deu de forma linear, constante e de uma vez por todas, mas sim, realizou-se com avanços e retrocessos (MENDES, COELHO, BRANCO, 2009). Sobre o seu surgimento frente o Estado Absolutista, ensina Manoel García-Pelayo:

Convém começar recordando que o Estado de Direito é, em sua formulação originária, um conceito polêmico orientado contra o Estado Absolutista, quer dizer, contra o Estado poder, contra o Estado polícia, que tratava de fomentar o desenvolvimento geral do país e fazer a felicidade de seus súditos à custa de incômodas intervenções administrativas na vida privada e que, como corresponde a um Estado burocrático, não era compatível com a sujeição dos funcionários e dos juízes à legalidade. O Estado de Direito, em seu primitivo sentido, é um Estado cuja função capital consiste em estabelecer e manter o Direito, cujos limites de ação estão rigorosamente definidos por este, ficando bem entendido que Direito não se identifica com qualquer lei ou conjunto de leis (...), mas apenas uma normatividade conforme com a ideia da legitimidade, da justiça, dos fins e dos valores a que devia servir o Direito. (...) significa, assim, uma limitação do poder do estado pelo Direito (...). (...) embora a legalidade seja um componente da ideia de Estado de Direito, não é menos certo que este não se identifica com qualquer legalidade, mas apenas com uma legalidade de determinado conteúdo e sobretudo com uma legalidade que não lesione certos valores pelos e para os quais se constituiu a ordem jurídica e política e que se expressam em norma e princípios que a lei não pode violar. Afinal, a idéia do Estado de Direito surge no seio do jusnaturalismo e em coerência histórica com uma burguesia cuja razões não são compatíveis com qualquer legalidade, nem com excessiva legalidade, porém precisamente com uma legalidade destinada a garantir certos valores jurídico-políticos, certos direitos imaginados como naturais que assegurassem o livre desenvolvimento da existência burguesa (GARCÍA-PELAYO, 1977, p. 52 apud MENDES, COELHO, BRANCO, 2009, p. 67).

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Da Revolução Francesa brotou a Déclaration des Droits de l'Homme et du Citoyen (26/08/1789) – Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão – documento que elencava  direitos individuais e coletivos dos homens  tidos como universais, posto que válidos e exigíveis a qualquer tempo e em qualquer lugar, pois pertinentes à própria natureza humana – que, juntamente o Virginia Bill of Rights (26/08/1776) – declaração de direitos que precede a Declaração de Independência dos Estados Unidos da América – foi o marco da positivação ou constitucionalização dos direitos fundamentais (CANOTILHO, 1997).

Vê-se surgir o que é denominado na doutrina como os direitos fundamentais de primeira geração, que impuseram aos governantes obrigações de não intervenção na vida privada dos indivíduos, referindo-se às liberdades individuais, tais como liberdade de culto, de consciência, de reunião, a inviolabilidade de domicílio (MENDES, COELHO, BRANCO, 2009). Direitos que diziam “respeito às liberdades públicas e aos direitos políticos (...), direitos civis e políticos a traduzirem o valor da liberdade” (LENZA, 2009, p. 670). Daí ter sido chamado Estado de Direito Liberal.

Canotilho e Vital Moreira elencam como elementos essenciais típicos da concepção liberal de direitos fundamentais o fato de os direitos fundamentais serem meros direitos de defesa do indivíduo contra o Estado, sendo que este não teria qualquer papel ativo no fomento dos direitos fundamentais, devendo apenas guardar o dever de omissão ante a esfera individual; serviriam as normas de direitos fundamentais apenas para garantir que a atividade estatal estaria restrita aos momentos em que fosse necessário garantir a ordem ao livre desenvolvimento da liberdade individual; vedada estaria qualquer ingerência do Estado na regulamentação sobre os direitos fundamentais, seja sobre seu conteúdo, seja sobre sua utilização; por fim, a liberdade garantida pelos direitos fundamentais teria um fim em si mesma, sendo inadmissível falar em liberdades individuais como meio para se alcançar finalidade diversa, como, por exemplo, liberdade para persecução da ordem democrática. A base de todas as liberdades seria o direito de propriedade privada e o direito de empresa (CANOTILHO, MOREIRA, 1991).

A despeito da importância que representou, tal modelo de Estado – não intervencionista sobre a economia e a vida privada da classe dominante, a burguesia – serviu apenas aos interesses de uma única classe social que, detentora do poder econômico, tratou logo de tomar para si o poder político e de transformar o Estado de Direito num singelo instrumento de concretização e legitimação da ideologia liberal: liberdade pessoal, propriedade privada, liberdade de contratar e liberdades de indústria e comércio, sem considerar as classes menos favorecidas e exploradas nessa nova ordem político-econômica.

Elias Díaz, em seu Estado de Derecho y sociedad democrática, faz um resumo das principais críticas a tal modelo, dizendo que:

(...) Com efeito, na ideologia liberal e na ordem social burguesa, os direitos naturais ou direitos humanos identificam-se, sobretudo, com os direitos da burguesia, direitos que só de maneira formal e parcial se concedem aos indivíduos das classes inferiores. No sistema econômico capitalista, que serve de base a esta ordem social, protegem-se muito mais eficazmente a liberdade e a segurança jurídica (ambas, por um lado, imprescindíveis) do que a igualdade e a propriedade: entenda-se, a propriedade de todos (destaque no original). (DÍAZ, 1983, p. 39-40 apud MENDES, COELHO, BRANCO, 2009, p. 68).

O mesmo autor segue, discorrendo sobre a passagem do chamado Estado de Direito liberal-burguês para o Estado social de Direito, seja de forma pacífica, com as políticas do Welfare State, seja de forma revolucionária, como ocorreu na Rússia em 1917 e na China em 1949:

Uma ampliação da zona de aplicabilidade destes direitos – mas sem alterar substancialmente os supostos básicos da economia – produz-se com a passagem ao Estado social de Direito; constituído este como intento necessário de superação do individualismo, por meio do intervencionismo estatal e da atenção preferencial aos chamados direitos sociais, o que aquele pretende é a instauração de uma sociedade ou Estado do bem-estar. Mais além deste, o processo dinâmico de democratização material e mesmo de garantia jurídico-formal dos direitos humanos, a sua mais ampla realização, é o que por sua vez, justifica, em minha opinião, a passagem do sistema neocapitalista do Estado social de Direito ao sistema, flexivelmente socialista, do Estado democrático de Direito. (DÍAZ, 1983, p. 39-40 apud MENDES, COELHO, BRANCO, 2009, p. 68).

O momento histórico que impulsiona tal mudança para o Estado social de Direito é o da Revolução Industrial europeia, no século XIX, que impôs à classe trabalhadora péssimas condições de trabalho. É quando sobrevêm movimentos reivindicando melhores condições laborativas e normas assistencialistas, inflados logo em seguida pela destruição provocada pela Primeira Guerra Mundial, no início do século XX (LENZA, 2009).

Surgiram variados Estados de seguro social, que impuseram uma política de massiva intervenção na economia e de ações estatais que buscavam a justiça social, tendo ganhado espaço uma diferente gama de direitos que não mais correspondiam a um não fazer do Estado, a uma prestação negativa, mas que obrigavam o Estado a prestações positivas: a implementação de serviços de saúde, de educação, de serviços sociais, de políticas prestacionais e protecionistas no âmbito trabalhista. Estavam nascendo os chamados direitos fundamentais de segunda geração (LENZA, 2009; MENDES, COELHO, BRANCO, 2009), que têm, como marcos históricos, a Constituição Mexicana de 1917, a Constituição de Weimar, de 1919, na Alemanha, e o Tratado de Versalhes, de 1919, que criou a Organização Internacional do Trabalho, a OIT. No Brasil, a primeira Constituição a prever os direitos sociais foi a de 1934, com Getúlio Vargas, que consagrou os direitos trabalhistas.

O princípio da igualdade de fato ganha realce nessa segunda geração dos direitos fundamentais, a ser atendido por direitos a prestação e pelo reconhecimento de liberdades sociais – como a de sindicalização e o direito de greve . Os direitos de segunda geração são chamados de direitos sociais, não porque sejam direitos da coletividade, mas por se ligarem a reivindicações de justiça social – na maior parte dos casos, esses direitos tem por finalidade indivíduos singularizados (destaque no original). (MENDES, COELHO, BRANCO, 2009, p. 268).

De se ver que os direitos públicos subjetivos criados, minimamente, pelo liberalismo, exigiam uma postura estatal negativa, ao passo que o Estado Social exigia uma conduta positiva, dirigente, ativista, onde se programassem políticas governamentais que, efetivamente, garantissem o mínimo de bem-estar à população.

Os elementos típicos essenciais da concepção social de direitos fundamentais residiriam no fato de os direitos de liberdade também serem direitos às condições materiais de seu exercício: não simples direitos negativos, de abstenção do Estado, mas positivos, impostos ao Estado, de modo a torna-los efetivos; os direitos sociais (ao trabalho, à saúde, à habitação, à educação) seriam, em primeira análise, direitos de liberdade, meios de libertação da miséria, da fome, da ignorância, da necessidade; de terem os direitos fundamentais um papel objetivo como elementos de transformação social, e não apenas uma função pessoal e individual, constituindo, desse modo, deveres fundamentais de natureza jurídica ou cívica perante os cidadãos, como indivíduos, e também perante a coletividade; de reclamarem, para sua efetiva proteção e realização, em maior ou menor grau, a intervenção estatal na economia (CANOTILHO, MOREIRA, 1991).

Ainda que importante o salto no incremento do rol dos direitos fundamentais, o Estado social de Direito não conseguiu levar a concretização desses direitos a todos, a tão esperada democratização econômica e social; não conseguiu garantir a justiça social nem a eficaz participação democrática do povo no processo político.

As ditaduras fascistas, os governos autoritários e, mais tarde, o modelo comunista vão cedendo lugar às novas democracias, vendo-se surgir então o Estado democrático de Direito que

(...) assentado nos pilares da democracia e dos direitos fundamentais, surge como uma forma de barrar a propagação de regimes totalitários que, adotando a forma de Estado Social, feriam as garantias individuais, maculando a efetiva participação popular nas decisões políticas (LA BRADBURY, 2006).

Um Estado de Direito no qual o poder emana do povo, que o exerce direta ou indiretamente por meio de seus representantes e que tem por finalidade assegurar o efetivo exercício não apenas dos direitos civis e políticos, mas também e especialmente dos direitos sociais, econômicos e culturais (MENDES, COELHO, BRANCO, 2009).

Com o Estado democrático de Direito, baseado na efetiva partição popular na vida política, num governo do povo, para o povo e pelo povo, surgem os direitos de terceira geração, de “titularidade difusa ou coletiva, uma vez que são concebidos para a proteção, não do homem isoladamente, mas de coletividades, de grupos” (MENDES, COELHO, BRANCO, 2009, p. 268).

Passa o Estado a tutelar, além dos interesses individuais e sociais, os transindividuais (ou metaindividuais), que compreendem, dentre outros, o respeito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, a paz, a autodeterminação dos povos e a moralidade administrativa (LA BRADBURY, 2006).

Hoje, fala-se em direitos fundamentais de quarta geração, que para Paulo Bonavides, seriam advindos do processo de “globalização política na esfera da normatividade jurídica” e compreenderiam o direito à democracia, à informação e ao pluralismo político, étnico e cultural (BONAVIDES, 1999).

A despeito desse escalonamento entre diferentes gerações (ou dimensões) de direitos fundamentais, fato é que, antes de se anularem, se completam e vão se acumulando, posto que seguem válidos os direitos das gerações anteriores juntamente com aqueles das novas gerações, ainda que ganhem, diante destes e da nova realidade social, nova interpretação, como por exemplo, o direito à propriedade, que vem sendo reinterpretado desde a Revolução Francesa até os dias atuais, com a preocupação com a finalidade social da propriedade e a relativização daquele direito frente à proteção ao meio ambiente (MENDES, COELHO, BRANCO, 2009).

Traçadas, em linhas gerais, as fases da evolução do Estado de Direito e dos direitos fundamentais, cumpre-nos agora explanar, quanto a estes últimos, alguns de seus pormenores. Vamos a eles.


3. OS DIREITOS FUNDAMENTAIS E SUAS CARACTERÍSTICAS DENTRO DE NOSSA ORDEM CONSTITUCIONAL

A palavra "fundamental", gramaticalmente, significa tudo aquilo "que serve de fundamento; que é necessário, essencial". Tal conceito se amolda ao sentido real do termo na esfera jurídica. Assim, direito fundamental "é o mínimo necessário para a existência da vida humana” (BREGA FILHO, 2002, p. 66), que deve garantir a existência de uma vida digna, conforme os preceitos do princípio da dignidade da pessoa humana.

No que tange à expressão "direitos humanos", a despeito de o significado atribuído ser o mesmo, isto é, direitos essenciais à manutenção da vida humana sustentada pelo princípio da dignidade a ela inerente, Brega Filho os distingue, dizendo serem os direitos fundamentais aqueles positivados em uma Constituição, enquanto os direitos humanos são normas de caráter internacional (BREGA FILHO, 2002).

Para Canotilho, os direitos humanos derivam da própria natureza humana, enquanto os direitos fundamentais são os vigentes em uma ordem jurídica concreta. Entretanto, não estariam estes últimos restritos ao texto constitucional, posto entender o autor que os direitos fundamentais estariam divididos em "formalmente fundamentais", que são os enunciados por normas inseridas no texto constitucional, e "materialmente fundamentais", presentes dentro das leis aplicáveis ao direito internacional, não positivados constitucionalmente (CANOTILHO, 1997).

Dentro de nossa ordem constitucional, os direitos fundamentais estão dispostos na Magna Carta de 1988, que os trouxe em seu Título II (dos direitos e garantias fundamentais), subdividido em cinco capítulos: direitos individuais e coletivos; direitos sociais; direitos de nacionalidade; direitos políticos; partidos políticos. Destarte, o constituinte originário instituiu cinco espécies dentro do gênero direitos fundamentais (MORAES, 2010; LENZA, 2009).

Porquanto insertas na Constituição Federal, as normas de direitos fundamentais têm natureza constitucional, não só formal, mas também material. Entretanto, o rol de todos os direitos fundamentais constitucionalmente explícitos dentro do Título II é apenas exemplificativo, podendo ser estendido por força do art. 5º, § 2º, que reza que os direitos e garantias constitucionalmente expressos não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios adotados pela Constituição, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte (LENZA, 2009).

Observando os comentários de Canotilho sobre as funções dos direitos fundamentais, tomando por base a Constituição da República Portuguesa, a qual serviu de inspiração ao constituinte originário da nossa Carta de 1988, o constitucionalista português aponta que, além das funções de não discriminação (considerando todos os cidadãos fundamentalmente iguais) e de proteção perante terceiros (impondo um dever aos poderes públicos de proteger os direitos fundamentais da agressão de terceiros), os direitos fundamentais possuem função de defesa e função de prestação social (CANOTILHO, 1997).

Quanto à função de defesa, em regra, funda-se ela nos elementos da concepção liberal, posto que, além de constituírem os direitos fundamentais normas de competência negativa para os poderes públicos, proibindo a ingerências dos mesmos na esfera jurídica individual (perspectiva jurídico-objetiva), noutra perspectiva, a jurídico-subjetiva, implicam o poder de exercer positivamente (libardes positivas) direitos fundamentais e de exigir omissões dos poderes públicos com vistas a coibir agressões lesivas por parte daqueles (liberdades negativas) (CANOTILHO, 1997).

Já a função de prestação social, em sentido estrito, significa o direito do indivíduo a uma prestação por parte do estado, seja na esfera educacional, sanitária ou da seguridade social. Entretanto, em sentido mais amplo, significa não apenas o direito de exigir o fomento de políticas públicas sociais, mas também o de exigir a manutenção daquelas já implementadas e a abstenção do Estado em suprimi-las (CANOTILHO, 1997).

Nesta perspectiva, de se notar que tais funções são inerentes a todos os direitos fundamentais, em menor ou maior grau, sejam eles tidos por direitos e garantias individuais, direitos políticos ou direitos sociais (como se verá mais adiante).

Como colocado supra, ao longo do texto constitucional (e não penas no Título II) ou mesmo fora dele (como nos tratados internacionais), podem ser encontradas normas de direito fundamental, e que como tais, gozam de certas características comuns a todas, em maior ou menor grau (cumpre ressaltar que tal gradação não será objeto deste trabalho), tais como universalidade, imprescritibilidade, inalienabilidade/indisponibilidade, aplicabilidade imediata e vinculação dos poderes púbicos.

Dizem serem os direitos fundamentais universais porque destinados, de modo indiscriminado, a todos os indivíduos, em razão somente de sua natureza humana; a despeito disso, são limitados, posto não serem absolutos, seja frente uns aos outros, seja frente a outros valores constitucionalmente protegidos, devendo valer-se o interprete, no caso concreto “da máxima observância dos direitos fundamentais envolvidos”. (LENZA, 2009).

São inalienáveis; “não admitem que seu titular o torne impossível de ser exercitado para si mesmo, física ou juridicamente” (MARTINES PUJALTE, 1992, p. 87 apud MENDES, COELHO, BRANCO, 2009, p. 276). A despeito de parecer ser inerente a todos os direitos fundamentais, há quem acredita deva ser tal característica aplicada apenas àqueles que visem a resguardar diretamente a potencialidade do homem de seu autodeterminar. “Indisponíveis, portanto, seriam os direitos que visam a resguardar a vida biológica (...) ou que intentem preservar as condições normais de saúde física e mental (...)” (MENDES, COELHO, BRANCO, 2009, p. 277).

São eles de aplicabilidade imediata. Foi essa a tendência seguida pela Constituição de 1988, acompanhando o exemplo das constituições da Alemanha (art. 1º, nº 3), da Espanha (art. 33) e de Portugal (art. 18). É o que se depreende da leitura do § 1º do art. 5º do Texto Constitucional que afirma serem as normas definidoras de direitos e garantias fundamentais de aplicabilidade imediata, norma-princípio que estabelece uma ordem para que se confira a maior eficácia possível aos direitos fundamentais em geral, dando a estes um caráter não apenas programático, mas normativo.

Os juízes podem e devem aplicar diretamente as normas constitucionais para resolver os casos sob sua apreciação. Não é necessário que o legislador venha, antes, repetir ou esclarecer os termos da norma constitucional para que ela seja aplicada. O art. 5º, § 1º, da CF autoriza que os operadores do direito, mesmo à falta de comando legislativo, venham a concretizar os direitos fundamentais pela via interpretativa. Os juízes, mais do que isso, podem dar aplicação direta aos direitos fundamentais mesmo contra a lei, se ela não se conformar ao sentido constitucional daqueles (MENDES, COLEHO, BRANCO, 2009, p. 286).

Estão consagrados em preceitos normativos de cada Estado, notadamente, nas Cartas Políticas, daí dizer serem constitucionalizados (ainda que se faça a ressalva de existirem direitos fundamentais apenas de ordem material), o que traz como consequência, a vinculação de todos os poderes constituídos, inclusive de reforma constitucional. “Os atos dos poderes constituídos devem conformidade aos direitos fundamentais e se expõem à invalidade se os desprezam” (MENDES, COELHO, BRANCO, 2009, p. 279).

A atividade legiferante tem o dever de guardar coerência com os direitos fundamentais, não apenas de forma a não afrontá-los, mas também de modo a torná-los exequíveis de fato, devendo, para tanto, ser proativa na edição de normas que venham a regulamentar direitos fundamentais, acaso pendentes de concretude normativa. Para além disso, mesmo quando houver mandamento constitucional que preveja que certos direitos sejam regulamentados/restringidos, deve o Legislativo respeitar o núcleo essencial do direito em pauta, furtando-se de torná-lo, no caso concreto, infactível. Neste ponto, toma importância o princípio da proibição do retrocesso, ao qual nos referiremos mais adiante.

Também a Administração está vinculada às normas de direitos fundamentais, mesmo os seus atos discricionários, devendo ser tomados por nulos aqueles ofensivos a tais direitos. Deve o Executivo interpretar e aplicar as leis, norteado pelos direitos fundamentais.

Por fim, os direitos fundamentais também vinculam o interprete das normas e seu aplicador ao caso concreto. Ao Judiciário é legado o dever de conferir a tais direitos a máxima efetividade possível, devendo respeito aos preceitos dos direitos fundamentais ao longo de todo o curso do processo (MENDES, COELHO, BRANCO, 2009).

Sobre o autor
Camilo Soares Guimarães

Bacharel em Direito pela Fundação Universidade Federal de Rondônia - UNIR. Especialista em Direito Público pela Anhanguera-Uniderp/Rede LFG. Policial Rodoviário Federal.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GUIMARÃES, Camilo Soares. O adicional noturno e sua compatibilidade com o subsídio:: respeito aos princípios reitores do Estado Democrático de Direito. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3964, 9 mai. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/28080. Acesso em: 22 nov. 2024.

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