3 O Princípio do Contraditório no processo administrativo disciplinar da Lei 8.112/90.
A Lei 8.112/90 estabelece o regime jurídico dos servidores públicos federais. Dentre suas várias disposições, algumas se referem ao processo administrativo disciplinar. Neste item, verificar-se-á se os referido dispositivos confirmam a orientação doutrinária tratada no item anterior.
Inicialmente, verifica-se que a referida Lei coloca sob a denominação de processo disciplinar instrumentos correspondentes a diversas atividades do órgão julgador. De fato, estão compreendidos por este predicativo os processos para apuração de faltas graves e leves (este, também denominado sindicância), o procedimento de avaliação periódica de desempenho e o de exoneração de servidor em estágio probatório em face de sua reprovação nesta avaliação, além do de exoneração de servidor estável por excesso de quadros62.
Além disso, verifica-se que a Lei 8.112/90 cria a nebulosa figura da sindicância. No artigo 143 se estabelece que sindicância ela é uma das formas de apuração de irregularidades no serviço público federal, ao lado do processo administrativo disciplinar. Assim, tratar-se-ia de um instrumento de investigação, conforme leva a crer o disposto no artigo 145, inciso III.
Entretanto, os artigos 146 e 145, inciso II, indicam que a sindicância pode resultar na aplicação de penalidades leves. Assim, não se trataria de mera investigação, mas de verdadeira apuração de autoria e ilicitude do fato apurado, com a conseqüente imposição de penalidade.
Todas estas dificuldades advém da ausência da negligência da Lei 8.112/90 em regulamentar o rito que deveria ser aplicado à sindicância e geram outros problemas, que serão analisados no decorrer deste item.
Quanto às fases do processo disciplinar, mencione-se que o artigo 151 da Lei 8.112/90 estabelece que são três: a instauração, o inquérito administrativo e a de julgamento. Cada uma delas sofre interferência do Princípio do Contraditório, no exato sentido de determinar a participação do interessado na elaboração do ato final do processo.
A primeira conseqüência da aplicação do Princípio está já na primeira fase do processo disciplinar, mais especificamente nos atos de comunicação processual: citação e intimação. Note-se que o artigo 161, no seu caput e no seu parágrafo 1.º da Lei 8.112/90 estabelece que a citação do acusado só se dará após a instrução, ou seja, o acusado só será formalmente cientificado da existência de um processo disciplinar contra ele depois de colhidas evidências suficientes para a tipificação da infração disciplinar.
Entretanto, Romeu Felipe Bacellar Filho lembra que o artigo 156 da mesma Lei, ao estabelecer que é direito do servidor acompanhar o processo pessoalmente ou por intermédio de procurador, participando da colheita de todas as provas. Assim, concedendo a Lei 8.112/90 a oportunidade de participação ao acusado, há a obrigatoriedade de se citar o acusado já na fase de instauração63.
Além disso, entende o autor que o acusado também tem direito a manifestar-se sobre a acusação logo após tal comunicação. Isto porque não seria razoável ter direito a arrolar e reinquirir testemunhas, produzir provas e formular quesitos (artigo 156) e não poder falar sobre o principal – qual seja, a acusação, que antecede e preside toda a instrução64.
Pode-se entender que esta necessidade de citação do acusado antes do início da fase instrutória é decorrência da aplicabilidade do Princípio do Contraditório sobre a fase de instauração do processo administrativo disciplinar.
Além desta conseqüência, Romeu Felipe Bacellar Filho enxerga outras duas:
“(...) a motivação suficiente do ato de instauração do processo administrativo disciplinar (...); o ato de citação deve não somente chamá-lo a juízo, mas também informá-lo dos fatos a ele imputados, a devida fundamentação e sanção cabível, delimitando tempo oportuno para que, antes da instrução, possa manifestar-se sobre os elementos que compõem a pretensão da Administração (que enseje acusação ou litígio), participando na delimitação do objeto da prova”65.
De fato, ao instaurar processo disciplinar, a Administração está afirmando que deve ser apurada responsabilidade administrativa a respeito de determinado fato. Em sentido técnico, isto equivale a formular uma acusação, em que se presume a ilicitude do fato e a sua autoria. Desta forma, o ato que instaura o processo disciplinar deve ser expressamente motivado e assim (integralmente) comunicado ao interessado/acusado.
Ressalte-se que não atende a tais exigências a simples menção a um dispositivo legal que se tenha por violado, já que isso impediria que o acusado se defendesse.
Na fase de inquérito administrativo é ainda mais clara a presença do Princípio do Contraditório. Destaque-se que a Lei 8.112/90 subdivide esta etapa em três: instrução (dilação probatória), defesa e apresentação de relatório.
Sobre a fase probatória, Romeu Felipe Bacellar Filho escreve:
“No regime legal, a assim chamada fase de instrução constitui a primeira fase do inquérito administrativo, momento da admissão e produção de provas. A partir do exame do conjunto probatório, a Comissão formula novo juízo de acusação ‘tipificando a infração disciplinar’ (ou antes, retipificando, visto que esta tarefa á deve ter sido feita na instauração) e ‘formulando a indiciação do servidor’ (art. 161).”
“Bem por isso, abre-se a fase de defesa, momento em que se propicia a contestação da acusação formulada pela Comisão. No entanto, se a acusação for alterada (nova tipificação ou mudança na graduação da pena), dependendo da análise dos fatos nela contida, será necessária a reabertura da fase probatória. Assim, a fase probatória estende-se tanto à fase legal de instrução como à de defesa”66.
Aqui também se insere o direito de audiência e de presença física do acusado perante o órgão julgador67.
As marcas do Princípio do Contraditório na subfase de defesa do processo disciplinar também são facilmente identificáveis.
A primeira delas se evidencia sempre que a Comissão deixar de citar o acusado na fase de instauração do processo disciplinar.
Como se mencionou anteriormente, o artigo 161 da Lei 8.112/90 traz ordem expressa de que o acusado deve ser citado após a fase de instrução. Lembre-se, aqui, a tese de que o artigo 156 determina a citação do acusado desde a fase de instauração, embora implicitamente, sob pena de nulidade68. Ainda que não se tenha por aplicável semelhante tese, é inegável que o Princípio do Contraditório determina que o acusado tem direito a acompanhar a realização das provas, bem como a requerer as que julgar convenientes. Assim, a conseqüência inapelável é de que o acusado tem direito a que sejam produzidas novamente todas as provas.
Outra aplicação do Princípio do Contraditório na subfase de defesa do processo disciplinar é a possibilidade de se reabrir a fase instrutória sempre que se constatar que ao servidor poderá ser atribuída a autoria de infração distinta da prevista no ato de citação, ou ainda que poderá ser-lhe imposta sanção mais grave do que a que lhe havia sido comunicada naquela ocasião. Tal conseqüência deriva da própria dinâmica da defesa, que consiste basicamente em se opor aos fatos que cuja realização lhe foi atribuída.
Na última fase do inquérito administrativo a Comissão elabora suas alegações finais na forma de relatório, que será submetido à apreciação da autoridade competente para o julgamento. Este documento deve conter a conclusão pela inocência ou responsabilidade do servidor e, se for este o caso, indicar o dispositivo legal transgredido e eventuais circunstâncias agravantes e atenuantes.
De pronto verifica-se que a motivação deste relatório é conseqüência direta da garantia do Contraditório. Romeu Felipe Bacellar Filho justifica esta necessidade:
“A motivação das alegações finais da Comissão funciona como instrumental em relação ao contraditório. Não só porque serve de orientação ao órgão julgador, mas principalmente porque fornece subsídios para as alegações finais da defesa. O contraditório manifesta-se como princípio dinâmico de ouvir-se a acusação, ouvir-se a defesa, em todos os momentos processuais importantes para a formação do convencimento do juiz administrativo”69.
Com base nestas considerações, o autor entende que é imprescindível a oportunidade de apresentação de alegações finais de defesa, peça correspondente ao relatório da Comissão. Isto porque o Princípio do Contraditório reclama o tratamento isonômico das partes.
Também se enxergam conseqüências da aplicação do Princípio do Contraditório na fase final, a de julgamento.
Ali, decorre do postulado a proibição de que o órgão julgador decida uma questão que não foi debatida pelas partes70. Assim, vincula-se o motivo da decisão e da punição (ou da eventual absolvição) ao motivo do processo disciplinar a elas correspondente.
Ademais, também deve ser atendida a necessidade de motivação da decisão e a da sua idônea comunicação ao acusado. Romeu Felipe Bacellar Filho justifica que esta demanda decorre da obrigação de levar em consideração o resultado da atividade do órgão acusador e do acusado, respondendo a cada uma delas71, analisando o resultado de todos os elementos probatórios produzidos e, finalmente, cientificando os interessados do inteiro teor da decisão proferida.
Analisadas todas estas circunstâncias, pode-se afirmar que todos os aspectos doutrinários tratados no item anterior desta dissertação foram sufragados pela Lei 8.112. Demonstrou-se que o Princípio do Contraditório intervém até mesmo no dispositivo que prevê que a citação do acusado se dê após a fase instrutória – possibilitando a reabertura desta etapa, com a conseqüente reprodução de todas as provas.
Assim, evidenciou-se que a inobservância a tais requisitos torna nulo o processo, pois o Contraditório é condição de validade do provimento sancionatório, como o é de toda decisão estatal que intervenha no patrimônio jurídico do cidadão.
4 O contraditório no processo administrativo “não disciplinar”.
Tratou-se anteriormente das garantias que devem cercar o processo administrativo disciplinar, que visa a cominação de sanção ao servidor público em virtude de cometimento de falta funcional. Naquela oportunidade, assinalou-se que os cientistas do direito, em uníssono, concordavam com a necessidade do contraditório para aferir a legalidade do feito.
Como contraponto desta situação e para explicitar a abrangência da tese advogada neste trabalho, verificar-se-á a possibilidade de extensão do Princípio do Contraditório a todos os processos administrativos tendentes a interferir no patrimônio jurídico do cidadão.
Esta conclusão já é sinalizada por algumas previsões legais expressas, tais como a do processo administrativo de dispensa de servidor celetista para a redução de despesa pública e adequação à lei orçamentária. Assim, mesmo quando não estiver em análise o descumprimento de uma atribuição funcional – próprio do processo disciplinar – o processo administrativo é o meio juridicamente adequado de atuação do Estado.
O aprofundamento da discussão é de grande interesse para aqueles funcionalmente ligados à Administração Pública, já que envolve a questão da obrigatoriedade de sujeição da atividade estatal ao processo administrativo. Isto porque são aqueles os atores responsáveis pela concretização do Princípio do Contraditório nas questões diariamente submetidas à sua intervenção profissional.
No entanto, além destes, há vários outros interessados, conforme menciona Francisco Gérson Marques de Lima:
“Vários outros atores vão surgindo, como: a Magistratura (incumbida de decidir questões sobre a aplicação correta do procedimento próprio, no controle da legalidade); o Ministério Público (encarregado de zelar pela legalidade e pela res publica); os sindicatos de servidores e associações de magistrados, na defesa dos membros da categoria; os agentes da administração; os Tribunais e Conselhos de Contas, no controle e fiscalização dos atos administrativos (admissão, aposentadorias, licitação etc.); e os particulares, pessoas físicas ou jurídicas (exemplo: frente ao processo fiscal/tributário), e os usuários de serviços públicos (criação da EC 19, de 1998)”72.
Justificada a importância da discussão e fixado o objetivo deste item, mencione-se que a possibilidade de extensão do Princípio do Contraditório para além do processo disciplinar deve ser norteada por algumas das conclusões parciais deste trabalho.
A primeira delas consiste na idéia de que o dispositivo constitucional do artigo 5.º, inciso LV da Constituição estabelece que o Estado só pode interferir no patrimônio jurídico do cidadão pela via do Devido Processo Legal.
A segunda conclusão parcial é de que o Contraditório é elemento essencial do processo e que o distingue do procedimento.
A terceira idéia fundamental é de que a atividade administrativa se desenvolve pela via do processo, e não por simples procedimento.
Outro elemento norteador desta análise é a apresentação do processo administrativo como momento de transição entre as competências legalmente descritas e o ato administrativo.
Superadas estas questões propedêuticas, investigue-se a forma pela qual o Princípio do Contraditório se concretiza no processo administrativo.
O Contraditório é um princípio geral que preside a atuação do Estado, sempre pela via do processo. Como a abstração e a vagueza são características dos princípios de direito, é possível analisar que o Princípio se concretiza de formas um pouco distintas em cada espécie processual.
Aqui, no processo administrativo, o conteúdo do Contraditório pode ser apresentado como a participação do administrado em todos os atos do processo administrativo, influenciando na decisão a ser proferida. Assim, o interessado (destinatário do ato final) deve ser cientificado da existência do processo73 e de tudo mais o que nele ocorra, podendo se manifestar sobre de todos os atos e fatos processuais. Como conseqüência, o órgão julgador deve apreciar motivadamente tais manifestações74.
Egon Bockmann Moreira afirma que esta conformação do Princípio do Contraditório representa a infiltração do Princípio Democrático na atividade administrativa:
“Ora, um dos fundamentos do Estado Democrático de direito é a integração do particular na esfera pública, segundo normas jurídicas preestabelecidas. As pessoas privadas detêm o direito de conhecer, participar, influenciar e controlar a atividade da Administração. O processo administrativo é justamente um dos meios através dos quais se dá o exercício da cidadania, garantido pelo contraditório”.
“(...) Assim, o princípio do contraditório é, antes do que dever despido de efeitos processuais concretos, a configuração da possibilidade de influência positiva do administrado na constituição da vontade estatal”75.
Por outro lado, é importante mencionar que a processualidade administrativa não se restringe à seara do processo disciplinar, onde tradicionalmente se a enxergava. Se por um lado a Constituição Federal associa o contraditório e a ampla defesa ao processo administrativo (portanto, não o limitando ao processo disciplinar), por outro, a legislação infraconstitucional vem trazendo novos instrumentos processuais adequados ao exercício de cada atividade administrativa específica. A este respeito, lembra Francisco Gérson Marques de Lima:
“O Código de Trânsito Brasileiro (Lei 9.503, de 1997) trata do assunto nos arts. 280-290; a Lei 9.507, de 1997 (Lei do Habeas Data), cria regras de processo administrativo mesmo entre particulares, no afã de assegurar o direito à informação e à retificação de dados (arts. 2.º-4.º); a Emenda Constitucional 19, de 1998, que alterou o art. 41, §1.º, da Constituição Federal de 1988, criou processo de avaliação periódica de desempenho de funcionário público no qual se assegura o direito à ampla defesa; e, arrematando as principais regras sobre esta forma de processualidade, foi publicada no DOU de 1.2.1999 a Lei 9.784, que ‘regula o processo administrativo no âmbito da Administração Pública Federal” – lei, esta, translineada e incorporada pelos Estados-membros, que a adaptaram às suas peculiaridades”76.
Como o processo administrativo não se desenvolve apenas na atividade de impor sanção ao servidor, pode-se dizer que a concretização do Princípio do Contraditório sobre a atividade administrativa não se restringe apenas ao processo disciplinar. É nesse sentido que sinaliza Odete Medauar, exemplificando:
“Em processos administrativos referentes a questões coletivas e difusas, o contraditório se expressa na possibilidade de fazer emergir os diferentes interesses em jogo e de confrontá-los adequadamente em presença dos respectivos titulares, antes da decisão final”77.
No mesmo sentido, Marcelo Harger lembra que a própria Constituição da República definiu o exercício da função administrativa com o termo processo, preterindo o vocábulo procedimento. Acrescenta que, ao fazer tal opção, o constituinte não limitou a aplicabilidade do Princípio do Contraditório apenas ao processo administrativo disciplinar:
“Ressalte-se, (...) que a opção pelo termo processo é realizada pelo próprio direito positivo, mais especificamente pela Constituição. Essa escolha não se limita ao aspecto terminológico. Implica, também, o reconhecimento da existência do processo nas atividades da Administração Pública. A escolha do constituinte é bastante relevante, especialmente se considerarmos que duas realidades distintas forma denominadas de processo administrativo. A primeira consiste nos processos nos quais existam acusados ou litigantes. A segunda abrange os casos de atuação processualizada como forma de explicitação da competência par o exercício da atividade administrativa”78.
Nesse sentido, o Princípio do Contraditório parece desempenhar importantes funções no processo administrativo. É o que observa Odete Medauar ao afirmar que ele tem finalidade a um só tempo instrutória e garantista:
“... visa à tutela das posições jurídicas dos destinatários do ato final; tal proteção se efetua no seu aspecto genérico, pois enseja a colaboração do sujeito na fixação do conteúdo do ato; e se efetua no seu aspecto reativo, por oferecer possibilidade concreta de melhor combater o ato final, se lesivo a direitos. (...) a instrução contraditória protege o indivíduo contra o poder coercitivo da administração”79.
Vladimir Rocha França assinala que o Contraditório não existe para burocratizar (no sentido pejorativo do termo) a ação administrativa. Diferentemente, entende que sua função é conceder-lhe maior segurança, democratizando o exercício da atividade administrativa e garantindo o respeito à cidadania e à dignidade da pessoa humana80.
Em sentido análogo, Marcelo Harger81 afirma que o exercício da democracia não se exaure com a eleição de governantes pelo voto popular. Pelo contrário, o Princípio Democrático recomenda que todas as formas de tomada de decisões devem garantir (em maior ou menor grau) a participação popular. Nesse sentido, o processo administrativo se transforma em verdadeira democracia de funcionamento ou operacional, de sorte que o grau de processualização da atividade administrativa servirá de baliza para graduar a extensão democrática do Estado.
Estendendo-se este raciocínio, é possível concluir que a relevância do processo administrativo transpõe a dimensão da atividade administrativa, prestando-se também à legitimação do próprio exercício do poder. Segundo o autor, o caráter funcional da atividade administrativa veda a utilização do poder de modo arbitrário. Assim, sublinha-se a relevância das diversas etapas que levam à decisão final para a legitimação da atividade administrativa no caso em concreto82.
A forma como o Princípio do Contraditório se concretiza no processo administrativo corresponde às considerações lançadas até aqui.
Analisando a questão, Odete Medauar observa que a consagração do Contraditório no processo administrativo apresenta três desdobramentos fundamentais.
O primeiro deles é a regra da informação geral, correspondente ao direito de que dispõem os sujeitos e a própria Administração de conhecerem todos os fatos que estão na base da formação do processo, e de todos os demais fatos, dados, documentos e provas que vierem à luz no curso do processo:
“Daí resultam as exigências impostas à Administração no tocante à comunicação aos sujeitos de elementos do processo em todos os seus momentos. Como é evidente, a comunicação deve abranger todos os integrantes da relação processual administrativa. Vincula-se, igualmente, à informação ampla, o direito de acesso a documentos que a Administração detém ou a documentos juntados por sujeitos contrapostos. E a vedação ao uso de elementos que não consta do expediente formal, porque deles não tiveram ciência prévia os sujeitos, tornando-se impossível eventual reação a tais elementos”83.
O segundo desdobramento é a oitiva dos sujeitos, consistente na oportunidade de expressar o próprio ponto de vista acerca dos fatos, documentos e argumentos apresentados pela Administração e por outros sujeitos. Neste item estão contidos “o direito paritário de propor provas (com razoabilidade) e de vê-las realizadas e o direito a um prazo suficiente para o preparo das observações a serem contrapostas”84.
Por último, a aplicabilidade do Princípio do Contraditório no processo administrativo implica na necessidade de motivação dos atos que dele resultam. De fato, só quando a Administração externa os motivos que conduziram à sua conclusão esta é passível de controle e, além disso, evidencia em que medida a participação dos interessados influenciou neste resultado85. Segundo a autora:
“... a motivação propicia o reforço da transparência administrativa e do respeito à legalidade: da motivação emergem as normas jurídicas que levaram a administração a adotar uma decisão, sua pertinência aos fatos embasadores e o iter lógico seguido no processo, se for o caso”86.
Em sentido análogo, Marcelo Harger observa que a doutrina administrativista se divide entre aqueles que defendem a obrigatoriedade da motivação do ato administrativo independentemente de previsão legal e aqueles que a rejeitam. Assinala que tem-se observado uma crescente prevalência da primeira corrente, fundamentada na tendência de democratização do Estado moderno87.
Pode-se entender a motivação do ato administrativo como a explicitação das condições de fato e de direito e do nexo de causalidade entre elas e o conteúdo do ato. É por meio dela que se evidenciam as razões pelas quais a Administração adotou uma determinada decisão, preterindo outra(s).
Nesse sentido, é de se ponderar que se a motivação não determina inexoravelmente o respeito da lei pela Administração, trata-se de elemento importante e simples para permitir o controle da legalidade do comportamento administrativo.
Portanto, a motivação do ato é obrigatória, ainda que a legislação não o determine expressamente, e sob pena de invalidade do ato.
No mesmo sentido, não se pode admitir (pelo menos em regra) que a motivação seja posterior à edição do ato, devendo ser prévia ou concomitante. Marcelo Harger assim justifica esta circunstância:
“É que as motivações ulteriores poderiam ser fabricadas pela Administração para justificar a prática do ato ilegal. (...) permitir uma motivação posterior à edição do ato, seria possibilitar um grande nível de arbitrariedade, especialmente nos casos de discricionariedade”88.
Ademais, menciona o doutrinador que a motivação em si mesma tem requisitos formais e substanciais:
“Os requisitos formais somente estarão presentes quando a lei assim o determinar. Caso não haja determinação expressa, a forma será livre. Uma boa forma a ser seguida, todavia, é a das sentenças judiciais. Nesse sentido, uma fundamentação formalmente correta deveria conter: a) um relatório; b) a fundamentação; c) a conclusão; d) data e assinatura do portaló. Observe-se que a motivação sempre deverá ser feita por escrito. Os requisitos substanciais são clareza, suficiência e congruência”89.
Nota-se que, quais sejam, garantir que o órgão administrativo levou em consideração as intervenções do destinatário do ato e possibilitar o controle da adequação entre a decisão final e o interesse público previsto em lei.
Assim, percebe-se que todos estes requisitos servem de instrumento para a concretização das finalidades da motivação e que esta é importante desdobramento dos Princípios do Estado Democrático de Direito e do Contraditório. Isto porque lhe podem ser associadas diversas funções, quais sejam, a de possibilitar o controle da legalidade e da adequação da decisão aos fins da administração e a de consagrar a participação do administrado, seja evidenciando que suas alegações foram levadas em consideração no processo de elaboração da decisão, seja possibilitando sua reação (contra-argumentação) em face de uma decisão desfavorável.
Outro reflexo da aplicabilidade do Princípio do Contraditório no processo administrativo é tradicionalmente traduzido como Princípio da Publicidade. Observando a importância do referido primado, Carmen Lúcia Antunes Rocha menciona que a “publicidade é mais que um dos princípios constitucionais da Administração: é, assim, o seu próprio nome, a denotar-lhe a essência”90.
Celso Antonio Bandeira de Mello também entende que o Princípio da Publicidade decorre da própria natureza da função administrativa, em que o poder é exercido em nome de terceiros:
“Deveras, se os interesses públicos são indisponíveis, se são interesses de toda a coletividade, os atos emitidos a título de implementá-los hão de ser exibidos em público. O povo precisa conhecê-los, pois este é o direito mínimo que assiste a que é a verdadeira fonte de todos os poderes”91.
Diante do exposto, pode-se entender que toda a atividade administrativa se realiza processualmente. Desta forma, o Princípio do Contraditório sobre ela repercute, apresentando alguns desdobramentos próprios, mas que não chegam a comprometer o conceito até aqui defendido.
Assim, é possível afirmar que o Estado só pode impor a sua decisão se proporcionar ao administrado plenas condições de participação no caminho que a ela conduzirá: seja franqueando o acesso às informações necessárias, seja proporcionando a manifestação do administrado e, principalmente, apreciando o teor destas manifestações.