2 O contraditório no processo administrativo disciplinar.
No presente item serão observados alguns reflexos do Princípio do Contraditório sobre o processo administrativo disciplinar.
A análise deve-se iniciar pelo disposto no inciso LV do artigo 5.º da Constituição da República, que determina que acusados e litigantes no processo administrativo têm direito ao contraditório.
Investigando o conteúdo dos dois vocábulos, Marcelo Harger entende que o termo acusados denomina todos aqueles a quem seja imputada alguma falta ou conduta ilícita28.
De outro lado, o conteúdo semântico do termo litigantes seria o dado por Ada Pellegrini Grinover:
“Litigantes existem sempre que, num procedimento qualquer, surja um conflito de interesse. Não é preciso que o conflito seja qualificado pela pretensão resistida, pois neste caso surgirão a lide e o processo jurisdicional. Basta que os partícipes do processo administrativo se anteponham face a face, numa posição contraposta. Litígio equivale a controvérsia, a contenda, e não a lide. Pode haver litigantes – e os há – sem acusação alguma, em qualquer lide. Assim, por exemplo, no processo administrativo de menores, mesmo não-punitivo, podem surgir conflitos de interesses entre o menor e seu responsável legal. Haverá, nessa hipótese, litigantes e a imediata instauração do contraditório e da ampla defesa”29.
Analisando-se os trechos supratranscritos, observa-se que no processo disciplinar é realmente freqüente a oposição de idéias. Isto porque “a idéia do contraditório está bem relacionada com situações potencial ou materialmente litigiosas”30.
Entretanto, conforme já mencionado anteriormente, não parece ser necessário que haja interesses contrapostos para que esteja presente o Princípio do Contraditório. Isto porque, na interpretação oferecida neste trabalho, ele é o direito de participação do destinatário do ato final no procedimento de sua elaboração.
Lembre-se que o Princípio do Contraditório está contido na expressão do Devido Processo Legal e este, no sentido analisado nesta dissertação, é condição de validade da intervenção da decisão estatal na esfera jurídica do cidadão. Assim, ainda que a definição de cada um destes vocábulos (acusado e litigante) seja bem mais restrita, a interpretação do inciso LV do artigo 5.º permite entender que o Princípio do Contraditório é elemento indissociável de qualquer decisão do Estado que tenda a interferir no patrimônio jurídico do cidadão.
Sérgio Ferraz parte de fundamento distinto, mas chega a esta mesma conclusão. Observa-se que doutrinador conceitua diferentemente o vocábulo litigante, de forma a abranger todos aqueles que podem ter sua esfera jurídica afetada por decisão administrativa:
“Ao se cuidar de processo administrativo, a palavra litigante assume feição diferenciada, apontando não só os que já tenham dissidências instauradas, mas também aqueles que possam vir a tê-las; ou, ainda mais, os que busquem instrumentalizar seus direitos de petição e de representação; e, além deles, os que estejam no desempenho de seu direito público subjetivo (constitucional) de fiscalizar o exercício administrativo (co-participação administrativa)”31 (grifos do original).
Além destes argumentos, deve-se ponderar que o Princípio do Contraditório no processo disciplinar está intimamente ligado à noção de amplitude de defesa do acusado. Nesse sentido se posicionam até mesmo os autores que preferem denominar a atividade administrativa como procedimento, em detrimento do vocábulo processo:
“Realmente, ninguém pode ser privado da liberdade ou de seus bens, sem que se lhe propicie a produção de ampla defesa (nemo inauditus damnari potest), e, por via de conseqüência, esta só poderá efetivar-se em sua plenitude com o estabelecimento da participação ativa e contraditória dos sujeitos parciais em todos os atos e termos do processo”32 (grifos do original).
Desta forma, a finalidade essencial do direito à informação dos atos processuais é propiciar elementos suficientes à elaboração da defesa do acusado.
Mais analítica, Odete Medauar lembra que a aplicabilidade do Princípio da Ampla Defesa deve ser analisada no contexto das características próprias do regime jurídico administrativo, tais como a auto-executoriedade das decisões administrativas e a urgência no atendimento do interesse público.
De fato, Marcelo Harger identifica numerosas vozes que sustentam que a Ampla Defesa não é aplicável ao processo disciplinar, apontando que a urgência no atendimento ao interesse público, a existência do poder discricionário e a auto-executoriedade dos atos administrativos tornam o processo administrativo incompatível com a amplitude de defesa33.
Quanto ao primeiro dos óbices, o autor assim se manifesta:
“As questões de urgência podem servir para mitigar o direito à ampla defesa. Isso não significa que, por esta razão, o princípio possa ser considerado incompatível com o processo administrativo. É que situações de urgência também existem no processo judicial, no qual é possível a concessão de medidas liminares, sem a oitiva da parte contraposta, e ninguém afirma que o princípio seja inaplicável neste. O que ocorre nesses casos é uma ponderação de interesses. Um conflito entre princípios que obedece àquele mecanismo (...) pelo qual a prevalência de um princípio, em uma certa hipótese não retira a validade do outro no ordenamento jurídico”34.
Já a respeito da discricionariedade, ensina:
“A questão da discricionariedade também pode ser solucionada a partir do momento em que esta seja considerada como uma faculdade conferida por lei. Partindo desse pressuposto, haveria antes um dever do que propriamente um poder discricionário. Discricionariedade, portanto, não é o mesmo que arbítrio e isso acarreta a necessidade de observância de um processo administrativo para a elaboração de atos dessa espécie. Mas (...) não é qualquer processo que serve à elaboração dos atos estatais. Somente o devido processo, dotado das garantias do contraditório e da ampla defesa, é idôneo para esse fim”35.
Quanto à auto-executoriedade é necessário, primeiro, ponderar que ela não é atributo de todos os atos administrativos e que deriva sempre de autorização legal explícita ou implícita36. Nesse ponto, calha lembrar os ensinamentos de Carlos Ari Sundfeld37.
Segundo o precitado doutrinador há três limites à auto-executoriedade dos atos administrativos: a necessidade de observância de processo judicial para a perda da propriedade ou liberdade física; a imunidade das associações cooperativas e sindicatos às interferências administrativas e o princípio da proporcionalidade.
Prosseguindo, o autor diz que só há autorização implícita para a auto-executoriedade quando se tratar de medidas de urgência (que tornar-se-iam inócuas se não fossem cumpridas imediatamente) e de medidas cuja natureza exija execução imediata (sob pena de perder o conteúdo), embora não sejam urgentes.
Oswaldo Aranha Bandeira de Mello ainda adverte que “se não existe urgência nem a natureza do ato pede essa providência, sem dúvida violenta, o seu emprego configura o exercício abusivo de direito”38. Assim, pode-se dizer que não basta a previsão legal de auto-executoriedade do ato, que será inválido nos casos em que ela não seja absolutamente necessária.
“a) apresenta as bases da processualidade administrativa, de modo a fazer com que seus arts. 2.º e 3.º sejam seguidos pelos diversos processos e procedimentos administrativos; e b) seus regramentos, em geral, funcionam como preceitos aptos a suprir deficiências de leis específicas sobre essa processualidade, suprindo as lacunas e procurando sistematizar a matéria”39.
A implicação recíproca dos dois comandos constitucionais (regime jurídico administrativo e Ampla Defesa) termina por individualizar alguns princípios próprios do processo administrativo.
Assim, pelo Princípio da Oficialidade a Administração deve “tomar todas as providências necessárias ao trâmite contínuo para se chegar, sem delongas, à decisão final”40. Vale dizer, sua atuação no processo administrativo é ampla e não se limita aos aspectos suscitados pelos sujeitos. Daí se extraem duas conclusões: a inércia dos sujeitos não paralisa o procedimento e a da Administração desencadeia a responsabilização dos agentes pela sua omissão41.
De forma semelhante, determina o Princípio da Verdade Material que a “Administração deve tomar decisões com base nos fatos tais como se apresentam na realidade, não se satisfazendo com a versão oferecida pelos sujeitos”42. É assim que seu comportamento na fase instrutória é ativo, trazendo aos autos todos os dados que lhe parecerem pertinentes, independentemente da manifestação das partes.
Ainda se deve lembrar o Princípio do Formalismo Moderado, segundo o qual os atos do procedimento devem se revestir de formas simples, suficientes para garantir um grau de certeza, segurança e, sobretudo, respeito ao Contraditório e à Ampla Defesa. Assim, as formas devem ser compreendidas como instrumentos hábeis a garantir estes objetivos, e não como finalidades em si43. A este respeito, Odete Medauar faz importante ressalva:
“Evidente que exigências decorrentes do contraditório e ampla defesa, tais como motivação, prazo para alegações, notificação dos sujeitos, não podem ser consideradas ‘filigranas’ ou formalidades dispensáveis, como por vezes é invocado ao se pretender ocultar razões pessoais subjacentes. Portanto, o princípio do formalismo moderado não há de ser chamado para sanar nulidades ou para escusar o cumprimento da lei. Visa a impedir que minúcias e pormenores não essenciais afastem a compreensão da verdadeira finalidade da atuação. Exemplo de formalismo exacerbado, destoante deste princípio encontra-se no processo licitatório, ao se inabilitar ou desclassificar participantes por lapsos em documentos não essenciais, passíveis de serem supridos ou esclarecidos em diligências...”44.
Marcadas estas linhas mestras, analisem-se os desdobramentos doutrinários em que mais facilmente se constata a interferência do Princípio do Contraditório no processo disciplinar.
O primeiro e mais importante reflexo é obrigatória motivação de cada um dos atos do procedimento. A finalidade é permitir que os interessados (ou, especificamente, os indiciados) possam sobre ele se manifestar e mesmo contra ele se insurgir45.
Além disso, pode-se afirmar que decorre do Princípio do Contraditório um direito geral de informação dos atos processuais e de manifestação sobre eles. Assim, o acusado tem o direito de receber notificação de que se iniciou o referido processo, devendo estar explícito no documento os fatos e bases legais sobre as quais se fundam a imputação; o direito de ser informado, com antecedência que oportunize a sua participação, da realização das provas; o direito de ser notificado da juntada de documentos e de sobre eles se manifestar46.
De forma similar, Marcelo Harger aponta que a intervenção Princípio do Contraditório sobre o processo administrativo disciplinar determina que se lhe franqueie livre acesso aos respectivos autos. No mesmo sentido, resta vedada a decisão com base em elementos que não estejam ali juntados47.
Também decorre do Princípio do Contraditório o direito à ampla instrução probatória48. A este respeito, Celso Antonio Bandeira de Mello ensina:
“O direito à participação na instrução probatório compreende não somente o direito de oferecer e produzir provas, mas também o de, muitas vezes, fiscalizar a produção das provas da Administração, isto é, o de estar presente, se necessário, a fim de verificar se efetivamente se efetuaram com correção ou adequação técnica devidas”49.
Prosseguindo, importa analisar dois elementos que causam alguma polêmica na doutrina administrativista, quais sejam, a autodefesa e a defesa técnica.
Pode-se definir a primeira como a prerrogativa que tem o sujeito de, pessoalmente, adotar providências e formular alegações com o objetivo de se preservar de sanções. Aqui, Odete Medauar enxerga dois aspectos, quais sejam, o direito de presença e o de audiência:
“O direito de presença se traduz na faculdade conferida ao sujeito de assistir pessoalmente à realização das provas e de contraditá-las, também, pessoalmente, sem intermediação de representante legal, inclusive o direito de inquirir ou fazer inquirir testemunhas”.
“(...) O direito de audiência, em sentido literal ou estrito, consiste no direito de falar oralmente, para relatar fatos, de viva voz, ou dar explicações sobre dados que são expostos. Em acepção ampla inclui, também, o direito de apresentar argumentos e alegações a seu favor por si próprio”50.
O outro aspecto polêmico é o direito do indiciado de se fazer representar por advogado no processo administrativo, bem como de ser assistido por perito de sua confiança51.
De um lado, Lúcia Valle Figueiredo52 entende que o direito à defesa técnica está ínsito ao direito de ampla defesa. De tal sorte, se o indiciado em processo administrativo disciplinar não se defender por advogado, é necessário que se lhe nomeie um defensor.
Por outro, Odete Medauar afirma que a defesa técnica apenas é indispensável nos casos em que as conseqüências jurídicas a aplicar sobre o sujeito sejam graves53.
Marcelo Harger sinaliza que ainda há os que afirmem que é desnecessária a defesa técnica em qualquer caso, pois a Constituição da República não teria feito menção expressa em contrário54.
A solução que parece mais apropriada é garantir a defesa técnica nos processos disciplinares de que possam resultar penas graves. Nestas hipóteses, Odete Medauar indica que já se firmou tendência no sentido de que cabe ao poder público a indicação de defensor dativo, caso o servidor não o tenha constituído (inclusive na revelia)55.
A razão que recomenda a garantia de defesa técnica é a manutenção do equilíbrio entre os sujeitos (paridade de armas), circunstância intimamente associada ao Princípio do Contraditório.
Também deve ser lembrada a presunção de inocência no processo administrativo disciplinar56. Assim, o indiciado é inocente até a decisão final que o considere culpado, impondo-lhe a sanção correspondente. Este Princípio vincula a Administração à prova, determinando que ela a produza e proibindo que se condene aquele cuja culpabilidade não foi legalmente determinada57.
Além da necessidade de se garantir ao acusado o direito de defesa no processo disciplinar, o Princípio do Contraditório também parece condicionar o momento em que ela deve ser produzida58. De fato, se for aceita a idéia de que o a participação do acusado visa interferir nos rumos do processo disciplinar (sobretudo, no seu ato final), deve-se entender que a defesa deve ser produzida antes da prolação do ato decisório.
Assinale-se que tal paradigma deve ceder espaço em casos excepcionais, como nas hipóteses de embargo de obra com risco de desabamento, quando estão em risco a vida e a segurança da população. Nestas situações, deve-se admitir que a defesa seja posterior, inclusive com a garantia da oportunidade de recorrer59.
Outro reflexo importante é a revisibilidade do ato, o direito de interpor recurso administrativo independe de expressa previsão legal60. Tal postulado deriva tanto do Princípio do Contraditório, quanto da organização hierárquica como está disposta a Administração Pública. Assim, “não pode o processo administrativo ser resolvido em uma única instância, a não ser que esteja tramitando perante a mais alta autoridade administrativa61.
Diante de todo o exposto, verificou-se em que extensão o Princípio do Contraditório impressiona a teoria do processo disciplinar. No próximo item, serão analisados os dispositivos da Lei 8.112 que tratam do processo disciplinar. Verificar-se-á se a referida lei, que estabeleceu o regime jurídico estatutário dos servidores públicos federais, confirma as orientações tratadas nas linhas acima.