O Controle jurisdicional da discricionariedade administrativa e a garantia dos direitos da criança e do adolescente
Antes de iniciar uma abordagem a respeito do controle judicial das medidas adotadas pela Administração Pública, é importante frisar que, conforme estudado acima, a discricionariedade das decisões da Administração Pública não é absoluta.
O poder discricionário, melhor compreendido enquanto “dever discricionário”, consiste na faculdade concedida ao Administrador Público, em face do grau de imprecisão existente na letra da lei, optar por uma solução que melhor atenda aos interesses públicos. Esta apreciação de conveniência e oportunidade não significa, entretanto que pode o administrador optar por não cumprir os ditames constitucionais, como, no caso em estudo, deixar de observar o princípio da prioridade absoluta ao direito da criança e do adolescente.
Da mesma forma, esta prerrogativa não importa em afastar da apreciação do Poder Judiciário eventual irregularidade na aplicação de política pública. Neste ponto, destaca-se o inciso XXXV do artigo 5º da Carta Magna: “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”. Assim,
[...] partindo-se da premissa de que nenhuma lesão ou ameaça de lesão a direito (individual, coletivo, difuso, público ou privado) não seja passível de apreciação pelo Poder Judiciário, resta concluir que também a discricionariedade administrativa está sujeita ao controle jurisdicional.
[...]
O poder discricionário não está situado além das fronteiras dos princípios legais norteadores de toda iniciativa da administração e se sujeita a regular apreciação pela autoridade judicante (Marshesan, 2004).
A atividade do Poder Judiciário, após a Constituição Federal de 1988, pode ser dividida em dois segmentos básicos: a resolução dos conflitos entre os particulares, seja ele regido pelo direito privado ou pelo direito público, e o controle das políticas públicas (Appio, 2004, p. 201).
No desempenho da primeira atividade, o Poder Judiciário atua como representante do Estado, exercendo uma de suas funções típicas – a jurisdição. De outro lado, na segunda atividade, o Judiciário possui a atribuição do controle político da atividade dos demais poderes, seguindo a teoria constitucional de freios e contrapesos, já explicada neste capítulo.
Esta última atividade – de controle político – implica, necessariamente, em intervir diretamente no espaço tradicional de outro Poder. Portanto, para que este exercício ocorra de modo imparcial e isento, o constituinte estabeleceu no texto constitucional garantias capazes de assegurar a autonomia do Poder Judiciário, conferindo mecanismos para o exercício desta função.
Estas garantias estão elencadas junto aos incisos do art. 95 da Constituição Federal, quais sejam: a vitaliciedade do cargo de juiz, cuja perda só ocorrerá após sentença judicial transitada em julgado; a inamovibilidade, salvo por motivo de interesse público; e a irredutibilidade de subsídios.
Eduardo Appio (2004, p. 206) descreve que
[...] o controle judicial das políticas públicas consiste em um instrumento estatal de superação de seus conflitos internos, outorgando-se ao Poder Judiciário a função de definir os limites de sua própria jurisdição.
Desta forma, não há dúvidas acerca da possibilidade do controle jurisdicional da atividade discricionária da Administração Pública. Destacou neste sentido, Nery da Silva apud Ana Maria Moreira Marchesan (2004):
[...] não há imunidade legal para quem infringe o direito. O poder discricionário não está situado além das fronteiras dos princípios legais norteadores de toda iniciativa da administração e sujeita-se a regular apreciação pela autoridade judicante.
Da seara jurisprudencial, essa questão pode ser ilustrada com a decisão, proferida em sede de liminar, pela Vara da Infância e Juventude da Comarca de Joinville (SC), a qual concedeu a matrícula para o total de 2.948 crianças em fila de espera de vaga no sistema de ensino infantil daquela municipalidade, afirmando que
[...] a liberdade do administrador público em construir estádios de futebol para a utilização de agremiações privadas e mesmo com a manutenção de programas especiais, como a escola do Teatro Bolshoi, pressupõe que a população carente esteja minimamente atendida. Não se pode aceitar a aplicação de dinheiro público com programas especiais, enquanto a pobreza continua sem escola, saúde e saneamento básico, dentre outros direitos sonegados.
[...]
O administrador público pode escolher suas prioridades discricionariamente somente depois de cumprir com o básico; enquanto não o fizer, vedada se mostra a destinação de recursos para finalidades fomentadoras da iniciativa privada. E isso não precisava nem ser dito.
(Brasil. Vara da Infância e Juventude da Comarca de Joinville. Ação Civil Pública nº 038.03.008229-0. Juiz Alexandre Moraes da Rosa. Julgado em 12/05/2003).
Conclui-se, portanto, que há no nosso ordenamento jurídico valores hierarquizados e, em seu nível mais elevado estão aqueles atinentes à vida e à dignidade. A discricionariedade de conveniência e oportunidade não permite ao administrador que se afaste dos parâmetros principiológicos e normativos da Constituição Federal e de todo o sistema legal.
Dessa forma, a utilização do instituto da discricionariedade administrativa na qualidade de escudo protetor da omissão dos direitos reconhecidos de crianças e adolescentes é totalmente descabida. A própria Constituição Federal, Lei maior do Estado, reconheceu a primazia destes interesses ao utilizar a expressão “prioridade absoluta” em seu art. 227 , o que deve ser observado.
Referências
APPIO, Eduardo Fernando. O controle judicial das políticas públicas no Brasil. Tese submetida à Universidade Federal de santa Catarina como requisito parcial para a obtenção do grau de Doutor em Direito. Florianópolis, 2004.
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