Introdução
A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, ao contemplar os direitos fundamentais, reconheceu a criança e o adolescente como sujeitos de direitos. As mudanças introduzidas pela nova Carta Política fomentaram a necessidade de elaboração de uma nova Lei capaz de contemplar a concepção inovadora trazida pelo legislador constituinte, o que ocorreu em 1990, com a Lei nº 8.069 – o Estatuto da Criança e do Adolescente.
Assim, com o advento do Estatuto, um novo paradigma foi inserido no direito brasileiro: o princípio da absoluta prioridade ao direito da criança e do adolescente. Este princípio, compreendendo a situação peculiar de pessoa em desenvolvimento da criança e do adolescente, determina a primazia do atendimento nos serviços públicos, a preferência na formulação e execução de políticas públicas, e, especialmente, a destinação privilegiada de recursos para as áreas direcionadas à proteção da criança e do adolescente.
Entretanto, apesar da positivação deste princípio junto ao ordenamento jurídico máximo, o Poder Público parece olvidar o avanço legislativo, mantendo-se omisso face às garantias que são dele decorrentes, vez que não é capaz de atender aos interesses de crianças e adolescentes, omitindo direitos fundamentais básicos, como o acesso à educação, o direito à saúde, à alimentação.
Em razão disso, o número de ações judiciais interpostas para obrigar a Administração Pública a adoção de medidas que garantam o cumprimento dos mandamentos constitucionais referentes aos interesses infanto-juvenis é cada vez maior.
Em juízo, a Administração Pública, quando interpelada, repete sucessivamente os mesmos argumentos em sua defesa: não cabe ao Poder Judiciário determinar quais políticas públicas deve implantar o Poder Executivo, sob risco de configurar interferência indevida na esfera de atribuição que não é de sua competência; e, a decisão que determine a adoção de medida de política pública fere o mérito administrativo e a discricionariedade da sua decisão.
Essas alegações, ainda que aceitas por parte da jurisprudência, estão equivocadas e não possuem respaldo dentro do novo panorama do Estado Democrático de Direito estabelecido pela Constituição Cidadã.
O princípio da prioridade absoluta ao direito da criança e do adolescente
A origem do princípio da prioridade ao direito e interesse da criança e do adolescente está ligada ao instituto do parens patrie, conforme aponta Tânia da Silva Pereira (2000, p. 1). Este instituto, utilizado na Inglaterra do século XIV, conferia ao Rei a prerrogativa de proteção das pessoas incapazes, no entanto, apenas no século XVIII as cortes inglesas distinguiram as competências do parens patri de proteção das crianças, das de proteção dos insanos.
A autora aponta dois julgados do Direito Inglês do ano de 1763 - os casos Rex versus Delaval e Blissets, ambos apreciados pelo Juiz Lord Mansfiel - como primeiros precedentes da primazia do interesse da criança, nos quais o magistrado utilizou-se de uma medida semelhante à ação de busca e apreensão brasileira, adotando posicionamento que entendia ser mais adequado para a criança (Pereira, 2000, p. 2).
Nos Estados Unidos, em 1813, no caso Commonwealth versus Addicks, em uma ação de divórcio impetrada em razão de adultério da mulher, a corte concedeu a guarda do filho à mãe, entendendo que a sua conduta com relação ao marido não poderia ser estendida ao filho, decidindo, assim, conforme o melhor interesse da criança (Pereira, 2000, p. 3).
No campo da legislação internacional de proteção à infância e juventude existem, desde a segunda década do século XX, exemplos de dispositivos que confirmam a primazia do interesse da criança e do adolescente.
A Declaração de Genebra, de 1924, já declarava a “necessidade de proclamar à criança uma proteção especial”. Em seguida, a Declaração Universal dos Direitos Humanos das Nações Unidas, de 1948, determinava para a criança “o direito a atendimento e cuidados especiais”.
Em 1959, a Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas – ONU afirmava junto ao segundo princípio da Declaração Internacional dos Direitos da Criança e do Adolescente:
A criança gozará de proteção especial e disporá de oportunidades e serviços, a serem estabelecidos em lei, por outros meios, de modo que possa se desenvolver física, mental, moral, espiritual e socialmente de forma saudável e normal, assim como em condições de liberdade e dignidade. Ao promulgar leis com este fim, a consideração fundamental a que se atenderá será o interesse superior da criança.
Nesse mesmo diapasão, a Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança, igualmente aprovada pela Assembleia das Nações Unidas, em 20 de novembro de 1989, expressou em seu art. 3º:
Todas ações relativas às crianças, levadas a efeito por instituições públicas ou privadas de bem-estar social, tribunais, autoridades administrativas ou órgãos legislativos, devem considerar, primordialmente, o maior interesse da criança.
Esses textos internacionais implicaram em uma nova ótica do direito da criança e do adolescente. A partir de então, estes não seriam mais meros objetos de tutela, e sim, sujeitos de direito. Assim explica Josiane Rose Petry Veronese (1997, p. 13):
A Convenção situa a criança dentro de um quadro de garantia integral, evidencia que cada país deverá dirigir suas políticas e diretrizes tendo opor objetivo priorizar os interesses das novas gerações; pois a infância passa a ser concebida não mais como um objeto de “medidas tuteladoras”, o que implica reconhecer a criança e o adolescente sob a perspectiva de sujeito de direitos.
O Brasil, pais signatário destes tratados, incorporou as diretrizes traçadas pelos textos internacionais à sua legislação pátria. Assim, a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, reconhecida enquanto Carta Cidadã, pela primeira vez no país, reconhece a primazia do interesse da criança e do adolescente:
Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, crueldade e opressão.
Este dispositivo constitucional insere um novo paradigma na proteção à criança e ao adolescente no Brasil, pois além de normatizar o princípio da garantia absoluta de prioridade, substitui a doutrina do “menor em situação irregular”, até então vigente, é substituída pela doutrina da “proteção integral”, assim, conferindo a crianças e adolescentes o caráter de sujeito de direitos.
Passados dois anos da proclamação da nova Carta Magna, em 1990, o legislador aprovou, por meio da Lei. nº 8.069, o Estatuto da Criança e do Adolescente, onde confirmou o mesmo princípio, o que fez em seu art. 4º:
Art. 4º - É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do Poder Público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária.
Parágrafo único. A garantia de prioridade compreende:
a) a primazia de receber proteção e socorro em quaisquer circunstâncias;
b) precedência de atendimento nos serviços públicos ou de relevância pública;
c) preferência na formulação e na execução das políticas sociais;
d) destinação privilegiada de recursos públicos nas áreas relacionadas com a proteção à infância e à juventude.
O termo “prioridade” é definido pelo dicionário Houaiss (2002) como: “condição do que é o primeiro em tempo, ordem, dignidade; possibilidade legal de passar à frente dos outros; preferência, primazia; condição do que está em primeiro lugar em importância, urgência, necessidade, premência”.
O mesmo dicionário define o termo “absoluto” enquanto aquele “que não sofre nem comporta restrição ou reserva; inteiro, infinito; que não admite condições, obrigações, limites; incondicional; que não permite contestação ou contradição; imperioso; único, superior a todos os demais ” (Houaiss, 2002).
Não se pode definir o princípio da absoluta prioridade ao direito da criança e do adolescente se não enquanto a soma de seus vocábulos, ou seja, a primazia incondicional dos interesses e direitos relativos à infância e juventude.
O texto da Constituição e do Estatuto é autoexplicativo, quase gramatical, exigindo do interprete um esforço ínfimo. Não obstante, o legislador ainda traçou rumos hermenêuticos para sua aplicação, não restando dúvidas importância da primazia do interesse da criança e do adolescente:
Art. 6º. Na interpretação desta Lei levar-se-ão em conta os fins sociais a que ela se dirige, as exigências do bem comum, os direitos e deveres individuais e coletivos, e a condição peculiar da criança e do adolescente como pessoas em desenvolvimento.
Assim, é exatamente por encontra-se em na condição de pessoa em desenvolvimento, e por ser certa a fragilidade natural dela decorrente, é que a criança e o adolescente não podem dispensar de direitos e garantias especiais.
Jason Albegaria (1991, p. 30) conecta o princípio da prioridade absoluta ao princípio de humanidade, fundado no sentimento de solidariedade social, típica do estado Democrático de Direito. De acordo com o autor:
Já se acentuou que na sociedade permissiva é frágil esse sentimento de responsabilidade social ou ausência de humanidade, o que exacerba a marginalidade social e a delinquência do ‘menor’. No Estado Democrático de Direito, porém, manifesta-se a corresponsabilidade da sociedade e do estado na ajuda e assistência social em prol da criança e do adolescente.
Bem destaca o jurista Dalmo de Abreu Dallari (1992, p. 25) que, por serem pessoas em desenvolvimento, não estando completa a formação, “não ficou por conta de cada governante decidir se dará ou não apoio prioritário às crianças e aos adolescentes.”
Wilson Donizete Liberati (1991, p. 45), em seus comentários ao Estatuto da Criança e do Adolescente, define o princípio de maneira bastante elucidativa:
Por absoluta prioridade, devemos entender que a criança e o adolescente deverão estar em primeiro lugar na escala de preocupação dos governantes; devemos entender que, primeiro devem ser atendidas todas as necessidades das crianças e adolescentes [...].
Por absoluta prioridade, entende-se que, na área administrativa, enquanto não existem creches, escolas, postos de saúde, atendimento preventivo e emergencial às gestantes, dignas moradias e trabalho, não se deveriam asfaltar ruas, construir praças, sambódromos, monumentos artísticos, etc., porque a vida, a saúde, o lar, a prevenção de doenças são mais importantes que as obras de concreto que ficam para demonstrar o poder do governante.
Discricionariedade Administrativa
A ideia de poder discricionário tem suas origens no Estado Liberal pós-Revolução Francesa de 1789 e deriva da ideia do “laissez faire, laissez passer”, qual permitia ao Administrador além da prática de todo ato não vetado pela lei, uma ampla margem de atuação não sujeita a qualquer forma de controle judicial ou legislativo (Melo, 2001, p. 64).
Esta discricionariedade administrativa surge junto de uma nova concepção de Estado. O Estado Absolutista (L’Etat c’est moi) é substituído por um Estado de Direito, fruto dos ideais liberais dos pensamentos contratualistas como os de Jean Jacques Rousseau. O filósofo descreve o Estado como fruto de um acordo de vontades - o pacto social firmado entre os homens quando abandonaram a barbárie que viviam no Estado de Natureza para a formação da sociedade civil. Assim, uma vez que o Estado é fruto do contrato social, resultante do acordo de vontades, apenas o Estado é fonte de Direito, a legítima expressão da “volonté génerale”, de forma que a justificação do poder reside na vontade dos indivíduos que compõem o todo social (Weffort, 1998, p.197).
Muitos doutrinadores apresentam diversos conceitos para o termo “discricionariedade administrativa”. De maneira simplificada, Odete Medauar conceitua como “a faculdade conferida à autoridade administrativa de, ante certa circunstância, escolher uma entre várias soluções possíveis” (Medauar, 1996, p. 119).
Celso Antônio Bandeira de Mello (1998, p. 48) é mais minucioso ao descrever o instituto, compreendo-o como:
[...] a margem de liberdade que remanesça ao administrador para eleger, segundo critérios consistentes de razoabilidade, um, dentre pelo menos dois comportamentos cabíveis, perante cada caso concreto, a fim de cumprir o dever de adotar a solução mais adequada à satisfação da finalidade legal, quando por força da fluidez das expressões da lei e da liberdade conferida ao mandamento, dela não se possa extrair objetivamente, uma solução unívoca para a situação vertente.
Germana de Oliveira Moraes (1999, p. 42) é ainda mais profunda, apresentando-nos um dos conceitos mais completos, qual seja:
Discricionariedade é a margem de liberdade de uma decisão conferida ao administrador pela norma de textura aberta, com fim de que ele possa proceder, mediante a ponderação comparativa dos interesses envolvidos no caso específico, à concretização do interesse público ali indicado, para, à luz dos parâmetros traçados pelos princípios constitucionais da Administração pública e pelos princípios gerais do Direito e dos critérios não positivados de conveniência e oportunidade: 1º) complementar, mediante valoração e aditamento, os pressupostos de fato necessários à edição do ato administrativo; 2º) decidir se e quando ele deve ser praticado; 3º) escolher o conteúdo do ato administrativo dentre mais de uma opção igualmente prefixada pelo Direito; 4º) colmatar o conteúdo do ato, mediante a confirmação de uma conduta não prefixada porém aceita pelo Direito.
Assim, de acordo com a autora, conforme transcrito acima, a discricionariedade se manifesta de quatro modos diversos: a discricionariedade quanto aos pressupostos (conteúdo do ato); a discricionariedade quanto a decisão (oportunidade e conveniência); a discricionariedade quanto a escolha optativa (quando há mais de uma opção fornecida pela lei); e, por fim, a discricionariedade de escolha criativa (complemento ao conteúdo da norma) (Moraes, 1999, p. 42).
A fonte da discricionariedade é a própria lei, uma vez que ela só existe em razão das lacunas deixada pela lei. Conforme nos ensina Maria Sylvia Zanella Di Pietro (1997, p. 177) são três as situações fáticas em que a discricionariedade será observada: 1) quando a lei expressamente conferir à Administração a escolha; 2) quando a lei for omissa em razão da impossibilidade de previsão de todas as situações supervenientes ao momento de sua promulgação; 3) quando a lei determina a competência, mas, no entanto, não pormenoriza a conduta a ser adotada.
A natureza da discricionariedade administrativa, assim como toda a temática, não é tema unânime na doutrina. Em um primeiro momento, a doutrina a define como um poder concedido ao Administrador no exercício de suas funções. Assim ainda descreve Odete Medauar (1996, p.119): “é o poder, a faculdade conferida à autoridade administrativa de, ante certa circunstância, escolher uma entre várias soluções possíveis”.
O entendimento, hoje predominante, no entanto, enfatiza a discricionariedade administrativa enquanto um poder/dever, na medida em que, não obstante configure como prerrogativa, também cuida de uma obrigação no cumprimento das finalidades dela decorrentes, vez que o interesse prevalecente não é o do próprio administrador, mas sim o interesse geral da coletividade. Assim descreve Celso Antônio Bandeira de Mello (1998, p. 15):
Tomando-se consciência deste fato, deste caráter funcional da atividade administrativa (por isso se diz função administrativa), desta necessária submissão da administração à lei, percebe-se que o chamado ‘poder discricionário’ tem que ser simplesmente o cumprimento do ‘dever de alcançar a finalidade legal’. Só assim poderá ser corretamente entendido e dimensionado, compreendendo-se, então, que há e é um “dever discricionário”, antes de um “poder” discricionário.
A discricionariedade, ainda, está intimamente ligada ao mérito do ato administrativo. O mérito corresponde exatamente à margem livre de incidência de escolha da Administração, ou seja, é a expressão do juízo de conveniência e de oportunidade da escolha.
O mérito é o campo de liberdade suposto na lei e que,efetivamente venha a remanescer no caso concreto, para que o administrador, segundo critérios de conveniência e oportunidade, se decida entre duas ou mais soluções admissíveis perante ele, tendo em vista o exato atendimento da finalidade legal, dada a impossibilidade de ser objetivamente reconhecida qual delas seria a única indicada (Mello, 1998, p. 38).
Após a proclamação da Constituição da República Federativa de 1988, a noção de discricionariedade administrativa no Brasil teve de se adaptar ao Estado Democrático de Direito, recém-instalado no país. Neste contexto, a atividade discricionária da Administração Pública passou a submeter-se não apenas às novas normas positivadas, mas a todos os princípios basilares, descritos no artigo 37 da Carta Magna e pormenorizados no tópico anterior.
Assim, um novo paradigma foi introduzido à discricionariedade administrativa – a juridicidade, que, além de abarcar a conformidade do ato discricionário às regras dispostas no ordenamento jurídico, exige o pleno respeito aos princípios gerais do Direito, determinando, ainda, que seja sempre primado o interesse público. Assim, a discricionariedade administrativa torna-se um instrumento do Administrador para a satisfação do interesse público.
Muito embora os atos discricionários permitam ao administrador certa margem de liberdade de escolha, conciliando oportunidade e conveniência, esta liberdade não é total, restringindo-se aos ditames do ordenamento jurídico. Nas palavras de Odete Medauar (1996, p. 122), “a discricionariedade significa uma condição de liberdade, mas não uma liberdade ilimitada, trata-se de uma liberdade onerosa, sujeita a vínculo de natureza peculiar”.
Desta forma, não é permitido ao Administrador, em nome do poder discricionário que lhe é inerente, descumprir um preceito constitucional como a prioridade absoluta ao direito da criança e do adolescente.
É certo, todavia, que na vida prática, este entendimento não é compactuado pelo Poder Público, na medida em que este, insistentemente, ignora as necessidades relativas à infância e à juventude brasileiras, contribuindo para a continuidade do atual quadro de miséria em que a maior parte delas se encontram.
Diante desta posição omissa, o Poder Judiciário é assolado com inúmeras ações que buscam sanar as irregularidades causadas pelo comportamento da Administração Pública, surgindo uma nova questão: Pode o Poder Judiciário interferir nas políticas públicas de competência do Poder Executivo? Esta questão será pormenorizada no tópico a seguir.