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A segurança jurídica e o princípio da autotutela:

limites necessários à garantia dos direitos fundamentais

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No campo administrativo, o princípio da segurança jurídica ganha uma posição de realce por conjugar a dignidade da pessoa humana e a necessária estabilidade nas relações sociais.

Resumo: O pós-positivismo jurídico trouxe consigo uma nova ordem constitucional, onde o reconhecimento e aplicação dos princípios se revelam mister. Nesse sentido, enorme a sua contribuição para a Administração Pública que, através do princípio da autotutela a ela delegado, se vê dotada do poder-dever de reexaminar e modificar os seus próprios atos. Entretanto, sendo essa possibilidade ilimitada e irrestrita, grandes prejuízos poderia ocasionar aos administrados, no que tange à segurança das relações jurídicas, o que expõe a necessidade de uma análise mais sensível e equilibrada de tal situação, a fim de se observar os direitos fundamentais do indivíduo assegurados na Constituição.  

Palavras-chave: Administração Pública; Princípio da Autotutela; Princípio da Segurança Jurídica.

Sumário: 1 PALAVRAS INICIAIS: DELIMITANDO O OBJETO. 2 A IMPORTÂNCIA DOS PRINCÍPIOS NO CONTEXTO PÓS-POSITIVISTA DO DIREITO. 3 PRINCÍPIO DA AUTOTUTELA E SUAS LIMITAÇÕES. 4 PRINCÍPIO DA SEGURANÇA JURÍDICA: UMA PONDERAÇÃO QUE SE FAZ NECESSÁRIA. 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS: ULTRAPASSANDO BARREIRAS. REFERÊNCIAS.


PALAVRAS INICIAIS: DELIMITANDO O OBJETO

Conquanto seja remota a existência do Estado, uma vez que de acordo com certo entendimento doutrinário, tanto a figura do Estado quanto a sociedade sempre existiram, ainda que possuíssem natureza primitiva de organização (DALMO DALLARI, 1983, p. 45), somente há pouco tempo atrás é que este passou a se submeter à ordem jurídica, com o surgimento do então denominado Estado de Direito em meados do século XVIII e início do século XIX, fruto das revoluções Americana e Francesa, o que representou um grande avanço no tocante à limitação do poderio estatal e, por conseguinte, à liberdade dos administrados.

Todavia, apenas com o advento do pós-positivismo jurídico e a ascensão da autoridade dos princípios enquanto fonte normativa do direito, a Administração Pública além de se submeter a regras de caráter cingido (direito-lei), passou a ser regida por princípios cuja característica peculiar é a plasticidade, que consiste na capacidade de se amoldar às diversas condições apresentadas, tornando-se a própria essência de seu exercício.  

Já que os princípios se tornaram o próprio fundamento da atividade administrativa, analisá-los é de suma importância. Nesse diapasão, tendo como objeto de cognição a Administração Pública Brasileira a qual se submete a princípios estabelecidos desde a Constituição Federal até as leis infraconstitucionais, este trabalho terá como meta aprofundar conhecimentos acerca dos princípios da autotutela e da segurança jurídica.

Isso porque, embora a autotutela corresponda a um poder-dever atribuído à Administração que implique em margem de “liberdade” a fim de rever seus próprios atos, seu desempenho não se dá de maneira absoluta e irrestrita – isto representaria retorno a uma era de trevas, onde a lei correspondia à vontade do Administrador –, haja vista que, caso assim não fosse, a estabilidade das relações jurídicas restaria prejudicada, ferindo-se o princípio da segurança jurídica.   

No decorrer deste trabalho, será feita a análise do crescente papel alcançado pelos princípios no novo paradigma do direito, em seguida, abordar-se-á, pormenorizadamente, o princípio da autotutela e seus alcances. Feito isso, tratar-se-á, em seqüência, do princípio da segurança jurídica, estabelecendo um paralelo entre ambos, observando as dificuldades apresentadas aos juristas na ponderação entre estes e, por fim, caminhos serão propostos para superação desses obstáculos. 


A IMPORTÂNCIA DOS PRINCÍPIOS NO CONTEXTO PÓS-POSITIVISTA DO DIREITO

A fase pós-positivista do Direito está visceralmente associada à história de conquista dos direitos fundamentais do homem. O primeiro grande marco histórico é a Revolução Francesa[1], em 1789, que originou o Estado Moderno, caracterizado pela separação de poderes, agora distintos e autônomos, que visavam conter o poder até então absoluto. Os direitos fundamentais surgidos, nesse momento, tendiam a proteger os cidadãos em face do poderio do Estado, voltando-se à proteção da liberdade individual.

No segundo momento, os direitos políticos foram postos em evidência, a fim de ampliar a participação freqüente e generalizada da sociedade no poder político, não somente de forma negativa, mas proporcionando a liberdade positiva como autonomia (BOBBIO, 1992, p. 32/33).

Posteriormente, marcando a terceira fase do Direito com a exigência da sociedade e, principalmente, dos trabalhadores socialmente organizados com o propósito de granjear a interferência do Estado nas relações privadas, houve a publicização do direito. Os direitos sociais passam, então, a ser incluídos em diversas constituições. Esse fenômeno é denominado de processo de constitucionalização dos direitos sociais. Todavia, essas normas eram interpretadas ainda como não autoaplicáveis.

A Segunda Guerra Mundial mudou esse entendimento. O abalo social surgido com as práticas nefastas ocorridas nesse período, legitimadas pelo direito positivado, impulsionou o desejo de mudança das normas, uma vez que a lei posta não previa o caso como antijurídico. Surgiu daí a necessidade de se buscar nos princípios constitucionais o comando imperativo. Serviriam estes, portanto, como meio de transformação social.

Segundo Luis Roberto Barroso,

a superação histórica do Jusnaturalismo e o fracasso político do Positivismo abriram caminho para um conjunto amplo e ainda inacabado de reflexões acerca do Direito, sua função social e sua interpretação. O Pós-Positivismo é a designação provisória e genérica de um ideário difuso, no qual se incluem a definição das relações entre valores, princípios e regras, aspectos da chamada Nova Hermenêutica Constitucional, e a teoria dos direitos fundamentais, edificada sobre o fundamento da dignidade humana. A valorização dos princípios e sua incorporação, explícita ou implícita, pelos textos constitucionais, e o reconhecimento pela ordem jurídica de sua normatividade fazem parte desse ambiente de reaproximação entre Direito e Ética (BARROSO apud CRUZ, 2009).

Esse último contexto histórico apontou uma nova era para o direito, onde se percebeu o equívoco de se interpretar a lei ignorando os direitos fundamentais previstos na Constituição. A respeito dessa nova fase jurídica, manifesta-se Ney Maranhão:

O direito está em crise. Como diz BARROSO, o direito positivista vive uma grave crise existencial, na medida em que não consegue entregar com eficiência os dois produtos que fizeram sua reputação ao longo dos séculos, mencionando o renomado autor que “a injustiça passeia pelas ruas com passos firmes e a insegurança é a característica da nossa era”. O pós-positivismo, nesse compasso, representa exatamente o anseio por um novo fôlego, a busca de uma nova perspectiva; a ousadia de erguer a cabeça e olhar por sobre as ondas [...] (MARANHÃO, 2009. Grifos originais).

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A era pós-positivista se afasta da regra escrita, aproximando-se, em tese, da Justiça, da moral, da ética e da legitimidade. Os princípios tomam lugar inimaginável em outro momento, passando a ter o status de norma. Por conta disso, são considerados fontes formais do direito, deixando de ter aplicação tão-somente subsidiária (característico do positivismo jurídico), passando a assumir a posição de fonte normativa. Nesse sentido, acentua o jurista Maranhão:

Efetivamente, nosso atual panorama jurídico sinaliza pela alteração da tradicional hierarquia das fontes do direito, tal qual formulada pela Lei de Introdução ao Código Civil. De fato, ao invés de fontes subsidiárias do direito, cuja aplicação só se justificava na ausência de lei ou de costume relacionados ao caso, bem como na impossibilidade da analogia (CC, artigo 4º), os princípios recentemente assumiram o posto de fontes de alta dignidade normativa (MARANHÃO, 2009. Grifos originais).

Vólia Bomfim Cassar afirma que “o princípio diz o fim almejado, mas não diz o meio, o caminho para se chegar àquele fim. É mais plástico, mais aberto, de menor densidade e mais irradiante” (2010, p. 162). Representa, portanto, um caminho de atuação do direito mais voltado ao fim pelo qual se destina, qual seja, tutelar de forma satisfatória as demandas que lhes são direcionadas. E J. J. Gomes Canotilho enfatiza que os princípios são “normas que exigem a realização de algo, da melhor forma possível, de acordo com as possibilidades fáticas e jurídicas” (apud Cassar, 2010, p. 163).

A fase pós-positivista jurídica trouxe uma verdadeira mudança de paradigma no modo de pensar, interpretar e aplicar o direito. Os princípios jurídicos passam a exercer diversas funções. No entendimento de Vólia Bomfim Cassar (2010, p. 165), estas são três: uma informadora (porque inspira o legislador a legislar a favor do bem jurídico tutelado), outra interpretativa (pois opera como critério orientador do juiz ou do intérprete) e, por fim, diretiva e unificadora (porque unifica o ordenamento e direciona os juristas).

No pós-positivismo, o sistema jurídico é visto como aberto, complexo, marcando-se pela interdisciplinariedade. Dessa forma, espera-se do intérprete uma postura construtivista, na medida em que confere sentido aos preceitos legais, lembrando-se de que a Constituição é a norma suprema e de que os princípios possuem normatividade, tendo caráter potencializado e predominante. O juiz possui papel ativo, agindo como verdadeiro produtor do direito, transformando, deste modo, a realidade. É o método ponderativo (prudência) que prevalece na hermenêutica, predominando-se o valor justiça.

Sabe-se que não era desse modo que a hermenêutica era regida no paradigma anterior, isto é, no positivismo, conforme palavras de Ney Maranhão:

Com efeito, no positivismo: i) o intérprete há de ter uma postura neutra, apenas extraindo o sentido já embutido no enunciado legal; ii) o sistema jurídico é visto como fechado/completo, marcando-se pela unidisciplinariedade; iii) dá-se a supremacia da lei (foco no texto legal – prevalência da lex), destacando-se a normatividade das regras; iv) trabalha-se no âmbito do ser/dever ser; v) a interpretação se dá in abstracto, ocorrendo a inconstitucionalidade da norma, esta encarada como objeto da interpretação (o preceito normativo é o ponto de chegada – o fato concreto não é valorizado); vi) reina na hermenêutica o método subsuntivo/silogístico (ciência), com predomínio do valor segurança; vii) há rigidez na separação funcional do poder; viii) o papel do juiz é passivo, na função de mero reprodutor da lei (o juiz descreve a realidade) (MARANHÃO, 2009. Grifos originais).

Todavia, essa realidade passada revelou que, se não se pensasse em algo novo para o direito, ele entraria em colapso. Isto porque não estava conseguindo cumprir com as finalidades que haviam sido planejadas, quais sejam: trazer segurança às relações sociais e promover a justiça.

O pós-positivismo e sua nova maneira de interpretar o direito representaram esse anseio e clamor por transformação, por uma nova perspectiva, em que o ordenamento jurídico não visaria a perfeição, a plenitude, mas evidenciaria um direito mais flexível, adequando-se à vida, instrumento ativo para o cumprimento da função social.

Tamanha é a importância dos fundamentos principiológicos para este novo paradigma do direito que a própria Administração Pública se vê alicerçada sobre o baldrame dos princípios que a norteiam. Dentre os quais, nesta obra, realçar-se-á a autotutela e a segurança jurídica, corolários do Estado Democrático de Direito cuja importância e divergência não nos refutamos de analisar.


PRINCÍPIO DA AUTOTUTELA E SUAS LIMITAÇÕES

À Administração Pública, delegou-se a atribuição de poder anular atos ilegais, como também revogar atos válidos e dotados de eficácia, quando entendidos inoportunos ou inconvenientes ante aos objetivos, por ela, almejados.

Tal finalidade decorre da própria natureza da atividade administrativa, bem como dos fundamentos expressos que a norteiam – notadamente, a legalidade –, estando apregoada no princípio administrativo da autotutela, o qual permite que a Administração possa controlar seus próprios atos, analisando-os quanto ao mérito e à legalidade.

No que tange à apreciação do mérito, a Administração Pública examina a conveniência e a oportunidade de manutenção ou desfazimento de um ato legítimo que, nessa última hipótese, é realizado mediante a revogação perpetrada pela Administração no exercício de seu poder discricionário.

Em exame da legalidade de um ato, a Administração pode, mediante provocação ou ex officio, retirá-lo do mundo jurídico no uso da autotutela, o que se dará através de anulação.

Em ambas as hipóteses (tanto na revogação quanto na anulação), a Administração Pública não precisa ser provocada, podendo corrigir situações irregulares de ofício.

Insta salientar que essa prerrogativa (ou poder-dever) existe ao lado da possibilidade absoluta e inafastável da apreciação, pelo Poder Judiciário, dos atos que possam implicar em ameaça ou lesão a direito [2].

Quer-se dizer que “o sistema de unicidade de jurisdição não impede a realização do controle de legalidade dos atos administrativos pela própria administração pública que os tenha editado” (ALEXANDRINO, 2008, p. 07).

A diferença é que, nesse modelo jurisdicional, as decisões exaradas pelos órgãos administrativos não fazem coisa julgada, característica das determinações proferidas pelo Poder Judiciário.

José dos Santos Carvalho Filho, ao comentar acerca dessa temática lembra que:

A Administração Pública comete equívocos no exercício de sua atividade, o que não é nem um pouco estranhável em vista das múltiplas tarefas a seu cargo. Defrontando-se com esses erros, no entanto, pode ela mesma revê-los para restaurar a situação de regularidade. Não se trata apenas de uma faculdade, mas também de um dever, pois que não se pode admitir que, diante de situações irregulares, permaneça inerte e desinteressada. Na verdade, só restaurando a situação de regularidade é que a Administração observa o princípio da legalidade, do qual a autotutela é um dos mais importantes corolários (2008, p. 27).

Como se observa, é de grande importância e utilidade dotar a Administração dessa faculdade (poder-dever). Isso porque, mediante a atribuição de rever seus próprios atos, está se possibilitando, dentre outras opções, um meio adicional de controle administrativo, o que diminui a sobrecarga do Poder Judiciário no que tange ao controle de legalidade de tais atos.

É certo que, na seara administrativa, o princípio da autotutela já está consagrado, sendo objeto de abalizada orientação do Supremo Tribunal Federal, corte guardiã da Constituição Federal, que o faz referência nas Súmulas 346 e 473, inclusive. Vejamos:

SÚMULA Nº 346. A Administração Pública pode declarar a nulidade dos seus próprios atos.

SÚMULA Nº 473. A Administração pode anular seus próprios atos, quando eivados de vícios que os tornam ilegais, porque deles não se originam direitos; ou revogá-los, por motivo de conveniência ou oportunidade, respeitados os direitos adquiridos, e ressalvada, em todos os casos, a apreciação judicial.

Importa ressaltar que a Administração Pública não apenas pode exercer o seu poder de autotulela em relação a atos ilegais, como também, no tocante a atos válidos (sem vícios), poderá revogá-los quando os entender inconvenientes ao interesse público.

Em relação à apreciação judicial, não compete ao Poder Judiciário apreciar a conveniência e oportunidade de um ato administrativo (mérito), mas tão-somente a sua legalidade.

A esse respeito, corroborando com o entendimento acima oferecido, importa apresentar recentes julgados do Supremo Tribunal de Justiça, corte responsável por uniformizar, com base nos princípios constitucionais, a interpretação das leis federais no Brasil. Vejamos:

AGRAVO REGIMENTAL. ADMINISTRATIVO. CONCURSO PÚBLICO. APROVAÇÃO FORA DO NÚMERO DE VAGAS PREVISTAS NO EDITAL. NOMEAÇÃO. EXPECTATIVA DE DIREITO. PRORROGAÇÃO DO PRAZO DE VALIDADE. ATO DISCRICIONÁRIO. NOVO CERTAME APÓS EXPIRAÇÃO DO PRAZO DO PRIMEIRO. POSSIBILIDADE. 1. A aprovação em concurso público gera mera expectativa de direito, competindo à Administração, dentro de seu poder discricionário, nomear os candidatos aprovados de acordo com a sua conveniência e oportunidade.    2. O surgimento de vaga, dentro do prazo de validade do concurso, não vincula a Administração, que em seu juízo de conveniência e oportunidade, pode aproveitar ou não os candidatos classificados fora do número de vagas previstas no edital. 3. A prorrogação do prazo de validade de concurso é ato discricionário da Administração, sendo descabido o exame quanto à sua conveniência e oportunidade pelo Judiciário. 4. Preenchidas as vagas previstas no edital e expirado o prazo de validade do certame, não há falar em abuso ou desvio de poder referente ao ato que determina a abertura de novo concurso. 5. Agravo regimental improvido (AgRg no RMS 28915/SP. Relator: Min. Jorge Mussi. Órgão julgador: Quinta Turma. Julgamento em: 14/04/2011, publicado no DJ de 29/04/2011).

ADMINISTRATIVO. MANDADO DE SEGURANÇA. SERVIDOR PÚBLICO FEDERAL. REMOÇÃO A PEDIDO, A CRITÉRIO DA ADMINISTRAÇÃO. ILEGALIDADE. NÃO OCORRÊNCIA. DISCRICIONARIEDADE. PROBLEMAS DE SAÚDE DA FILHA. AUSÊNCIA DE COMPROVAÇÃO. SEGURANÇA DENEGADA. 1. O ato de remoção a pedido de servidor público sujeita-se, em regra, a juízo de conveniência e oportunidade da Administração, insuscetível de exame pelo Poder Judiciário, mormente quando se apresenta devidamente motivado o indeferimento do pedido (...). 3. Embora o impetrante utilize como justificativa do seu pedido de remoção os problemas de saúde de sua filha mais velha, não submeteu seu pleito à análise da junta médica oficial, a fim de que fosse comprovada a necessidade de remoção para tratamento de saúde, conforme determina o art. 36, III, "b", da Lei 8.112/90. (...) Segurança denegada (MS 15695/DF. Relator: Min. Arnaldo Esteves Lima. Órgão julgador: Primeira Secção. Julgamento em: 14/03/2011, publicado no DJ de 22/03/2011).

PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. AGRAVO REGIMENTAL. AGRAVO DE INSTRUMENTO. MILITAR. TAIFEIRO DA AERONÁUTICA. PORTARIA Nº R-46. OMISSÃO E CONTRADIÇÃO. NÃO OCORRÊNCIA. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO REJEITADOS. 1. Consoante jurisprudência do STJ, faz-se necessário o preenchimento dos requisitos correspondentes para a promoção de Taifeiro à graduação de suboficial. 2. A exigência desses requisitos é de competência exclusiva da Administração, porque relacionados a juízos de conveniência e oportunidade, cujas análises são vedadas ao Poder Judiciário. 3. Embargos de declaração rejeitados (EDcl no AgRg no Ag 110506/RJ. Relator: Min. Celso Limongi. Órgão julgador: Sexta Turma. Julgamento em: 07/12/2010, publicado no DJ de 17/12/2010).          

Vale salientar que conveniência e oportunidade de um ato administrativo enquadram-se no âmbito do exercício da competência discricionária que, segundo Celso Antônio Bandeira de Mello (2008, p. 422), dada a “impropriedade da nomenclatura corrente (que leva à oposição ato discricionário/ato vinculado) é causa de inúmeros e graves equívocos jurídicos”.

Como se sabe, num Estado de Direito, a Administração Pública deve agir tão-somente em obediência à lei, fundamentada nela e tendo em foco a leal realização das finalidades firmadas no ordenamento jurídico (princípio da legalidade - art. 37, caput, da CF).

Logo, embora a discricionariedade importe em certa margem de “liberdade” de avaliação de quais decisões a Administração Pública deva tomar, segundo critérios de conveniência e oportunidade consistentes de razoabilidade, o administrador sempre estará adstrito à lei, ou melhor, suas escolhas deverão destinar-se à satisfação da mais adequada finalidade legal.

Em outras palavras, pode-se dizer que a discricionariedade é liberdade dentro da lei, mais que isso, somente existe quando conferida pela própria norma legal. Nesse sentido, esclarecedores são os excertos de Celso Antônio Bandeira de Mello:

Não se confundem discricionariedade e arbitrariedade. Ao agir arbitrariamente o agente estará agredindo a ordem jurídica, pois terá se comportado fora do que lhe permite a lei. Seu ato, em conseqüência, é ilícito e por isso mesmo corrigível judicialmente (...). Romeu Felipe Bacellar Filho, com muita propriedade disse: ‘O conceito de função administrativa – como exercício de um poder atrelado necessariamente a uma finalidade estranha ao agente – impede o entendimento da discricionariedade administrativa como liberdade de conduta’. (2008, p. 424).

Percebe-se que esta atribuição conferida à Administração Pública, no que tange à análise e revisão do mérito de seus atos legítimos, se trata de um poder-dever que não é ilimitado, mas sim contido em fronteiras exigidas pelo próprio modelo de Estado adotado, o qual é regido e fundamentado pela ordenação normativa.

A propósito, o Superior Tribunal de Justiça, corroborando com este entendimento, já decidiu que:

ADMINISTRATIVO. RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA. CONCURSO PÚBLICO. ESCREVENTE DE POLÍCIA JUDICIÁRIA. TESTE DE APTIDÃO FÍSICA. COMPATIBILIDADE COM AS EXIGÊNCIAS DA LC 114/2005, DO CURSO DE FORMAÇÃO E DO CARGO. (...) 4. O edital, por ser a lei do concurso, vincula tanto a Administração Pública quanto os candidatos que, ao se inscreverem, manifestam a sua vontade de participar da competição, em observância às regras estabelecidas para o certame. Assim, não tendo apresentado impugnação ao instrumento convocatório no momento oportuno, não pode agora a recorrente contestar as regras ali estabelecidas, ainda mais quando o foram com respaldo na legislação aplicável à espécie. 5. As disposições do edital inserem-se no âmbito do poder discricionário da Administração, o qual não está isento de apreciação pelo Poder Judiciário, se comprovada ilegalidade ou inconstitucionalidade nos juízos de oportunidade e conveniência, o que não se verifica na hipótese vertente. 6. Recurso ordinário não provido.

No que diz respeito à possibilidade de revisão de atos administrativos no tempo, em nome do princípio da segurança jurídica, no âmbito do processo administrativo federal, criou-se a Lei nº 9.784 de 29 de janeiro de 1999 a qual, inovadoramente, visando resguardar os direitos daqueles que poderiam vir a ser atingidos por decisão administrativa que lhes fosse desfavorável, prevê:

Art. 54. O direito da Administração de anular os atos administrativos de que decorram efeitos favoráveis para os destinatários decai em cinco anos, contados da data em que foram praticados, salvo comprovada má-fé.

§ 1º No caso de efeitos patrimoniais contínuos, o prazo de decadência contar-se-á da percepção do primeiro pagamento.

 § 2º Considera-se exercício do direito de anular qualquer medida de autoridade administrativa que importe impugnação à validade do ato.

Por oportuno, doutrinariamente, tem-se entendido que este dispositivo pode ser utilizado por analogia, diante de omissões legislativas no âmbito estadual ou municipal, como parâmetro de orientação em tais esferas administrativas de poder. Nesse sentido, esclarecedoras são as palavras de Romeu Felipe Bacellar Filho:

[...] se a prescritibilidade da pretensão punitiva da Administração Pública consubstancia princípio constitucional expresso, a inexistência de lei versando sobre o prazo prescricional jamais poderá levar à imprescritibilidade, devendo o intérprete socorrer-se da analogia para colmatar eventuais lacunas (1998, p. 381).

Destarte, muito embora o princípio da autotutela represente uma prerrogativa estatal promovedora de melhorias no âmbito da Administração Pública – tanto no que se refere à agilidade na apreciação de suas demandas quanto à própria capacidade/atribuição de rever seus atos – limites tem sido criados ao seu exercício, a fim de resguardar os direitos daqueles que de boa fé agiram, garantindo maior estabilidade às relações jurídicas, haja vista que constitui ofensa aos fundamentos de um Estado de Direito permitir que a sociedade viva sob a égide da insegurança jurídica.          

Assim sendo, não obstante a autotutela corresponda a um dever para a Administração Pública de natureza constitucional, seu exercício não pode se dar de modo absoluto e sem restrições, vez que, por si só,  a invalidação de atos administrativos não garante a restauração da ordem jurídica.

Sobre as autoras
Radimille Silva Lima

Advogada, bacharela em Direito, formada pela Universidade Estadual de Feira de Santana - BA (UEFS).

Sâmela Santana Vieira

Advogada, bacharela em Direito, formada pela Universidade Estadual de Feira de Santana - BA (UEFS).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LIMA, Radimille Silva; VIEIRA, Sâmela Santana. A segurança jurídica e o princípio da autotutela:: limites necessários à garantia dos direitos fundamentais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3987, 1 jun. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/28953. Acesso em: 23 dez. 2024.

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