3. RECONHECIMENTO DO TRANSEXUAL NO ORDENAMENTO JURÍDICO
3.1. O Registro Civil – Breve Introdução
Aduz a Constituição Federal, em seu artigo 236:
Art. 236. Os serviços notariais e de registro são exercidos em caráter privado, por delegação do Poder Público.
Ainda, os serviços notariais e de registro são regidos pela Lei nº 8.935, de 18 de novembro de 1994, conhecida como “Lei dos Cartórios” que, em seu artigo 1º, traz a definição de serviços notariais e de registro, afirmando que “serviços notariais e de registro são os de organização técnica e administrativa destinados a garantir publicidade, autenticidade, segurança e eficácia aos atos jurídicos.”.
Além disso, a atividade de Registro Civil é regulamentada, também, pela Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973 (Lei de Registros Públicos), a qual sujeita ao seu regime o registro (i) civil de pessoas naturais; (ii) civil de pessoas jurídicas; (iii) de títulos e documentos; e (iv) de imóveis.
Ademais, pode-se definir Registro Civil como o termo jurídico que designa o assentamento dos fatos da vida de um indivíduo, sendo ato jurídico que dá publicidade ao nascimento com vida de um ser humano, conferindo-lhe existência legal e autêntica, atribuindo-lhe aptidão para contrair obrigações e adquirir direitos, além de indicar o casamento, divórcio e morte.
Também são passíveis de registro civil as interdições, as tutelas, as adoções, os pactos pré-nupciais, o exercício do poder familiar, opção de nacionalidade e outros fatos que afetem a relação jurídica entre cidadãos.
Por fim, aprofundaremos o estudo apenas quanto ao registro de nome de pessoas físicas, bem como suas possíveis alterações posteriores, como é, atualmente, essa mudança para os transexuais e quais são as soluções em discussão para melhor adequação do prenome de pessoas transgêneras.
3.2. A possibilidade de alteração de nome
O direito ao nome está previsto no Capítulo II do Código Civil, que faz referência aos Direitos de Personalidade.
Afirma o artigo 16 que “toda pessoa tem direito ao nome, nele compreendidos o prenome e o sobrenome”.
Podemos definir o nome como sendo a identificação social da pessoa, com a finalidade de individualizá-la, assegurando sua própria satisfação psicológica e sua estabilidade jurídica, além do direito à integridade – física e psíquica –, bem como o direito à liberdade e à dignidade da pessoa humana.
Nas palavras de Carlos Roberto Gonçalves, o nome “integra a personalidade, individualiza a pessoa não somente durante sua vida, como também após sua morte (...)”.
Neste diapasão, expõe André Carvalho que “o nome civil integra a personalidade do ser humano, exercendo as funções precípuas de individualização das pessoas nas relações de direitos e obrigações desenvolvidas em sociedade”.
E prossegue afirmando que “o nome é o elemento responsável por identificar cada ser humano, atribuindo-lhe caráter personalíssimo, e o diferenciando dos demais. Inicia-se com o registro que, em regra, acontece logo após o nascimento, e acompanha a pessoa natural por toda a vida, podendo haver reflexos, inclusive, após sua morte.”.
Ademais, dada à elevada importância quanto à individualização da pessoa que se dá com o nome, bem como a necessária identificação destes pelo Estado, a Lei de Registros Públicos estabeleceu em seu artigo 58 que “O prenome será definitivo, admitindo-se, todavia, a sua substituição por apelidos públicos notórios.”.
Inicialmente, o prenome era tido como imutável. Essa inicial imutabilidade quanto ao nome civil dos indivíduos se baseava, principalmente, na segurança jurídica, propondo-se a evitar fraudes, impedindo o uso do nome por pessoas terceiras, com a finalidade de isentar-se de eventual responsabilidade civil e/ou penal.
Entretanto, a Lei nº 9.708, de 18 de novembro de 1998, alterou o artigo 58 da Lei de Registros Públicos que previa essa imutabilidade, substituindo este adjetivo por “definitivo”, ficando, portanto, o prenome como definitivo, mas com possibilidade de alteração nos casos previstos em lei.
Ademais, a doutrina e a jurisprudência já permitiam mudanças e retificações no prenome no prenome além daquelas já conhecidas, quais sejam
(i) quando há erro de grafia;
(ii) exposição do portador do nome ao ridículo;
(iii) alteração por vontade do portador ao atingir a maioridade civil (artigo 56 da Lei de Registros Públicos);
(iv) alteração do nome pela adoção e reconhecimento de filho fora do casamento;
(v) alteração de nome pelo casamento, separação, divórcio e união estável;
(vi) adoção de apelido público e notório ao nome;
(vii) alteração do nome pela lei de proteção às testemunhas e às vítimas; e
(viii) alteração de nome por estrangeiros.
As alterações, portanto, se impunham no sentido de corrigir eventuais equívocos no nome e em outros casos que se tornassem prejudiciais à vida de seu portador.
Razoável, portanto, ressaltar-se que o objetivo do legislador, ao promover o prenome como imutável era o de, como dito anteriormente, “evitar que, por malícia, por interesse, por capricho ou qualquer sentimento menos nobre, se esteja a todo instante a mudar de nome” e que, assim, é possível que haja alteração do prenome, para que a exigência do assento de nascimento atenda a sua finalidade social.
Isto posto, adentraremos ao tema principal deste trabalho, qual seja a possibilidade de alteração do prenome a pedido de transexuais que se submeteram à cirurgia para adequação de gênero.
3.2.1. Alteração de prenome de transexuais
O pedido de alteração do prenome do transexual, com ou sem a feitura da cirurgia transgênera, não possui fundamento legal, havendo a necessidade de solicitação judicial, com decisão favorável transitada em julgado, para que possa haver a modificação do registro civil.
Entretanto, o transexual que requer a mudança de nome e gênero no registro civil pelas vias judiciais, fica a mercê de posturas, muitas vezes, conservadoras e preconceituosas exatamente por essa falta de previsão legal quanto à modificação no registro civil.
Felizmente, em muitos casos, a jurisprudência tem se mostrado progressista ao reconhecer ao transexual o direito a uma nova identidade sexual, mas ainda não consegue delimitar o alcance social dessa nova identidade.
No pensamento de Lívia Rocha:
Para os defensores da impossibilidade da alteração do registro público diante dos casos de transexualismo, a justificativa não é outra senão as características de imutabilidade e veracidade daqueles.
Assim, a regra trazida pela imutabilidade apenas apresenta flexibilidade diante dos casos previstos pela própria legislação, consoante apontamentos, sendo que ela não prevê, em nenhuma de suas exceções, a possibilidade de alteração diante dos casos de transexualidade, fato que sequer ultrapassou as barreiras do processo legislativo.
Contudo, há de se considerar a urgência quanto à integração dos indivíduos em sociedade, preservando sua dignidade e evitando maiores constrangimentos quanto ao seu prenome.
Os fundamentos jurídicos utilizados para sustentar a decisão de permissão de mudança de prenome, consistem, em especial, no artigo 3º da Constituição Federal de 1988 e nos artigos 4º e 5º do Decreto-Lei nº 4.657 (Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro).
Assim sendo, tem-se evidente que a omissão legislativa não se apresenta como óbice no requerimento de alteração do prenome, sendo certo que a Constituição Federal garante a proteção aos princípios constitucionais básicos, como a dignidade da pessoa humana, direito a liberdade, à integridade física e psíquica, estando esses princípios diretamente ligados a alteração do prenome, devendo este ser compatível com a aparência física e estado psicológico do indivíduo, evitando a exposição ao escárnio.
Nas palavras de Rafael Pereira:
O nome existe para uma perfeita e exata identificação de uma pessoa na sociedade, não para causar-lhe constrangimento e situações vexatórias e preconceituosas.
Trata-se de um símbolo de personalidade do indivíduo que, além de produzir efeitos jurídicos, é capaz de particularizá-lo no seio social.
O mesmo é o posicionamento de Tereza Vieira, que expõe que “de nada adianta ostentar um prenome pelo qual não se é reconhecido, que não o identifica, que não exprime a verdade. O registro deve estar em consonância com a realidade”.
Nesse diapasão, Maria de Fátima assevera que tanto a doutrina quanto a jurisprudência estão mais favoráveis à alteração do prenome de transexuais nos registros públicos, sob os seguintes argumentos:
(i) O artigo 1º, inciso III, da Constituição Federal, constitui a dignidade humana como um dos fundamentos da República, assegurando o livre desenvolvimento da personalidade, “garantindo ao transexual o direito à cidadania e a posição de sujeito de direitos no seio da sociedade”;
(ii) A cirurgia de redesignação sexual possui caráter corretivo e não mutilador como antes era colocada;
(iii) Estando o direito ao próprio corpo integrando os direitos da personalidade, é direito do transexual buscar seu equilíbrio físico e psicológico, buscando o livre desenvolvimento de sua personalidade.
Ademais, a Lei de Registros Públicos, em seu artigo 58, aduz, conforme exposto anteriormente, que o prenome poderá ser substituído por apelidos públicos notórios.
Nesse aspecto, assevera Carlos Gonçalves que “se a pessoa é conhecida de todos por prenome diverso do que consta em seu registro, a alteração pode ser requerida em juízo, pois prenome imutável, segundo os tribunais, é aquele que foi posto em uso e não que consta do registro”.
Ora, o transexual, mesmo antes de submeter-se à cirurgia de redesignação sexual, claramente adotará um novo nome, sendo posto como apelido, com intuito de evitar o acanhamento perante a sociedade.
Por este “apelido”, será conhecido, equivalendo este à sua nova identidade sexual.
Portanto, poderia claramente pleitear a mudança de prenome utilizando-se deste artifício previsto em lei.
Ainda levando em consideração o exposto na Lei de Registros Públicos, o parágrafo único de seu artigo 55, que aduz que “Os oficiais do registro civil não registrarão prenomes suscetíveis de expor ao ridículo os seus portadores. (...)”, é correto afirmar que se afigura possível modificar o prenome suscetíveis de expor seu portador ao ridículo.
Desta feita, não há como negar que o indivíduo que possui uma aparência física, bem como uma identidade psíquica, diversa daquele prenome e gênero constantes em seu registro civil e documentos da vida pública, se encontrará em situação vexatória ao apresentar tais documentos contendo informações incompatíveis com seus aspectos físicos.
Portanto, é razoável admitir que haja a alteração de prenome do transexual para adequação das informações de seus documentos com sua nova realidade social.
Assim, tendo em vista que a função do nome é individualizar seu portador, devendo o registro civil apresentar situação verídica do indivíduo, não adequar os documentos de um transexual seria um atentado à veracidade das informações daquela pessoa, tolhendo seu direito à identidade e desfavorecendo sua integração social.
Por fim, quanto aos direitos de personalidade, cabe ampliarmos a discussão, elencando aqueles princípios inerentes ao ser humano, destacando sua ligação com a necessidade de alteração de prenome e gênero nos registros públicos de transexuais.
3.3. Direitos de personalidade e a Lei de Registros Públicos
Os direitos de personalidade fundamentais vêm previstos na nossa Constituição Federal vigente, em seu artigo 5º que, em seu caput, enumera-os em:
direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, além de discorrer sobre outros direitos nos incisos do referido artigo e em demais artigos contidos em seu corpo.
Entretanto, não se pode resumir os direitos de personalidade como apenas aqueles enumerados na Constituição Federal, posto que, além dos supracitados, as mais diversas doutrinas jurídicas enumeram variadas outras espécies destes direitos.
Os direitos de personalidade, nas palavras de Carlos Alberto Bittar, são:
(...) aqueles direitos essenciais, vitalícios e intransmissíveis, em regra, necessários e oponíveis ‘erga omnes’, que têm posição singular no âmbito dos direitos privados, por protegerem valores inatos, ou originários, da pessoa humana e, também, da pessoa jurídica, como a vida, a honra, a identidade, o segredo e a liberdade.
Portanto, tem-se que os direitos de personalidade constituem direitos inatos, inerentes à pessoa e à sua dignidade, sendo irrenunciáveis e intransmissíveis, conforme previsto no artigo 11 (onze) do Código Civil vigente.
Ademais, são dotados de determinadas características peculiares, quais sejam,
(i) generalidade, por serem outorgados a todas as pessoas, pelo simples fato de existirem;
(ii) extrapatrimonialidade, já que não possuem conteúdo patrimonial direto, aferível objetivamente;
(iii) indisponibilidade, por não poderem mudar de titular de forma alguma;
(iv) imprescritibilidade, posto não se extinguir pelo não-uso;
(v) impenhorabilidade;
(vi) vitaliciedade, sendo inatos e permanentes; e
(vii) absolutos, ou erga omnes, por serem oponíveis contra todos, impondo à coletividade o dever de respeitá-lo.
Para Carlos Alberto Bittar, os direitos de personalidade “são dotados de caracteres especiais, para uma proteção eficaz à pessoa humana, em função de possuírem, como objeto, os bens mais elevados da pessoa humana”.
Por essa razão é que estes direitos são intransmissíveis e indispensáveis, manifestando-se desde seu nascimento, conforme expõe o artigo 2º do Código Civil.
Ademais, podem-se dividir os direitos de personalidade em três grandes grupos, quais sejam:
(i) Os direitos físicos, que seriam aqueles referentes a componentes materiais da estrutura humana;
(ii) Os direitos psíquicos, sendo aqueles atinentes a elementos intrínsecos da personalidade; e
(iii) Os direitos morais, que seriam aqueles que dizem respeito a atributos valorativos da pessoa na sociedade.
Para melhor elucidar a questão dos direitos de personalidade e como estes influenciam na demanda da modificação de registro civil, em especial, quanto às mudanças requeridas por transexuais, detalharemos alguns desses direitos constitucionais com intuito de demonstrar a necessidade absoluta de haver a alteração de nome e gênero nos documentos civis dos transexuais, como medida para preservar, essencialmente, seu direito a uma vida digna, afastado dos escárnios advindos da sociedade.
3.3.1. Da dignidade da pessoa humana
A dignidade da pessoa humana é um princípio que consagra um valor cujo intuito é proteger o ser humano contra tudo que lhe possa levar ao menoscabo.
Não é vista por muitos autores como um direito, já que não está prevista pelo ordenamento jurídico e por tratar-se mais de um atributo inerente a todo ser humano, sendo considerada valor constitucional supremo.
Entretanto, neste trabalho, discorreremos sobre a dignidade da pessoa humana como um princípio, não apenas com o intuito de facilitar o entendimento, mas por crermos se tratar não apenas de um princípio, mas aquele que unifica todos os demais princípios e direitos fundamentais, servindo de critério vetor para a identificação destes, posto se tratarem de concretizações das exigências do princípio da dignidade da pessoa humana.
Nas palavras de Alessandro Siqueis:
Independente do referencial de que se parta, resta assente que a dignidade da pessoa humana deve ser fundamento para a convivência social.
Ser racional e ter autonomia estão na base da estrutura humana, ressalvando-se as hipóteses de privações.
Por ser assim, sabendo-se que o ser humano é digno e autônomo, deve se conferir a este a prerrogativa de ser e estar no mundo sem sofrer qualquer discriminação.
A realidade jusfilosófica deve se estruturar para o ser humano se realize em sua plenitude.
Para Fábio Comparato, a dignidade da pessoa humana resulta do fato de, por sua vontade racional, a pessoa vive em condições de autonomia, sendo capaz de guiar-se pelas leis que ele próprio edita, não derivando este princípio apenas do fato de ser considerado e tratado como um fim em si e nunca como um meio para a consecução de um resultado.
Neste diapasão, propôs Ingo Sarlet a seguinte definição para a dignidade da pessoa humana:
Temos por dignidade da pessoa humana a qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão dos demais seres humanos.
Portanto, o princípio da dignidade da pessoa humana visa, acima de tudo, proteger o ser humano contra qualquer ação que atente contra seu bem estar, garantindo-lhe condições para levar uma vida digna.
Como já dito no decorrer deste trabalho, os transexuais vivem uma constante desarmonia entre seu psicológico e seu físico, luta que pode ser resolvida com a adequação do sexo biológico ao gênero com o qual se identifique.
Entretanto, a dor não é amenizada se o transexual não puder ter seus documentos adequados a sua nova realidade, permanecendo em constante situação degradante perante a sociedade.
Aduz Alessandro Siqueira que:
Ao tratar da transexualidade, é preciso se enfrentar, necessariamente, o conceito de dignidade da pessoa humana.
Diz-se isto em razão de a pessoa transexual ver sua felicidade associada a uma configuração diferente da que possui.
É de se considerar, assim, que, conquanto não se possa resolver a problemática na lógica do Direito Positivo – onde a resposta é oferecida a priori pelo sistema -.
É um fato que não pode ser ignorado, sob pena de o direito se tornar segregador.
Ignorar demandas desta ordem implicaria na negação da realidade psicofísica, fato que o regime da dignidade da pessoa humana repugna por representar afronta a seu núcleo fundamental.
Assim, torna-se clara a importância da concretização do princípio da dignidade da pessoa humana, estando o transexual acobertado por este direito, sendo, portanto, sua proteção condição essencial à sua integridade psicofísica, pleno desenvolvimento e inclusão na sociedade.
3.3.2. Direito a identidade
O direito à identidade nada mais é que a individualização do ser humano perante a sociedade, possuindo cunho estritamente moral.
Esse direito é essencialmente representado pelo nome adquirido, essencialmente, com o registro de nascimento do indivíduo.
Sobre o direito à identidade, assevera Rubens França:
Sua importância prescinde de justificação, pois está na base do exercício de todos os demais direitos.
Na verdade, para que o sujeito de um direito, qualquer que seja, possa exercer esse direito de maneira pacífica e segura, é necessário que não haja dúvida sobre a sua identidade, de onde a relevância do direito a essa identidade.
Verifica-se que saber quem exatamente qual a própria identidade é requisito indispensável para que se possa existir a própria identificação.
Ora, é demasiado contraditório requerer que o indivíduo tenha absoluta certeza de sua identidade de gênero para depois tolher-lhe o direito a ver essa identidade registrada em seus documentos civis.
Nas palavras de Maria Helena Diniz:
Nos arts. 16 a 19, tutela o Código Civil o direito ao nome contra atentados de terceiros, tendo-se em vista que ele integra a personalidade, por ser sinal exterior pelo qual se individualiza a pessoa, identificando-as na família e na sociedade.
Reprime-se o abuso cometido por alguém que o exponha ao desprezo público ou ao ridículo, violando a respeitabilidade de seu titular, acarretando dano moral ou patrimonial, suscetível de reparação, mediante supressão de uso impróprio do nome ou indenização pecuniária.
Por conseguinte, não podemos esquecer que, além da identidade exposta pelo nome, também há a identidade sexual, “a qual integra um poderoso aspecto da identidade pessoal” tratando-se, também, de um dos direitos de personalidade, englobado pelo direito à identidade.
O direito à identidade sexual nada mais do que o “direito de parecer extremamente igual a si mesmo em relação com a realidade do próprio sexo, masculino ou feminino, ou seja, o direito ao exato reconhecimento do próprio sexo real, antes de mais nada na documentação contida no registro do estado civil”.
Portanto, razoável que, havendo o direito à identidade, resguardado pela Constituição Federal, é direito inerente ao transexual ter alterados seus documentos civis, adequando-os à sua realidade social.
3.3.3. Direito à integridade física e psíquica
De forma simplificada, podemos definir o direito à integridade física como aquele direito a ter seu corpo respeitado de forma ampla, além de compreender o modo físico de ser da pessoa, visando conservar o que é íntegro.
Nas palavras de Rita Leite:
Integridade, que significa inteireza, completude ou perfeição, vem a ser a qualidade daquilo que é íntegro, não tocado, completo, o que não sofreu diminuição e é suscetível de conservar-se perfeito, acabado, ou de desenvolver-se normalmente, porque está ileso.
Nesse diapasão, define-se direito à integridade psíquica como sendo aquele que protege a saúde mental do individuo, consistindo em manter a lucidez mental do ser, opondo-se a qualquer atentado que venha a atingi-lo.
Esse princípio é fundado na regra básica de convivência, expressa pela máxima neminem laedere, e visa à preservação da higidez física e intelectual da pessoa, possibilitando-lhe ter uma vida mais cômoda para o alcance de suas metas particulares.
Aqui, cabe-nos expor o seguinte questionamento: no caso dos transexuais, por haver uma característica mutilação de determinados órgãos, deve prevalecer o direito a integridade física ou a integridade psíquica?
Em nosso entendimento, parece mais adequado a conservação da saúde mental e emocional do individuo, posto que somente dessa forma, com a adequação entre o físico e seu psicológico, o transexual poderá apaziguar seu sofrimento.
3.3.4. Direito à liberdade
O direito à liberdade nada mais é que o “direito em poder a pessoa direcionar suas energias, no mundo fático, em consonância com a própria vontade, no alcance dos objetivos visados ”. É “o direito de cada um se manifestar consoante sua vontade”.
Portanto, esse direito sendo reconhecido aos transexuais, posto tratar-se de direito inerente previsto na Constituição Federal, dá-lhes o direito de apontar suas forças para alcançar uma meta particular – nesse caso, a amoldamento entre seu físico e seu psicológico, e posterior modificação de seus documentos.
Nas palavras de Carlos Alberto Bittar, “a ninguém cabe criar obstáculos à vida das pessoas, tolhendo-lhe a ação, sob pena de violar o direito em tela, oponível erga omnes”.
3.3.5. Direito à honra
Toda espécie de honra é elemento de cunho moral, integrando o rol dos direitos de personalidade e “por ele se procura proteger a dignidade pessoal do individuo, sua reputação diante de si próprio e do meio social no qual está inserido”.
Ademais, a honra pode ser considerada tanto como o valor moral íntimo do ser humano, como também a consideração da sociedade ou, ainda, a consciência da própria dignidade pessoal.
Portanto, levando-se esse direito ao quadro dos transexuais, sendo este individuo resguardado de direitos constitucionais, a não modificação da documentação da vida civil acarretaria na exposição do transexual ao ridículo perante a sociedade, denegrindo sua honra e indo contra o princípio do direito à honra.
3.4. Projetos de Lei alterando a Lei de Registros Públicos
Visando inserir o transexual no ordenamento jurídico pátrio, diversos foram os projetos de lei apresentados com a tentativa de regulamentar a documentação civil do transexual, entretanto, até o momento, mostraram-se todos infrutíferos.
O primeiro projeto de lei apresentado data de 1985, levava o nº 5.789 que propunha a inserção de um inciso VII no artigo 29 da Lei de Registros Públicos, permitindo o registro de sentenças que decidissem sobre a mudança de gênero e prenome, além de sugerir a alteração do artigo 59 da referida lei, ajustando a imutabilidade do prenome diante de cirurgia que implicasse na mudança de gênero.
Além de alteração na Lei nº 6.015/1973, o projeto também visava o acréscimo de um novo parágrafo ao artigo 129 do Código Penal, de forma a permitir a intervenção cirúrgica destinada à alteração do sexo, posto, como já dito anteriormente neste trabalho, a orientação do Conselho Federal de Medicina era de que a realização da cirurgia sem autorização judicial poderia acarretar em processo judicial por crime de lesão corporal.
Entretanto, o projeto foi arquivado em dois anos após sua proposição.
Cinco anos depois, no ano de 1992, o Deputado Antonio de Jesus apresentou à Câmara dos Deputados o projeto de lei nº 3.349, proibindo a alteração do prenome nos casos de indivíduos que sofreram intervenção cirúrgica para mudança de sexo.
Sua justificativa era embasada na ideia – errônea – de que a autorização da mudança de prenome por transexuais traria a necessidade de criar um terceiro gênero, já que estaríamos, de fato, reconhecendo a figura do transexual.
Felizmente, o projeto foi arquivado definitivamente em fevereiro de 1995.
No mesmo ano de 1995, novamente, o Deputado José Coimbra apresentou o projeto de lei nº 70, cujo objetivo era retomar o exposto em seu projeto anterior (PL nº 5.789/85), cuidando de acrescentar um novo parágrafo ao artigo 129 do Código Penal, de forma a permitir a intervenção cirúrgica destinada à alteração do sexo, desde que haja consentimento expresso da pessoa interessada e todas as cautelas imprescindíveis, como a realização de todos os exames médicos necessários, com parecer unânime da junta médica.
Além disso, também propunha a alteração da Lei de Registros Públicos, para possibilitar a adaptação de transformação física à realidade registral.
Pelo presente projeto de lei, o artigo 58 da Lei nº 6.015/73 passaria a vigorar com a seguinte redação:
Art. 58. O prenome será imutável, salvo nos casos previstos neste artigo.
§1º Quando for evidente o erro gráfico do prenome, admite-se a retificação, bem como a sua mudança mediante sentença do juiz, a requerimento do interessado, no caso do parágrafo único do art. 55, se o oficial não houver impugnado.
§2º Será admitida a mudança do prenome mediante autorização judicial, nos casos em que o requerente tenha se submetido a intervenção cirúrgica destinada a alterar o sexo originário.
§3º No caso do parágrafo anterior, deverá ser averbado ao registro de nascimento e no respectivo documento de identidade ser a pessoa transexual.
A nosso ver, apesar de promissor, esse projeto traz uma alteração prejudicial aos transexuais, que seria o constante no parágrafo 3º do artigo 58 da Lei de Registros Públicos, posto que, se alterado, o documento do indivíduo passará a constar sua condição de transexual, criando um “terceiro gênero” que não existe.
Esse projeto, atualmente, está aguardando apreciação no Plenário.
Dez anos após a apresentação do projeto de lei nº 70, foi apresentado à Câmara novo projeto, de nº 5.872/2005, pelo Deputado Elimar Máximo Damasceno.
Seguia o pensamento do projeto nº 3.349/1992, de autoria do Deputado Antonio de Jesus e visa à proibição da mudança de prenome em casos de transexuais, acrescentando parágrafo ao artigo 58 da Lei nº 6.015/73, ficando a redação da seguinte forma:
Art. 58 (...)
§1º A substituição do prenome será ainda admitida em razão de fundada coação ou ameaça decorrente da colação com a apuração de crime, por determinação, em sentença, de juiz competente, ouvido o Ministério Público.
§2º Não será admitida a mudança de prenome em casos de transexualismo. (NR)
Sua justificativa se dá em caráter religioso, conforme se demonstra em trecho do Projeto:
[os transexuais] Agem contra a sua individualidade mutilando os próprios caracteres sexuais, e ainda lhes são oferecidos a oportunidade de mudança de prenome. O transexual, em retirando os caracteres sexuais com os quais a natureza o contemplou, atira em Deus a sua revolta. Não podemos compactuar com esses descalabros. Urge que a lei impeça o Judiciário de permitir esses desatinos.
Vê-se que não há cabimento para um projeto cuja justificativa se paute em argumentos religiosos, tendo em vista tratar-se o Brasil de um país cujo Estado é laico. Esse projeto foi apensado ao referido projeto de lei nº 70.
Em 2008, a Deputada Cida Diogo apresentou o projeto de lei nº 2.976, cujo objetivo é acrescentar o artigo 58-A ao texto da Lei nº 6.015/73, criando a possibilidade das pessoas que possuem orientação de gênero travesti, masculino ou feminino, utilizarem em documentos oficiais, ao lado do nome e prenome, um nome social.
A redação do artigo 58-A seria a seguinte:
Art. 58-A. Qualquer cidadão com orientação de gênero travesti, masculino ou feminino, poderá requerer à autoridade pública expedidora o registro, no respectivo documento pessoal de identificação, de nascimento ou em qualquer outro documento oficial, ao lado do nome e prenome, de um nome social público e notório que identifique sua condição de gênero.
Esse projeto não merece prosperar, posto que o, no caso, travesti, continuaria sendo exposto ao escárnio e a situações vexatórias na sociedade, já que apresentaria tanto um prenome referente ao seu sexo biológico, quanto um referente ao seu sexo psicológico.
De nada valeria essa mudança, já que não alcançaria o objetivo de integrar o travesti na sociedade, com direito a viver uma vida digna, longe das humilhações advindas das contradições entre seu sexo biológico e psicológico.
Atualmente, esse projeto foi, também, apensado ao projeto de lei nº 70-B/95, que aguarda apreciação do Plenário.
Alguns anos depois, em 2011, o Deputado João Paulo Lima, apresentou o projeto de lei nº 1.281, que visa, da mesma forma que o projeto de lei nº 2.976/2008, acrescentar o artigo 58-A a Lei de Registros Públicos, mas possibilitando a troca do prenome de transexuais no registro civil independente de decisão judicial, desde a realização da mudança de sexo seja comprovada por laudos médicos competentes.
Da mesma forma que os anteriores, este projeto de lei foi apensado ao PL nº 70-B/95, o que pode ser prejudicial a um projeto consciente como esse, por tratar-se de formas diferenciadas de resolução da questão do prenome de transexuais.
Apenas 1 (um) ano após a exposição do projeto do Deputado João Paulo Lima, a Deputada Erika Kokay apresentou o projeto de lei nº 4.241/2012 à Câmara, onde apresentava uma nova lei que dispunha sobre o direito à identidade de gênero.
Nesse projeto, a Deputada expõe que:
Art. 2º. Toda pessoa tem direito:
I – ao reconhecimento de sua identidade de gênero;
II – ao livre desenvolvimento de sua pessoa de acordo com tal identidade;
III – de ser tratada de acordo com sua identidade de gênero e de ser identificada de acordo com ela.
Esse projeto inovou trazendo em seu texto a questão dos menores de 18 (dezoito) anos, visando esclarecer uma questão, até então, pouco debatida e comentada.
Entretanto, o projeto também prevê que o reconhecimento de identidade de gênero dependerá de ações judiciais e, ainda, que as intervenções e cirurgias decorrentes da identidade de gênero serão obrigatoriamente realizados pelo Sistema Único de Saúde – SUS, o que represente um grande retrocesso com relação aos direitos dos transexuais.
Este projeto, assim como os últimos, também foi apensado ao projeto de lei nº 70/95, o que mostra a total confusão quanto às propostas que foram apresentadas visando adequar a situação do transexual.
Apensados ao PL 70-B, estão projetos com os mais diversos tipos de pensamentos, que deveriam ser apreciados separadamente.
Passado 1 (ano), o Deputado Jean Wyllys, em conjunto com a Deputada Erika Kokay, apresentaram novo Projeto de Lei nº 5.002/2013, com objetivo de criar uma Lei de Identidade de Gênero – Lei João W. Nery –, onde expõe, em seu artigo 1º, o seguinte:
Art. 1º. Toda pessoa tem direito:
I – ao reconhecimento de sua identidade de gênero;
II – ao livre desenvolvimento de sua pessoa conforme sua identidade de gênero;
III – a ser tratada de acordo com sua identidade de gênero e, em particular, a ser identificada dessa maneira nos instrumentos que acreditem sua identidade pessoal a respeito do/s prenome/s, da imagem e do sexo com que é registrada neles.
Ainda, o projeto expõe que “toda pessoa poderá solicitar a retificação registral de sexo a mudança do prenome e da imagem registradas na documentação pessoal, sempre que não coincidam com a sua identidade de gênero auto-percebida”.
Entretanto, para requerer essa retificação registral, a pessoa deverá observar alguns requisitos, quais sejam:
(i) ser maior de 18 (dezoito) anos;
(ii) apresentar ao cartório que corresponda uma solicitação escrita, na qual deverá manifestar que, de acordo com a presente lei, requer a retificação registral da certidão de nascimento e a emissão de uma nova carteira de identidade, conservando o número original; e
(iii) expressar o/s novo/s prenome/s escolhido/s para que sejam inscritos.
Note-se que houve alguns avanços entre o projeto de lei 4.241/2012 e o projeto de lei nº 5.002/2013.
Primeiramente, o projeto expõe que não haverá mais necessidade de nenhum trâmite judicial ou administrativo para alteração do prenome em casos discordância por identidade de gênero, bastando comparar ao cartório, cumprindo os supracitados requisitos.
Ademais, o projeto também assevera que não deverá haver, nos novos documentos, ficando proibida qualquer referência à identidade de gênero anterior, salvo com autorização por escrito da pessoa trans ou intersexual.
Ainda, o projeto esclarece a questão da mudança nos registros de pessoas menores de 18 (dezoito) anos, bem como elucida que não haverá necessidade de qualquer tipo de diagnóstico ou tratamento psicológico ou psiquiátrico para as intervenções cirúrgicas totais ou parciais de transexualização e que estas deverão ser oferecidas tanto pelo SUS, quanto pelas operadoras definidas nos incisos I e II do § 1º do artigo 1º da Lei 9.656/98, por meio de sua rede de unidades convencionadas.
Por fim, o projeto também visa à alteração do artigo 58 da Lei de Registros Públicos, que ficaria redigido da seguinte maneira:
Art. 58. O prenome será definitivo, exceto nos casos de discordância com a identidade de gênero auto-percebida, para os quais se aplicará a lei de identidade de gênero. Admite-se também a substituição do prenome por apelidos públicos notórios.
Esse projeto havia sido apensado ao projeto anterior - 4.241/2012 -, entretanto, por estar este apensado ao PL 70-B, o Deputado Jean Wyllys solicitou a desapensação, posto o PL nº 70 dispor sobre intervenções cirúrgicas que visem à alteração de sexo, enquanto o PL 5002 trata da alteração da Lei de Registros Públicos, versando sobre o direito à alteração de prenome em decorrência de reconhecimento de identidade de gênero.
O requerimento foi deferido e o PL 5002 foi desapensado do PL 4241 (apesando ao PL 70).
Atualmente, este projeto que, a nosso ver, é o que mostra forma de resolução mais coesa com a atual situação do transexual, aguarda designação de Relator na Comissão de Direitos Humanos e Minorias (CDHM).