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Educação: é possível a construção de um conceito?

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5.  O conceito de educação na atualidade

Depois de apresentar o entendimento pedagógico de alguns autores clássicos do pensamento ocidental, resta buscar um conceito de educação que seja  capaz de apresentar coerência com a proposta do Estatuto da Criança e do Adolescente no que  diz respeito, em particular,  a (re)educação de adolescentes autores de atos infracionais.

Neste sentido parece ser indicado a conceituação de educação realizada por Paulo Freire que a compreende como um efetivo processo, ou seja, a educação não é mais vista como realidade estática mas, sim, como forma de aprimoramento e de caracterização da condição humana.

5.1. O conceito de educação em Paulo Freire

Paulo Freire colocar-se-á sempre como um dos maiores pedagogos de nosso país. Parece que a grande preocupação deste autor foi buscar uma concepção e, acima de tudo, um método capaz de educar para a liberdade. O ponto central da teoria pedagógica de Paulo Freire é o rompimento da opressão criada no intuito de manter determinadas posições sociais.

A educação não pode ser instrumento de dominação, deve, de outro modo, funcionar como meio de emancipação e de libertação do homem.

A imposição de uma forma pedagógica baseada na coerção e na perpetuação de determinadas práticas opressivas é característica ainda presente em nosso modelo educativo. Paulo Freire denomina de “concepção bancária” esta forma de pedagogia. O trecho seguinte demonstra muito bem essa concepção e mostra como a educação ainda não conseguiu romper com certos vícios que continuam a ser promotores de preconceitos e desigualdades:

“Na concepção ‘bancária’ que estamos criticando, para qual a educação é o ato de depositar, de transferir, de transmitir valores e conhecimento, não se verifica e nem pode verificar-se esta superação. Pelo contrário, refletindo a sociedade opressora, sendo dimensão da ‘cultura do silêncio’, a educação ‘bancária’ estimula e mantém a contradição.

Daí, então, que nela:

a)  o educador é o que educa; os educandos, os que são educados;

b)  o educador é o que sabe; os educandos, os que não sabem;

c)  o educador é o que pensa; os educandos, os pensados; [...]

e)  o educador é o que disciplina; os educandos, os disciplinados;

f) o educador é o que opta e o que prescreve sua opção; os educandos os que seguem a prescrição;

g) o educador é o que atua; os educandos, os que têm a ilusão de que atuam, na atuação do educador;

h) o educador escolhe o conteúdo programático; os educandos, jamais ouvidos nesta escolha, se acomodam a ele;

i)   o educador identifica a autoridade do saber com sua autoridade funcional, que opõe antagonicamente à liberdade dos educandos; estes devem adaptar-se às determinações daquele;

j)  o educador, finalmente, é o sujeito do processo; os educandos, meros objetos.” [51]

Para Paulo Freire a educação é um processo em que não deveria existir educador e educando, os seres humanos evolvidos na relação de educação aprenderiam um com o outro, sempre  tendo por base o objeto a ser conhecido. A educação não significa alguém aprendendo e alguém ensinando, significa um processo mediante o qual ninguém tenta impor ao outro um conhecimento que já vem pronto. O conhecimento seria construído a partir da relação estabelecida entre as pessoas que buscam no respeito à liberdade de seu semelhante, a razão para estabelecer o objeto e o modo como este será conhecido. Vai neste sentido o conceito de educação construído por Paulo Freire:

“Já agora ninguém educa ninguém, como tampouco ninguém se educa a si mesmo: os homens se educam em comunhão, mediatizados pelo mundo. Mediatizados pelos objetos cognoscíveis que, na prática ‘bancária’, são possuídos pelo educador que os descreve ou os deposita nos educandos passivos.” [52]

O melhor método educativo na concepção pedagógica de Paulo Freire é o diálogo. Dialogar significa estabelecer relações com os outros e com o mundo; o diálogo é meio de aprofundar as dimensões da palavra, qual sejam: ação e reflexão. O diálogo, quando posto em prática, é instrumento capaz de trazer a igualdade entre os homens, pois através dele rompem-se os laços de opressão e criam-se laços de fraternidade, ou seja, em um diálogo sincero não há espaço para tentativas de dominação e de exploração por motivos econômicos, ideológicos ou de conhecimento. A confiança, base do processo educativo deste autor, somente pode ser alcançada através do diálogo: “Ao fundar-se no amor, na humildade, na fé nos homens, o diálogo se faz uma relação horizontal, em que a confiança de um pólo no outro é conseqüência óbvia.” [53]

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O processo de interação existente entre os sujeitos agentes da educação é ressaltado por Paulo Freire como modelo de pedagogia.  Somente através da busca conjunta do objeto cognoscível é que será possível se falar de educação. Por isso: “É na realidade mediatizadora, na consciência que dela  tenhamos,  educadores e povo,  que iremos  buscar o conteúdo programático da educação.” [54]

Finalmente, é importante salientar a função criativa reservada à educação. Uma das características que distingue o homem dos outros animais é sua capacidade criativa. A transformação da vida gerada pelo processo educativo é fonte da criação e da ação transformadora do homem. “Com efeito, enquanto a atividade animal, realizada sem práxis, não implica criação, a transformação exercida pelos homens a implica.” [55]


Referências

BADINTER, Elisabeth. Um amor conquistado: o mito do amor materno. Trad. de Waltensir Dutra.  Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.

FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade.  Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977.

__________. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1997.

__________. Pedagogia do oprimido. 24.ed. São Paulo: Paz e Terra, 1997.

KANT, Immanuel. Fundamentos da metafísica dos costumes. Trad. De Lourival de Queiroz Henkel. Rio de Janeiro: Tecnoprint, 1997.

KANT, Immanuel. Sobre a pedagogia. Tradução de Francisco Cock Fontanella. Piracicaba: Unimep, 1996.

MANACORDA, Mario Alighiero. Marx e a pedagogia moderna. Tradução de Newton Carlos de Oliveira. 2. ed. São Paulo: Cortez, 1996.

ROUSSEAU, Jean Jacques. Emílio ou da Educação. Tradução de Roberto Leal Ferreira. São Paulo: Martins Fontes, 1995.

VERONESE, Josiane Rose Petry.  Direito da criança e do adolescente. Florianópolis: OAB editora, 2006.

__________. & VIEIRA, Cleverton Elias. Limites na educação: sob a perspectiva da doutrina da proteção integral, do Estatuto da Criança e do Adolescente e da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Florianópolis: OAB editora, 2006.


Notas

[3] Segundo Elisabeth Badinter, em sua obra: Um amor conquistado: o mito do amor materno, esta concepção rousseauniana, que nasce com a publicação de Emílio, em 1762, se estende até o final do século XX, na tentativa de convencer as mulheres de que deveriam elas mesmas cuidarem de seus filhos  (p.181-182).

[4] ROUSSEAU, Jean Jacques. Emílio ou da Educação, p. 8-9.

[5] Ibid., p. 14

[6] Ibid., p. 47.

[7] Ibid.,  p. 66.

[8] Ibid.,  p. 68.

[9] Ibid.,  p. 68.

[10] Ibid., p. 103.

[11] Ibid., p. 69.

[12] Ibid., p. 89. Neste livro II, Rousseau evidencia a sua posição absolutamente contrária ao castigo, assim: “Não deis a vosso aluno nenhum tipo de lição verbal. Ele deve receber lições somente da experiência; não lhe ordeneis nenhum tipo de castigo, pois ele não sabe o que é ser culpado; não façais nunca com que peça desculpas, pois não saberia ofender-vos. Carente de qualquer moralidade em suas ações, ele nada pode fazer que seja moralmente mau e mereça castigo ou reprimenda” (p. 89)

[13] Ibid., p. 91.

[14] Ibid., p. 127.

[15] Ibid., p. 203.

[16] Ibid., p. 210.

[17] Ibid., p. 211.

[18] Segundo Rousseau: “Não se trata de ensinar-lhe as ciências, mas de dar-lhe o gosto para amá-las  e métodos para aprendê-las quando esse gosto estiver mais desenvolvido. Este é com toda certeza um princípio fundamental de toda boa educação.” (p. 212)

[19] Ibid., p. 223.

[20] Ibid., p. 231-232.

[21] Ibid., p. 268.

[22] Para fundamentar tal concepção, transcrevemos a seguinte passagem: “A fraqueza do homem torna-o sociável e nossas misérias comuns levam nossos corações à humanidade; nada lhe deveríamos se não fôssemos homens. Todo apego é sinal de insuficiência; se cada um de nós não tivesse nenhuma necessidade dos outros, não pensaria em unir-se a eles. Assim, de nossa mesma imperfeição nasce nossa frágil felicidade. Um ser realmente feliz é um ser solitário; só Deus goza de uma felicidade absoluta; quem de nós, porém, tem alguma idéia do que seja isso? Se algum ser imperfeito pudesse bastar a si mesmo, do que gozaria ele? Estaria só, seria miserável. Não posso conceber que quem de nada precisa possa amar algo; não consigo conceber que quem nada ama possa ser feliz.” (p. 286-287)

[23] Ibid., p. 303.

[24] Ibid., p. 333.

[25] Ibid., p. 435.

[26] Ibid., p. 455.

[27] De acordo com esta compreensão, encontramos a seguinte passagem: “Emílio não foi feito para permanecer sempre solitário; membro da sociedade, deve cumprir seus deveres. Feito para viver com os homens deve conhecê-los. Conhece o homem em geral; falta-lhe conhecer os indivíduos. Sabe o que se faz na sociedade; falta-lhe ver como se vive nela. Já é tempo de mostrar-lhe o exterior desse grande teatro cujos jogos secretos já conhece todos.” (p.449).

[28] Ibid., p. 502.

[29] Ibid., p. 505.

[30] Ibid., p. 513.

[31] Ibid., p.607.

[32] KANT, Immanuel. Sobre a pedagogia, p. 11.

[33] Idem, p. 15.

[34]  Ibid., p.20.

[35] Ibid., p. 22.

[36] KANT, Immanuel. Fundamentos da metafísica dos costumes, p. 70.

[37] Ibid.,  p. 75.

[38] KANT, Immanuel. Sobre asPedagogia.  p. 28 – 29.

[39] Ibid., p. 33.

[40]  Ibid., p. 39.

[41] Ibid.,  p. 65- 66.

[42] Ibid,,  p. 73.

[43] Ibid, p. 81.

[44] Ibid., p. 85.

[45] Ibid.,  p. 95.

[46] Ibid., p 102.

43 Ibid., p. 114.

[48] MANACORDA, Mario Alighiero. Marx e a Pedagogia Moderna., p. 27.

[49] MANACORDA, Mario Alighiero. Op. Cit., p.  32.

[50] MARX, Karl. Apud MANACORDA, Mario Alighiero. Op. Cit., p. 39.

[51] FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido, p. 68.

[52] Idem, p. 69.

[53].Ibid., p. 81.

[54] FREIRE, Paulo. Op. Cit., p. 87.

[55] Idem, p. 92.

Sobre os autores
Josiane Rose Petry Veronese

Professora Titular da disciplina Direito da Criança e do Adolescente, da Universidade Federal de Santa Catarina, na graduação e nos Programas de Mestrado e Doutorado em Direito. Doutora em Direito. Pós-doutorado na Faculdade de Serviço Social da PUC/RS. Coordenadora do Curso de Direito da UFSC. Coordenadora do NEJUSCA – Núcleo de Estudos Jurídicos e Sociais da Criança e do Adolescente e sub-coordenadora do Núcleo de Pesquisa Direito e Fraternidade CCJ/UFSC. Autora de vários livros e artigos na área do Direito da Criança e do Adolescente.

Cleverton Elias Vieira

Mestre em Direito pela UFSC. Professor substituto do Curso de Graduação em Direito da UFSC. Pesquisador do Nejusca – Núcleo de Estudos Jurídicos-sociais da Criança e do Adolescente/CCJ/UFSC . Advogado. Consultor Jurídico da Secretaria de Estado de Coordenação e Articulação – Santa Catarina. Membro do Conselho Estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente – CEDCA/SC. Autor de artigos na área do Direito à educação e do livro: Limites na educação: sob a perspectiva da Doutrina da Proteção Integral, do Estatuto da Criança e do Adolescente e da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Florianópolis: OAB/SC editora, 2006 (em co-autoria com Josiane Rose Petry Veronese).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

VERONESE, Josiane Rose Petry; VIEIRA, Cleverton Elias. Educação: é possível a construção de um conceito?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4101, 23 set. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/29399. Acesso em: 28 dez. 2024.

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