4. A harmonização das idéias apresentadas com o sistema jurídico vigente: o exercício da competência tributária.
Adotando as premissas aqui colocadas, há de se perguntar: será que todo o sistema tributário infra-constitucional está eivado de vícios? Seria, pois, inconstitucional? E a jurisprudência? Estaria esta também com os olhos fechados para o que preceitua o Texto Maior?
Pois bem, é preciso lembrar que o Direito é, ao mesmo tempo, fato, norma e valor. Não se deve desenvolver um raciocínio lógico abstraindo aquilo que é ínsito ao Direito, em um verdadeiro "vôo sobre as nuvens". Dessa forma, há que se harmonizar o estudo científico ao sistema aí posto, que, por meio de uma análise histórica, se desenvolveu no sentido de adotar as operações realizadas com os produtos industrializados como sendo a real h.i. do IPI.
Urge, assim, imprescindível a retomada das robustas lições de Carrazza relativamente à delimitação de competências tributárias. [33] A Carta Suprema não criou tributos, como lembra o mestre, mas tão somente delimitou competência tributárias para que, por meio de lei, a União, os Estados, os Municípios e o Distrito Federal o fizessem. Tal assertiva significa que, a real hipótese de incidência do IPI, com de qualquer outro imposto, não está no texto constitucional. O que ali existe, na verdade, são os limites outorgados ao legislador infra-constitucional para a instituição de tributos. Todavia, deve-se recordar o que lembra o ilustre jurista: "Reconhecemos que ela cuidou pormenorizadamente da tributação, traçando inclusive, a norma padrão de incidência de cada uma das exações que poderão ser criadas... ". [34]
Desta feita, cabe ao legislador infra-constitucional tão somente o exercício dessa competência, isto é, a partir de um dado axiológico, eleger aquelas situações que julgar relevantes, já delimitadas pelo constituinte, para as relações intersubjetivas a ponto de defini-las como fatos jurídicos. É o legislador ordinário o destinatário imediato das normas de competência tributária constantes do texto constitucional. A atividade de eleição de condutas e criação dos tributos, com a conseqüente definição de suas regras-matrizes de incidência é o que se denomina exercício da competência tributária, a qual se esgota na própria lei.
Assim, diante dos limites que lhe foram impostos, o legislador ordinário preferiu eleger como hipótese de incidência do IPI, na facultatividade do exercício da competência tributária, tão somente aquelas industrializações que tenham por finalidade a comercialização de seu produto final, o que se revela através de operações com produtos industrializados. Em decisão política, isto é, faculdade discricionária de agir, a partir da análise da conveniência, vantagem e utilidade, deixou de fora da incidência do IPI o legislador ordinário, pois, toda e qualquer espécie de industrialização que não tenha por objetivo a comercialização do produto industrializado. [35]
Ao contrário do que fez o constituinte, o legislador ordinário, dentro de seus limites, vinculou o critério material da h.i. do IPI à finalidade que busca o sujeito passivo da obrigação tributária com a industrialização de determinado produto. Nesse sentido, traçou o critério temporal da mesma h.i.. O fato tributário somente ocorre por completo, portanto, com a realização de uma operação com produto industrializado.
Dessa forma, salvo está todo o sistema infra-constitucional relativo à h.i do IPI, uma vez que o fato previsto na regra de conduta que visa a exigir contribuições pecuniárias a título de IPI foi escolhido a partir dos limites postos pelo poder constituinte originário. As industrializações em si mesmas, gênero da qual industrialização para fins de comercialização é espécie, foi o campo de poder outorgado pela Constituição. Todavia, o legislador ordinário optou por somente tributar esta espécie.
É bem verdade que a jurisprudência pátria tem se manifestado, quanto provocada, em sentido diverso, por vezes confundindo o critério material com o critério temporal da h.i. do IPI:
"TRIBUTÁRIO – IPI – FATO GERADOR – SAÍDA DO PRODUTO – O fato gerador do IPI ocorre também na saída de produto dos estabelecimentos a que se refere o parágrafo único do art. 51, e na sua arrematação, quando apreendido ou abandonado, e levado a leilão. A hipótese de incidência do IPI não é a industrialização e sim o desembaraço aduaneiro ou a saída do produto industrializado. Recurso improvido." (STJ – REsp 216218 – SP – 1ª T. – Rel. Min. Garcia Vieira – DJU 25.10.1999 – p. 61)
"TRIBUTÁRIO. IPI. INCIDÊNCIA PRODUTOS IMPORTADOS. IMPOSTO DEVIDO. EXIGÊNCIA DO RECOLHIMENTO NO DESEMBARAÇO ADUANEIRO.
1 - Um dos fatos geradores do IPI, a teor do art. 46, inciso I, do Código Tributário Nacional, é o seu desembaraço aduaneiro, e, quando caracterizado, incide o IPI em produtos importados.
2 - Não é o ato de industrialização que gera a incidência do IPI, posto que este recai no produto objeto da industrialização.
3 - Recurso improvido. (Precedente: REsp nº 180.131/SP – Relator Ministro José Delgado)." (STJ – REsp 216217 – SP – 1.ª T. – Rel. José Delgado – DJU 29.11.99)
Outro grande problema existente, de fácil percepção, é que, em admitindo serem as operações com produtos industrializados o critério material da h.i. do IPI, estar-se-á por invadir competência de outro ente da federação. Aos Estados competem instituir e cobrar impostos sobre operações relativas à circulação de mercadoria – ICMS. A União não pode invadir tal competência, porque não pode haver incidência de duas normas distintas sobre o mesmo fato. Inobstante a fenomenologia da incidência normativa, os Tribunais pátrios têm proferido suas decisões no sentido de admitir serem as operações fato gerador de obrigações distintas. Tal se dá por conta da premissa falsa que adotam, qual seja, serem tais operações o critério material da h.i. do IPI:
"CONSTITUCIONAL. TRIBUTÁRIO. ICMS. INCLUSÃO DO I.P.I. NA SUA BASE DE CÁLCULO: OPERAÇÃO REALIZADA ENTRE CONTRIBUINTES E RELATIVA A PRODUTOS DESTINADOS À INDUSTRIALIZAÇÃO OU À COMERCIALIZAÇÃO A CONFIGURAR FATO GERADOR DO ICMS E DO I.P.I. C.F., art. 155, § 2º, XI..
I. - Não inclusão, na base de cálculo do ICMS, do I.P.I., quando a operação, realizada entre contribuintes e relativa a produtos destinados à industrialização ou à comercialização, configure fato gerador dos dois impostos. C.F., art. 155, § 2º, XI..
II. - O dispositivo constitucional não distingue entre estabelecimentos industriais e equiparados. O que importa verificar é a ocorrência da situação fática inscrita no inc. XI do § 2º do art. 155 da C.F., certo que os contribuintes do IPI estão definidos no CTN, art. 51..
III. - R.E. não conhecido.".
(STF – RE 185318 – SP – 2.ª T. – Rel. Min. Carlos Valloso – DJU 29.11.96)(Grifos não existentes no original)
"ICMS. IPI. ART. 155, § 2º, XI, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. ART.24, § 1º, Nº 4, DA LEI PAULISTA Nº 6.374/89. VENDA DE PRODUTOS IMPORTADOS, PARA INDUSTRIALIZAÇÃO OU COMERCIALIZAÇÃO. EXCLUSÃO DO VALOR CORRRESPONDENTE AO ÚLTIMO TRIBUTO DA BASE DE CÁLCULO DO PRIMEIRO. Configurando-se, no caso, fato gerador de ambos os tributos, indice a norma constitucional em referência, que não distingue contribuinte industrial de contribuinte equiparado a industrial. A Lei nº 6.374/89, do Estado de São Paulo, ao estabelecer em sentido contrário, no dispositivo acima indicado, ofende o apontado texto da Carta da República. Recurso conhecido e provido, com declaração da inconstitucionalidade do texto estadual sob enfoque." (STF – RE 191648 – SP – PLENO – Rel. Ilmar galvão – DJU 20.06.97) (Grifos não existentes no original)
Ora, no que se refere aos impostos, não se pode admitir que um mesmo fato submeta-se à incidência de duas normas de imposição tributária [36] distintas, e que, ainda, faça nascer obrigações tributárias diversas. Noutro dizer, na coerência do Ordenamento Jurídico pátrio, normas tributárias instituidoras de impostos, distintas, não têm o mesmo suporte fáctico abstrato, isto é, a mesma hipótese de incidência. Se tal situação ocorre, submetidas ambas as normas ao exame de constitucionalidade, através dos meios de controle hábeis para tanto, somente um resistirá, restando à outra ser expulsa do ordenamento, em razão de flagrante bitributação. Isto porque, a Constituição traçou exaustiva e cautelosamente, com extremo rigor, os limites da competência tributária de cada um dos entes da federação pátria, não podendo haver qualquer atropelo, conflito ou desarmonia, sob pena de ferir um dos pilares do Estado Nacional, qual seja, a própria Federação.
5. A Base de Cálculo do IPI.
Assim, especialmente no que se refere à delimitação da competência para instituição do tributo, e a conseqüente determinação de sua hipótese de incidência, resta fácil a especificação da base de cálculo, não só do IPI, mas de qualquer outro tributo.
Lembrando o magistério de Paulo de Barros Carvalho acerca do critério quantitativo da regra-matriz de incidência, especialmente da base de cálculo dos tributos, tem-se esta como entidade fundamental para caracterização de sua natureza jurídica. [37] Ínsita à hipótese de incidência e essencial, por exigência constitucional, não deixa de existir em nenhum caso do evento tributável, podendo ser conceituada como uma visão mensurável da materialidade da hipótese de incidência, a fim de estabelecer o "critério para a determinação" do quantum debeatur, em cada obrigação tributária concreta, como lembra Geraldo Ataliba. [38] É fundamento ou apoio para que se possa medir a intensidade do fato imponível, por isso, é uma grandeza concebida no conseqüente da regra-matriz de incidência, a fim de determinar a dimensão do comportamento, seja da Administração ou do particular, situado no núcleo do fato jurídico. É um conceito legal que engloba os elementos considerados relevantes pelo legislador para produzir o evento tributado. Possui três funções distintas [39], a saber:
a) mensuradora, dando dimensão ao fato imponível, com relação a eventos e bens, objetos da atividade tributária. Diante da evidente impossibilidade da mensuração integral de fatos, são escolhidos, com relação também aos bens, os elementos ou atributos valorativos que o fato possui, servindo assim, de apoio para dimensionador do fato previsto, podendo inclusive, serem eleitos mais de um desses elementos, dando origem a uma base de cálculo conjugada.
Deve haver uma compatibilidade entre a hipótese de incidência e a base de cálculo, não podendo esta extrapassar os limites daquela, posto que se projeta sobre a mesma porção nuclear factual.
b) objetiva, cumprindo um papel objetivo, preparando para um processo de cálculo, a fim de compor a específica determinação da dívida tributária. Tem essa função em virtude de que a escolha do critério mensurável do fato imponível é apenas o primeiro passo para a estipulação correspondente ao tributo. É necessário que se identifique o outro elemento que, a ela unida, determinará a quantum devido a título de tributo, ou seja, projetando-se para frente, para delinear o conteúdo da obrigação tributária.
c) comparativa: diante dos inúmeros "equívocos" cometidos pelo legislador quando da variação na textura dos enunciados tributários, bem como em sua instituição, podendo assim, distorcer a própria ocorrência do fato previsto na hipótese de incidência, a base de cálculo fornece meios para que se possa confirmar, infirmar ou afirmar o verdadeiro critério material da hipótese tributária, posto que hospeda aspectos estruturais de tais fatos, previstos no antecedente da norma, apresentando-se, os preceitos que tratam da grandeza eleita o fator dimensionador, acentuadamente mais abundantes do que aqueles determinadores da incidência (critério material e pessoal), presentes no descritor.
Pois bem, o ponto crucial da questão está na determinação do núcleo do critério material da hipótese de incidência tributária do IPI, através dos limites da competência tributária para sua instituição.
Grande parte da doutrina tem desenvolvido estudos sobre o tema, para chegar à conclusão de que a base imponível do IPI seria "o valor total da operação de que decorre a saída do estabelecimento industrial ou equiparado a industrial", acrescido ao seu preço o "valor do frete e das demais despesas acessórias, cobradas ou debitadas pelo contribuinte ao comprador ou destinatário", o que aliás é a redação do art. 14, II, da Lei n.º 4.502/64, com redação dada pela Lei n.º 7.798/89, em seu art. 15, acrescido pelo parágrafo 1.º, entendidas tais despesas acessórias como sendo "outros gastos necessários à realização da operação, como sejam, frete, seguro, juros, despesas com carga, descarga, despacho, encargos portuários", [40] incluídos os descontos, diferenças ou abatimentos concedidos a qualquer título, [41] podendo inclusive ser computado também o valor do ICMS, segundo alguns.
Em sentido contrário, e em nosso favor, José Carlos Graça Wagner afirma que: "As despesas de circulação, posteriormente à industrialização, não compõem o valor da industrialização e, portanto, não se incluem na base de cálculo do IPI, em razão da natureza jurídica deste". [42]
Ora, em virtude de todo o exposto, temos que a base de cálculo do IPI não deve ser outra senão aquela que representa verdadeiramente sua hipótese de incidência, qual seja, a industrialização de produtos em si mesma. Assim, o montante devido deve ser calculado sobre o real valor do produto, despido de qualquer acréscimo, até mesmo o lucro. O real valor é aquele que representa a quantia gasta no processo de produção, com relação tão somente aos valores despendidos em matéria prima, insumos e mão-de-obra, entre outros, diferentemente do valor real discutido no âmbito da incidência do ICMS, principalmente no que se refere ao tema da substituição tributária "pra frente", onde valor real do produto significa valor real da operação, em contraposição ao valor presumido. Se determinado equipamento eletrônico custa R$ 1.000,00 (mil reais) para ser feito, sendo oferecido por R$ 2.5000,00 (dois mil e quinhentos reais) e vendido por R$ 2.000,00 (dois mil reais), aqui embutidos o lucro, frete e despesas acessórias, a base de cálculo não deve ser outra senão a primeira quantia, posto que representa seu real valor.